Irã-China: a conexão Rotas da Seda do século XXI. Por Pepe Escobar
Culminando as extraordinárias duas semanas que viraram de ponta-cabeça a geopolítica do século XXI, o Irã e a China finalmente assinaram seu acordo estratégico de 25 anos neste último sábado, em Teerã.
O timing não poderia ter sido mais espetacular, seguindo-se ao que examinamos nas três colunas anteriores: O Quad virtual e a cúpula 2+2 Estados Unidos-China, realizada no Alasca; A reunião da parceria estratégica Lavrov-Wang Yi, em Guilin; e a cúpula da OTAN de Ministros das Relações Exteriores, em Bruxelas – os passos cruciais que revelam o nascimento de um novo paradigma nas relações internacionais.
A oficialmente denominada Parceria Estratégica Ampla Sino-Iraniana foi anunciada há mais de cinco anos, quando o Presidente Xi Jinping visitou Teerã. Teerã descreve o acordo, que resultou de inúmeras discussões a portas fechadas realizadas desde 2016, como “um mapa de percurso completo, com cláusulas políticas e econômicas abrangendo a cooperação nas áreas comercial, econômica e de transportes”.
Mais uma vez, trata-se do “ganhos para todos” em ação: o Irã, em estreita parceria com a China, estilhaça a vidraça das sanções dos Estados Unidos e turbina os investimentos internos em infraestrutura, enquanto a China assegura, no longo prazo, importações de energia de crucial importância, tratadas como uma questão de segurança nacional.
Se um perdedor pode ser identificado nesse processo, seria com certeza a “pressão máxima” contra tudo o que for iraniano aplicada pelo governo Trump.
Como o Professor Mohammad Marandi da Universidade de Teerã descreveu para mim, “Trata-se basicamente de um mapa de percurso. Esse mapa torna-se especialmente importante em um momento em que a hostilidade dos Estados Unidos contra a China vem aumentando. O fato de essa viagem ao Irã [do Chanceler Wang Yi] e a assinatura do acordo terem ocorrido literalmente dias após os acontecimentos no Alasca só as torna ainda mais significativas em termos simbólicos”.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Irã, Saeed Khatibzadeh, confirmou que o acordo foi de fato um “mapa de percurso” para a cooperação na área econômica e de transportes, com “foco especial nos setores privados de ambos os lados”.
Marandi observa também que aí está uma “compreensão ampla do que pode acontecer entre o Irã e a China – o Irã sendo rico em petróleo e gás e o único país produtor de energia que consegue dizer “não” aos norte-americanos e capaz de assumir uma atitude de independência em suas parcerias com outros países, em especial a China”.
A China é o maior importador de petróleo iraniano. E, o que é de importância crucial, os pagamentos não são feitos em dólares norte-americanos.
Marandi toca o cerne da questão ao confirmar que o acordo estratégico de fato assegura, de forma definitiva, o importantíssimo papel do Irã na Iniciativa Cinturão e Rota (ICR):
Os chineses estão ficando mais cautelosos com o comércio marítimo. Até mesmo o incidente no canal de Suez só faz reforçar esse fato e aumentar a importância do Irã para a China. O Irã gostaria de usar essa mesma rede Cinturão e Rota que os chineses querem desenvolver. Para o Irã, o progresso econômico da China é bastante importante, em especial em setores de alta tecnologia e de IA, áreas em que os iranianos vêm também atuando, sendo, de longe, os líderes regionais. Quando se trata de tecnologia de dados, o Irã ocupa o terceiro lugar no mundo. Este é um momento muito adequado para uma maior aproximação entre o Oeste Asiático e o Leste Asiático – e uma vez que os iranianos têm grande influência entre seus aliados no Mediterrâneo, no Mar Negro, no Hindu Kush, na Ásia Central e no Golfo Pérsico, o Irã é o parceiro ideal para a China.
Resumindo: do ponto de vista de Pequim, a estarrecedora saga do Evergreen no Canal de Suez mais que nunca vem reiterar a importância crucial dos corredores terrestres de conectividade comercial da ICR cruzando toda a Eurásia.
Acordo Nuclear? Que Acordo Nuclear?
É fascinante assistir a maneira como Wang Yi, ao se encontrar com Ali Larijani, consultor especial do Aiatolá Khamenei, expressou tudo em uma única frase: “O Irã decide independentemente sobre suas relações com outros países, e não é como alguns países que mudam de postura com um telefonema”.
Nunca é demais ressaltar que a assinatura da parceria foi a culminação de um processo de cinco anos de duração, que incluiu frequentes viagens diplomáticas e presidenciais, que tiveram início antes mesmo do interregno de “máxima pressão” de Trump.
Wang Yi, que mantém uma relação muito próxima com o chanceler iraniano Mohammad Javad Zarif, mais uma vez enfatizou que “as relações entre os dois países agora chegaram ao nível de uma parceria estratégica”, e “não será afetada pela situação atual, mas será permanente”.
Zarif, de sua parte, ressaltou que Washington deveria examinar seriamente seu retorno ao acordo nuclear, retirar todas as sanções unilaterais e voltar ao Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA, em inglês), tal como combinado em Viena, em 2015. Em termos de realpolitik, Zarif sabe que isso não vai acontecer – levando em conta o estado de ânimo que prevalece no Beltway. Desse modo, só lhe restou elogiar a China como um “parceiro confiável” no dossiê – tanto quanto a Rússia.
Pequim vem articulando uma ofensiva de charme bastante sutil no Sudoeste Asiático. Antes de ir a Teerã, Wang Yi foi à Arábia Saudita e se encontrou com o Príncipe Herdeiro Mohammed Bin Salman. A narrativa oficial é que a China, como “parceiro pragmático”, apoia as medidas de Riad no sentido de diversificar sua economia e “encontrar um caminho de desenvolvimento que se adapte às condições do país”.
O que Wang Yi quis dizer é que algo chamado de Comissão Conjunta de Alto Nível China-Arábia Saudita deveria estar trabalhando em ritmo de horas-extras. Mas não houve qualquer vazamento no tocante à questão absolutamente crucial: o papel do petróleo nas relações Pequim-Riad e o dia fatal em que a China decidirá comprar petróleo saudita cotado exclusivamente em yuans.
Na rota (da seda) novamente
É absolutamente essencial colocar em contexto histórico a importância do acordo Irã-China.
O acordo faz muito para renovar o espírito da Eurásia como entidade geopolítica, como coloca o excelente geopolítico francês Christian Grataloup: “Um sistema de inter-relações de um extremo a outro da Eurásia”, acontecendo por todo o núcleo duro da história mundial.
Por meio do conceito da ICR, a China vem se reconectando com a vasta região intermediária entre a Ásia e a Europa, através da qual as relações entre os continentes foram tecidas por impérios mais ou menos duráveis com diversas dimensões eurasianas: persas, greco-romanos e árabes.
Os persas, o que é muito importante, foram os primeiros a desenvolver um papel criativo na Eurásia. Os iranianos do norte, ao longo do primeiro milênio A.C., especialistas em nomadismo cavaleiro, eram a maior potência no coração da estepe da Eurásia Central.
Em termos históricos, está bem estabelecido que os citas foram a primeira nação nômade pastoral. Eles – como uma grande potência – dominaram a estepe ocidental, enquanto outros iranianos da estepe se deslocaram para o leste chegando até a China. Os citas eram não apenas guerreiros fabulosos – como conta o mito – mas também mercadores de grande habilidade que faziam a conexão entre Grécia, Pérsia e o Leste da Ásia, o que foi descrito por Heródoto, entre outros.
Portanto, uma rede ultradinâmica de comércio internacional terrestre cobrindo toda a Eurásia Central se desenvolveu como consequência direta do impulso de, entre outros, citas, sogdianos e dos hsiung-nu (que constantemente atacavam os chineses na fronteira norte). Diversas potências de toda a Eurásia Central, em diferentes épocas, sempre fizeram comércio com todos os povos próximos a suas fronteiras – onde quer que fosse, da Europa ao Leste Asiático.
Em essência, o domínio iraniano sobre a Eurásia Central pode ter começado bem cedo, por volta de 1600 A.C., quando indo-europeus apareceram na Mesopotâmia superior e no Mar Egeu, na Grécia, enquanto outros seguiram viagem até a Índia e a China.
Está plenamente estabelecido por, entre outros, Nicola di Cosmo, uma fonte de erudição impecável em seu Ancient China and Its Enemies: The Rise of Nomadic Power in East Asian History (A China Antiga e seus Inimigos: A Ascensão das Potências Nômades na História do Leste Asiático), publicado pela Cambridge University Press: o estilo de vida pastoral de cavaleiros nômades foi desenvolvido pelos iranianos da estepe no primeiro milênio A.C.
Saltando para o final do primeiro século A.C., quando Roma começava a trazer sua preciosa seda do Leste da Ásia usando diversos intermediários, naquilo que é descrito pelos historiadores como a primeira Rota da Seda.
Uma história fascinante conta que um macedônio, Maes Titianos, que vivia em Antióquia, na Síria Romana, organizou uma caravana para que seus agentes conseguissem ir além da Ásia Central, chegando a Seres (China) e à sua capital imperial, Chang’an. A expedição levou mais de um ano e foi a precursora das viagens de Marco Polo, no século XIII. Marco Polo, aliás, seguiu estradas e trilhas que há séculos eram conhecidas e usadas por inúmeras caravanas de mercadores eurasianos.
Até o tempo da caravana organizada por Titianos, Bactria – que fica no atual Afeganistão – era o limes do mundo conhecido para a Roma imperial, e a porta giratória, em termos de conectividade, entre China, Índia e Pérsia, sob os partas.
E, para ilustrar esses “contatos de povo a povo” muito caro ao conceito da ICR do século XXI, o maniqueísmo do século III – perseguido pelo Império Romano – alcançou seu desenvolvimento pleno na Pérsia, ao longo da Rota da Seda, graças aos mercadores sogdianos. Do século VIII ao século IX, ele chegou a se tornar a religião oficial entre os uigures, alcançando até mesmo a China. Marco Polo encontrou maniqueus na corte Yuan, no século XIII.
Governando o Heartland
As Rotas da Seda foram um fabuloso vórtice de povos, religiões e culturas – o que é confirmado pela excepcional coleção de manuscritos maniqueus, zoroastrianos, budistas e cristãos, escritos em chinês, tibetano, sânscrito, siríaco, sogdiano, persa e uigur, descobertos em inícios do século XX nas grotas budistas de Dunhuang pelos orientalistas europeus Aurel Stein e Paul Pelliot, que seguiram os passos do peregrino chinês Xuanzang. No inconsciente chinês, tudo isso ainda está bem vivo.
Atualmente, já está firmemente estabelecido que as Rotas da Seda começaram a desaparecer lentamente da história com o impulso marítimo do Ocidente em direção ao Leste, a partir de fins do século XV. Mas o golpe mortal veio em fins do século XVII, quando os russos e os manchus chineses dividiram a Ásia Central. A dinastia Qing destruiu o último império pastoral nômade, os jungares, enquanto os russos colonizaram a maior parte da Eurásia Central. A economia das Rotas da Seda – na verdade a economia de base comercial do grande interior eurasiano – entrou em colapso.
Agora, o ambiciosíssimo projeto chinês da ICR vem invertendo a expansão e a construção de um espaço eurasiano do Leste para o Oeste. Desde o século XV – com o fim do Império Mongol das Estepes – o processo sempre se deu do Oeste para o Leste, por via marítima, impelido pelo colonialismo ocidental.
A parceria China-Irã talvez tenha a capacidade de vir a se tornar o emblema de um fenômeno global de tão longo alcance quanto as empreitadas que se estenderam do século XV ao século XX. Em termos geoeconômicos, a China vem consolidando um primeiro passo para solidificar seu papel de construtor e renovador de infraestrutura. O próximo passo é construir seu papel de administrador.
Mackinder, Mahan, Spykman – todo o aparato conceitual do “rule the waves” está sendo ultrapassado. A China talvez tenha sido uma exaurida potência Rimland até meados do século XX. Agora, ela se posicionou como uma potência Heartland. Lado a lado com a “parceira estratégica” Rússia. E lado a lado com um outro “parceiro estratégico” que, por acaso, foi a primeira potência eurasiana da história: o Irã.
Artigo publicado em https://www.brasil247.com/blog/ira-china-a-conexao-rotas-da-seda-do-seculo-xxi