Janio, o STF não é só uma piada. É a tragédia de um Brasil sem regras. Por Fernando Brito
Com muito mais fidalguia do que eu tenho no título, Janio de Freitas trata hoje, em sua coluna na Folha, de dois atropelos à Constituição praticados por seu suposto guardião, o Supremo Tribunal: a decisão de que retroage a Lei da Ficha Limpa e a de
determinar o cumprimento de pena antes de esgotados os recursos judiciais.
São coisas tão chocantes que fariam, no Direito pré-Moro, os ministros do STF serem reprovados num teste de primeiro ano de qualquer escola jurídica. Retroatividade da lei é algo que só se aplica onde o legislador previu essa possibilidade e jamais sob penas de inelegibilidade.
Mas a “hermenêutica criativa” de arrogantes emplumados como Luís Roberto Barroso descobriu que “ineligibilidade não é pena”, assim como “recolhimento domiciliar noturno” não é prisão.
Ajudados, claro, por uma imprensa e uma chusma de cabeças primárias, que acham que a lei pode e deve variar de acordo com o freguês ser de sua simpatia.
Falta só a eles e ao STF firmarem o que já se pratica: Constituição não é lei, mas declaração de intenções, a ser torcida para lá ou para cá daqueles que o insuspeito professor Roberto Roberto chama de “11 mandarins”.
Já ouviu a última do Supremo?
Janio de Freitas, na Folha
O papagaio não saiu de cena por desgaste de imagem ou desgosto do humor. Com séculos de serviços que punham risos nas caras humanas de cansaço e desengano, o bom papagaio viu-se abandonado pelas pessoas áridas que nos tornamos. Sujeitos a circunstâncias antipáticas, sempre mais perplexos, forçados a ser o que nunca fomos, hoje em dia temos que perguntar: “Sabe a última do Supremo?”, “Já ouviu a última da Câmara?”, “Ah, e a do Gilmar, hein, já te contaram?”.
Pois é, a última do Supremo. A maioria de suas eminências decidiu vetar também os pretendidos candidatos que, de algum modo, infringiram os termos da Lei da Ficha Limpa antes que essa lei surgisse em 2010. Talvez muitos deles merecessem ser alijados da política. Mas o velhíssimo preceito de que a lei não retroage, ao que se saiba, não foi retirado da legislação. Nascido para prevenir leis criadas contra desafetos, com invocações ao passado, é um preceito fundamental em eleições de limpidez razoável.
Leis têm certa semelhança com estatísticas: cabeças espertas as viram do avesso. Os malabarismos jurídicos podem muito, mas entender que ocorram no Supremo é penoso. Afinal de contas, no Supremo supõe-se o último chão firme antes do abismo. Vá lá, gilmarmente arenoso -mas ainda chão.
Além de espantos menores produzidos nas duas turmas em que se dividem os ministros do Supremo, com casos problemáticos decididos apenas por três votos a dois -o enroscado afastamento de Aécio Neves do Senado, com sua retenção domiciliar noturna, é um dos muitos -há ao menos outra acrobacia ainda dividida entre aplausos raivosos e vaias estarrecidas.
Trata-se da prisão de acusados que têm a condenação confirmada em segunda instância. Uma decisão do Supremo que introduz no regime nascido em 1988 modificações muito mais profundas do que aparentam. A começar de que abandona o preceito da Constituição, próprio da dedicação dela aos direitos humanos, de que o acusado só é propriamente condenado, e pode ser preso, depois de esgotados todos os seus recursos judiciais. E a segunda instância é só o meio do caminho.
A maior presença do Supremo nestes tempos conturbados do Brasil não tem contribuído para reduzi-los, na intensidade ou no tempo. Como nos dois exemplos maiores dados aqui, o Supremo induz à impressão de que se substitui à Constituição, onde a considere insatisfatória, substituindo também o processo normal de alterá-la. Mas o caminho mais curto para chegar-se a um Brasil admissível seria, até imprevista prova em contrário, seguir-se com rigor milimétrico a Constituição que nem sequer mereceu, até hoje, ser posta em prática por inteiro.
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