Aldeia Nagô
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Jeitinho suicida por Cristovam Buarque

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

Muito antes dos céus
se prepararem para a chuva, as tragédias no Rio, São Paulo
e outras cidades já estavam em preparação. As tragédias são produto da
natureza
e dos seres humanos, por suas ações e omissões.


Há um século,
libertamos os escravos sem fazer a reforma agrária e sem considerar que
isso
forçaria as migrações em direção às cidades. Desde os anos 30, iniciamos
o salto
para a industrialização, aumentando a migração. E submetemos nossos
projetos de
infraestrutura urbana à vontade e à voracidade de um modelo de
desenvolvimento
perdulário e concentrador.

A consequência é que
as cidades estão pagando pelos erros e omissões do passado. Atraímos
migrações e
usamos recursos para viabilizar a indústria automobilística, e não para
dar
segurança aos moradores. Em vez de urbanizar os morros, blindamos os
caminhos
por onde a água vazaria.
Fazemos nossas
cidades sobre o alicerce dos "jeitinhos" e por governos sem visão. Em
países
ricos e responsáveis, vias são construídas respeitando as águas, com
fortes
investimentos na sua drenagem e atendendo aos direitos sociais das
maiorias –
que são respeitadas com os investimentos urbanos necessários. Esses
países levam
em conta o longo prazo. Nós ficamos presos no imediato, não levamos em
conta o
futuro.

Resolvemos
o problema
de cada pedaço de asfalto sem considerar que, um dia, todo o território
estará
asfaltado; deixamos que a pobreza expulse cada brasileiro do campo, sem
perceber
que, um dia, as cidades estarão superpovoadas; toleramos construções em
ladeiras
vulneráveis, sem considerar que um dia as fortes chuvas, sem terem para
onde
escorrer, arrastarão mulheres e crianças, soterrando-as. O Brasil
construiu suas
cidades como se as chuvas jamais fossem acontecer com a densidade
concentrada
que só ocorre com certa raridade – mas que acontece. E para não mudarmos
o
modelo de desenvolvimento e o imediatismo que norteiam as decisões,
vamos dando
"jeitinhos", como se as chuvas nunca viessem em densidades infernais,
mas
previsíveis no longo prazo; usando políticas públicas que privilegiam
apenas a
solução de problemas de uma parte pequena e privilegiada da
sociedade.
A
natureza é
paciente, mas não tolera "jeitinhos".

Não podemos jogar a
culpa somente nos atuais governantes, nem apenas nos governantes locais,
nem
mesmo em todos os governantes. A culpa é da nossa cultura da preferência
pelo
imediato e do pavor à prevenção. A culpa não está só nos céus. A chuva
não
escolheu o Rio. Foi o Brasil que escolheu o caminho da imprevisão.
Fizemos a
opção pelo imediatismo, pela concentração, pela industrialização, pela
urbanização apressada, com infraestrutura incompleta.

A tragédia vem da
"chuvomissão". As chuvas aumentam de volume, os governantes escolhem
investimentos que não levam em conta o longo prazo; a omissão fecha os
olhos, os
ambientalistas não são ouvidos; o resultado é a tragédia.

Esse é um problema
que nenhum governante vai resolver, se o Brasil continuar com a prática
do
jeitinho suicida: os baixos salários são compensados com baixa
exigência, com
aposentadorias precoces, vale-transporte, vale-refeição; a pobreza é
compensada
com bolsas assistenciais; a falta de habitação, com a tolerância com a
ocupação
irregular do solo; a falta de estadistas para mudar o futuro do país,
com
políticos geniais no convencimento de que tudo vai bem.

Certamente que os
governadores e prefeitos precisam fazer seus deveres de casa, mas nenhum
conseguirá resolver os problemas de sua cidade se o Brasil continuar
desprezando
o futuro. Comemorando o aumento do número de carros, vias asfaltadas e
viadutos
construídos, em vez de implantar um novo modelo de desenvolvimento que
comemore
a moradia, a ocupação regular do solo, o respeito ecológico.
Enquanto isso não for
feito, a chuva e a omissão continuarão a provocar tragédias cíclicas,
gritantes
e visíveis, ao lado de outras, permanentes, mas que nos negamos a ver,
na saúde,
na pobreza, na educação, na migração por necessidade de sobreviver.
Estas, sim,
as verdadeiras causas.
 
Cristovam
Buarque
é Professor da
Universidade de Brasília e Senador pelo PDT/DF

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