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“Judiciário perdeu a chance de consolidar a democracia”, diz Boaventura de Sousa Santos. Por Renato Dias

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Intelectual refinado, o maior sociólogo do mundo em atividade no século XXI, Boaventura de Sousa Santos diz, com exclusividade ao Brasil247.com, que Honduras, em 2009, com Manuel Zelaya, Paraguai, 2012, com a queda de Fernando Lugo, e Brasil, no turbulento ano de 2016, com a deposição de Dilma Rousseff, seriam golpes parlamentares de novo tipo.

Sob os olhares de Lucas Ribeiro, ex-presidente da UEE [GO] e da UJS que monitorou a Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo, de Guilherme Oliveira Brito, jornalista e historiador, além das lentes de Juliana Dias Diniz, jornalista formada na UFG, MBA em Mídias Digitais pela Cambury e pós-graduanda em Cinema, na UEG, Boaventura de Sousa Santos conversou por 45 minutos.

Socialista, o pesquisador da Universidade de Coimbra, Portugal, diz que a China é uma ditadura. O autor formula críticas a Cuba, antiga farol das esquerdas revolucionárias dos anos 60 e 70 e que ainda influencia setores da intelligentsia brasileira. O professor analisa a crise na Grécia e aponta os limites do Syriza no poder, coligação de esquerda radical grega.

Leia a íntegra da entrevista:

Golpes pós modernos

Boaventura Sousa Santos – Golpes parlamentares de tipo novo, que fazem uma interrupção constitucional, democrática, sem nenhuma alteração na Constituição, de fato. Na aparência de total normalidade constitucional. A opinião pública – nacional e internacional – viu claramente que a presidente da República, Dilma Rousseff, não cometeu nenhum crime de responsabilidade. Em um sistema presidencial em que não há moção de censura, a única possiblidade de substituição era esperar até as próximas eleições, em 2018. Mas as forças de direita entenderam que era demasiado tempo, estavam com pressa e provocaram efetivamente um golpe com grande apoio das mídias, controladas por sete famílias. Com uma colaboração passiva e ativa do sistema judiciário. Um golpe parlamentar-judicial. Judicial por quê? Porque o Supremo Tribunal Federal tinha meios para impedir que o impeachment avançasse.

O impeachment foi presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. O sistema judiciário brasileiro perdeu uma oportunidade extraordinária de consolidar a democracia. O sistema judiciário não tinha de fato nenhuma razão de queixa em relação aos governos dos últimos 13 anos, porque não só a carreira judiciária, o sistema judiciário foi muito apoiado institucional e financeiramente pela União, pelos governos Lula e depois por Dilma Rousseff, com o fortalecimento da Polícia Federal, que inclusive na investigação criminal teve um avanço extraordinário durante os últimos 13 anos. O sistema judiciário não tinha nenhuma razão corporativa, digamos assim, para avançar contra o governo, como acontece por vezes em países em que o judiciário aproveita o seu poder para se vingar por sentimento, por queixa, contra governantes. Ocorreu isso recentemente em Portugal. Não é o caso, portanto, perdeu-se uma grande oportunidade para o sistema judicial brasileiro fazer realmente uma faxina de toda a corrupção, de todos os partidos, obviamente…

Perseguição judicial seletiva

Boaventura de Sousa Santos – A perseguição a Dilma Rousseff e a Luiz Inácio Lula da Silva foi seletiva, sem dúvidas. Foi seletiva. Até porque se nós compararmos com situações que ocorreram nos anos em que, por exemplo, o presidente da República era Fernando Henrique Cardoso, o contraste é flagrante. Só para lhe dar um exemplo, quanto à questão dos foros privilegiados, como sabem, quando Dilma Rousseff convidou Lula para o governo foi um barulho enorme dizendo que ela estava a fazer isso para ele fugir da justiça. Como sabem, não era para fugir da justiça, era apenas para ser julgado pelo STF. Fernando Henrique Cardoso fez exatamente o mesmo com Gilmar Mendes nos anos 1990, quando ele o Procurador-Geral da União e perante às ações que estavam eventualmente a ser preparadas por juízes federais contra Gilmar Mendes.

Houve, portanto, um decreto, penso que até foi uma medida provisória, de Fernando Henrique Cardoso, no sentido de que, entre outros altos funcionários do Estado, o Procurador-Geral da República, o Procurador-Geral da União ou Advogado-Geral da União, não sei exatamente o termo, também tivesse foro privilegiado. Com isso, Gilmar Mendes fugiu, naturalmente, ao controle da primeira instância, também não fugiu à justiça, obviamente, mas ficou sob controle. Na altura, isso foi feito e não houve nenhuma reação. Ninguém disse que Gilmar Mendes iria fugir da justiça ou o Fernando Henrique estava a obstruir a justiça, neste caso concreto, como sabe foi isto. Portanto, há dois critérios, dois pesos, duas medidas.

A Lava-Jato, a meu entender, tem sido, se nós compararmos a Operação Lava-Jato, sediada em Curitiba e a que está sediada no Rio de Janeiro, por exemplo, obviamente que a operação sediada em Curitiba tem tido uma dinâmica muito diferente da do Rio de Janeiro. A do Rio de Janeiro realmente não é tanto contra gente do PT, mas investiga também outros partidos, como PSDB e PMDB. Isso dá a entender que, há dois pesos, duas medidas, uma certa seletividade.

Operação Mãos Limpas

Boaventura de Sousa Santos – A Operação ‘Mãos Limpas’ teve outra logica e outra dinâmica. Na Itália não há Procurador- Geral da Republica. O Ministério Público não tem uma cabeça. Os procuradores são autônomos. De fato houve uma perseguição da corrupção independente da orientação politica. É evidente que ela se dirigiu mais aos partidos da direita, isto é, Democracia Cristã e Partido Socialista, que eram os únicos que tinham estado no poder. Depois da segunda guerra mundial, houve um acordo com os aliados de que o Partido Comunista Italiano podia participar de governos locais, não do nacional. Os comunistas nunca tinham estado no governo nacional e, portanto, a corrupção atingiu mais os outros partidos. Haviam três associações de magistrados na Itália: uma de direita, conservadora; uma comunista e uma socialista. As três associações estiveram envolvidas nas ‘Mãos Limpas’.

As ‘Mãos Limpas’ tiveram uma outra lógica, houve realmente um levante do sistema judiciário contra a corrupção que tinha atingido níveis disfuncionais para a própria economia. Como sabe, na área da corrupção, as polícias de investigação normalmente não avançam muito na prova porque é impossível quase se fazer prova. A única possibilidade é a delação. É a denúncia. Na delação premiada, que é outra coisa, a delação premiada é obter uma recompensa por isso. No caso da Itália não foi isso, mas é evidente que foram empresários que tinham que pagar comissões e estavam a pagar muitas comissões e cada vez mais caras para obras do estado e começaram a falar e a denunciar. No meu entendimento, a Operação Mãos Limpas teve uma lógica inicial diferente da Lava-Jato. Claro que ela teve depois uma dimensão tão grande que acabou por desestruturar o sistema político italiano, porque realmente os partidos que tinham estado no poder eram esses. Uma lógica que não tinha conotação política.

A Lava-Jato têm aspectos que não encontramos nunca nas ‘Mãos Limpas’, de ilegalidades. Como por exemplo, um ato de flagrante ilegalidade, que se o Conselho Nacional de Justiça funcionasse deveria ter sido imediatamente disciplinado, foi o fato de o juiz federal Sérgio Moro ter vazado para a imprensa uma conversa telefônica entre Lula e a presidente da República, Dilma Rousseff, quando isso é proibido na maneira como ocorreu, porque Dilma Rousseff tinha foro privilegiado. Isso é uma ilegalidade em qualquer parte do mundo e foi extremamente prejudicial. Aliás, eu devo dizer que depois desse vazamento para a imprensa houve de fato um aceleramento da Lava-Jato. Esse vazamento contribuiu para o avanço da Lava-Jato. Há aqui elementos que nos levam a fazer crer que há uma conotação política. O juiz federal Sérgio Moro é extremamente acarinhado pelos americanos e foi considerado uma personalidade do ano pela revista Time. É convidado correntemente para os Estados Unidos. Que veem nele um líder do futuro. Politizam de uma maneira muito grande essa atividade do Sérgio Moro porque ela tem realmente por objeto um governo que era hostil, que os Estados Unidos consideravam hostil.

Governos do PT

Boaventura de Sousa Santos – Os governos do PT, fundamentalmente por duas razões. Não é porque o governo do PT fosse socialista. Nem de longe, não é? É basicamente por causa dos BRICS, portanto, dessa articulação entre a Rússia, a China, a Índia, a África do Sul e o Brasil no sentido de se criar uma aliança comercial entre estes grandes países de desenvolvimento intermediário que podiam fazer alguma rivalidade ao dólar. O comércio internacional entre esses países podia ser feito nas suas moedas nacionais e não em dólar. É uma ameaça total aos Estados Unidos. Porque, como se sabe, os Estados Unidos acertam basicamente na credibilidade do dólar internacional. Para um país que tem 20 trilhões de dólares de dividas, se não houver credibilidade no dólar, cai o país. Nós temos guerra, e temos intervenção dos Estados Unidos em todos os países onde haja recursos naturais. A própria Venezuela, onde as lideranças locais têm cometido muitos erros e cometera muitos erros durante os últimos anos, particularmente depois da morte do Hugo Chávez.

Entrevista publicada originalmente no 247

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