Aldeia Nagô
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Ler devia ser proibido por Guiomar de Grammond

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

"A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia
ser proibido.


Afinal de contas, ler faz muito
mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os
incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz
à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo
social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O
primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram
meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos
que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se
esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e
amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A
criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas
do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a
leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a
leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a
leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao
trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da
imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a
extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o
conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é
apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada
mais?

Ler pode provocar o inesperado.
Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem,
necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a
imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o
sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos
fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a
vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há
horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas
jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos
impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às
escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse
gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente.
Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e
civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência.
Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em
seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode
gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo
administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verosimilhança.
Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos
soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a
fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista
de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho.
Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender
formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as
filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro
para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos
incómodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo.
Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é
mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para
se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido
apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais.
Seja em filas, em metros, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não
para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um
poder, e o poder é para poucos.

Para obedecer não é preciso
enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra
é inútil.

Além disso, a leitura promove a
comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos… A leitura é obscena.
Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público, o secreto, o próprio. A
leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras
histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a
leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem
perigosamente humano."

Sobre o autor: GRAMMON, Guiomar de. In: PRADO, J. &
CONDINI, P. (orgs.).
A formação do leitor: pontos de vista. Rio
de Janeiro: Argus, 1999. pp. 71-3.

Ccolaboração para publicação: Ingrid Bianchini

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