Lições Africanas de Hoje por Fernando Conceição
benefício exclusivo do marabu a que deve obediência. Marabus são
"líderes espirituais", espécie de babalorixá ou "pai de santo", como se
diz no Brasil. Têm forte poder e influência no Senegal, Gâmbia, Mali,
Guiné-Bissau e por toda a África muçulmanizada. Vivem cercados de
mistério, em feudos interioranos. Pregam o Corão.
Políticos
sagazes, como o presidente senegalês Abdoulaye Wade, fazem barulhentas
procissões reverenciais a esses "sacerdotes". Se ao final do dia um
talibé volta à morada sem nada nas mãos, o marabu pode puní-lo a seu
modo. Em maio, uma criança foi espancada com tal brutalidade que entrou
em coma. Com hematomas, foi socorrida. ONGs internacionais protestaram,
as autoridades senegalesas simularam ação. O marabu desapareceu por uns
tempos.
Esmolam
por capitais e vilarejos, mulambentos, descalços, sol a sol. Nas idas e
vindas que fiz a regiões profundas, entre Dakar e Bissau e Bamako, se é
assediado por esses maltrapilhos. Como há muitas crianças vagando
abandonadas, o viajante não sabe qual realmente é talibé. A África,
mítica, cantada em verso, prosa e batuque alhures, inclusive por
encantadores de serpentes na Bahia, é uma ilusão. Não é o espaço
geográfico ou mental ao qual teríamos de nos referenciar sempre com
orgulho.
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dias embrenhado numa de suas regiões podem calar alto no espírito de um
afrobrasileiro. Sentimentos contraditórios, misto de alegria e
tristeza, dor e emoção. O Coração das Trevas, de Joseph Conrad,
permanece leitura atual para se entender parte das contradições
africanas. Ao percorrer as capitais do Senegal, da Guiné, do Mali, e
também viajando por suas entranhas, por Gâmbia, em inseguros meios de
transporte da gente local, sobressai ao estrangeiro a distância entre o
mito, o romantismo e a realidade.
Nada
disso se poderá ver no ôba-ôba de festivais como o Fesman, marcada para
realizar-se em novembro deste ano em Dakar. Festival este que passa ao
largo dos temas frequentes das conversas com a gente comum senegalesa.
É uma festa que, em termos locais, é vista como estratégia de
fortalecimento político do grupo do presidente, que depois de 10 anos
no poder, que colocar no posto o seu filho, Karim Wade. Este,
atualmente, é o dono do cofre do Estado. Há frequentes denúncias de
desvios, enriquecimento ilícito, corrupção. Em Dakar os ricos são muito
ricos, e vivem apartados da maioria de miseráveis.
A
grande batalha é não pela comida, mas pela "alma". O islamismo ali há
séculos faz história. Como a escravidão, até hoje aberta em países como
Mauritânia e Sudão. Exército de missionários e pastores de denominações
cristãs várias insistem na conversão dos africanos. Que, por sua vez,
dificilmente abandonam suas crendices denominadas animistas. Na
conjuntura mística do cotidiano, o cristianismo e o Islã, estranhos ao
ambiente, têm de se adaptar a rituais nativos de ancestralidade.
Esses
rituais mantêm a estratificação étnica, definem as hierarquias. Todo
sujeito com quem conversei se identificava não como senegalês, ou
guineense, ou maliano. Mas antes, da etnia tal ou qual. No Mali as
tradições árabes reforçam o pertencimento étnico discricionário. Na
desgracada Bissau, assassinatos políticos seguem esta lógica. Pele mais
clara é signo de superioridade ou desconfiança. Senti convivendo em
Bamako com um tuareg cristianizado, chefe de uma "missão" para a
juventude. Sob suas asas vive um séquito, algumas crianças e adultos
como serviçais.
Animismo
e demais religiões não debelam a miserabilidade, padrão da maior parte
do povo, que sobrevive mal. Rezas, cultos, rituais fetichistas. Se isso
tem alguma relação direta com o Brasil místico, essa ancestralidade
pode ser vista como razão de atraso. Aqui e lá. Crianças e mulheres são
inferiorizadas, traficadas, serviçais de tudo e muitos abusos. A noção
de cidadania inexiste. A idéia de direitos vale apenas para quem usa
uniforme de polícia, avental ou arma de autoridade.
Chineses,
capitalistas árabes, europeus e o narcotráfico fazem negócios com a
elite local, que agradece exibindo carrões de luxo e jóias. Pessoas
comuns que transitam no salve-se quem puder das perigosas estradas, são
naturalmente humilhadas. Se parte, não sabe se chega ao destino nem
quando. Dá medo. Motoristas e passageiros vão sendo ameaçados e
extorquidos, de forma sádica, nas inúmeras barreiras de controle. Um
trajeto previsto para durar 24 horas, dura 48. No calor, bebês, mães
que amamentam, velhos e doentes viajam em transportes sem água, sem
sanitário. Detidos nos checkpoints dormem ao chão, na imundície, ao
relento das vias que cortam o deserto. Ninguém protesta ou se queixa.
Ai de quem! Para quê? Para quem? Reza-se.
Na
África que vi, de corrupção, autoritarismo de autoridades e
religiosidade doentia, crianças e mulheres valem como cães. A beleza é
só um detalhe na paisagem.
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*Jornalista,
professor da Universidade Federal da Bahia, é pesquisador-visitante da
Freie Universität Berlin (Alemanha). Viajou aos países africanos entre
junho e julho de 2009, em busca de dados para a pesquisa sobre a
importância do geógrafo Milton Santos, de quem produz a biografia
autorizada.
Artigo originalmente publicado em http://www.irohin.org.br