Lições das multidões árabes por Emiliano José*
Quando tínhamos todas as respostas,
mudaram as perguntas. A frase foi recolhida de um muro de Quito por
Eduardo Galeano, e está em seu saboroso Palavras Andantes, e tem o
condão de nos colocar diante do mundo de hoje, do atual mundo,
atualíssimo mundo, e suas revoluções.
Tínhamos, queríamos ter, todas as
respostas, especialmente nós, de esquerda, acostumados a alguma regras
que os manuais nos ensinavam, e que agora vão sendo subvertidas pela
realidade, dura e maravilhosa realidade dos povos em luta. As multidões
não leram os nossos manuais. E as nossas regras, coitadas, tão
perfeitas, perderam atualidade. Ou não? Quem sabe…
A direita,
também, e mais do que nós da esquerda, anda tonta. Desde que Fukuyama
andou falando besteiras em tempo de sucesso do neoliberalismo. Se é
verdade que a história não caminha para nenhum fim predeterminado e
glorioso, como imaginávamos nós em tempos não tão remotos, também é
absolutamente verdadeiro que a história não terminou, como imaginou
Fukuyama no seu delírio e prostração diante do deus mercado.
As
insurreições dos países árabes revelam não apenas o admirável mundo novo
das novas tecnologias, mas a vontade política das multidões a sacudir
as nações, subverter ordens, suscitar novas perguntas, desafiar o
pensamento revolucionário e democrático da humanidade.
No
pensamento ocidental, havia quase que uma sacralização da ordem árabe,
de suas estruturas autoritárias, como se nada pudesse perturbá-la ou
como se uma eventual perturbação político-social nunca pudesse
ultrapassar a lógica interna de suas culturas, como se a democracia não
pudesse contaminar aquele mundo. Entre nós havia até uma aceitação quase
passiva de práticas profundamente desumanas e contrárias aos direitos
humanos mais elementares, e cito o tratamento dado às mulheres. Não
tenho ilusões sobre mudanças súbitas na concepção de vida árabe, porque
as coisas nunca se dão assim. A cultura é bela e é resistente. Mas, as
revoluções árabes nos permitem dizer com tranqüilidade que nada será
como antes. No mundo árabe e no restante do mundo.
É provável que
alguns dos nossos à esquerda queiram refletir sobre a espontaneidade
dos movimentos árabes e sobre as dúvidas que cercam o futuro. Já houve
quem o fizesse. O essencial, no entanto, é que tais movimentos, e salve,
salve a espontaneidade das multidões, revelam a sede profunda de
democracia e de liberdade que se espraia pelo mundo. E essa sede é
derivada não de uma conspiração proveniente dos centros hegemônicos do
mundo, menos ainda dos EUA, que estavam afinados com muitos dos regimes
árabes que caíram ou que estão claudicando neste momento.
Não se
trata apenas de reivindicações em torno de uma democracia formal. Não se
trata apenas de eleições livres, embora elas sejam fundamentais. O que
está em jogo nessa movimentação, que não é apenas árabe, é um desejo
muito mais profundo de participação dos povos no destino de suas nações e
no destino do mundo. De um jeito ou de outro, os rios correm para o
mar.
De um jeito ou de outro, os povos do mundo, de modo
particular os pobres do mundo, estão percebendo que o mundo só tem
salvação por eles mesmos. Um olhar profundo e generoso sobre a
humanidade só pode vir deles. É este o significado que deve ser acolhido
não apenas pelos árabes, mas por todos os que imaginem uma Terra mais
justa, mais acolhedora, mais respeitadora dos direitos humanos. Mais
globalizada para todos.
Não se queira tolher participações
populares. É inútil. Há uma torrente globalizada, de uma sociedade em
rede, de pobres que se articulam, de multidões que não se conformam mais
em ficar à margem do destino do território onde vivem, em ficar à
margem da história. Não se trata de uma profecia. Nem deve assustar
ninguém.
Trata-se de saudar esse novo momento na história,
recolher os ares e lições desse novo admirável mundo novo, e compreender
que a democracia não pode ser apenas a democracia de eleições. Tem que
ser muito mais. Tem que admitir a participação direta dos povos. E com
urgência. As labaredas árabes estão a nos ensinar. Ninguém pode dizer
que não foi avisado.
No caso brasileiro, é verdade aquilo que o
professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de
Minas Gerais, Leonardo Avritzer, disse à CartaCapital de 2/3/2011,
sobre o fato de a sociedade civil não ser nem tão apática quanto se
supõe, nem tão alijada como se imagina. Sem dúvida alguma, como ele diz,
tem aumentado a influência da sociedade civil na elaboração das
políticas públicas. Cresceu a participação dos conselhos. Não há uma
sociedade amorfa, como querem alguns desesperançados na política.
E
a participação da sociedade civil tende a crescer, o protagonismo do
povo tende a se acentuar. As multidões se movimentam. No mundo e no
Brasil. As lições do Oriente estão quentes. Os que governam, os que
estão no Legislativo, no Executivo, no Judiciário não devem perder isso
de vista. Não podem se isolar em seus gabinetes. Têm de escutar o clamor
das multidões, mesmo quando o barulho não seja tão grande. Escutar a
voz das ruas é um conselho sábio, e que vem de tempos imemoriais. Ainda
para recorrer à entrevista do professor Avritzer, não custaria, por
exemplo, ao Judiciário permitir a participação da sociedade civil na
sabatina dos juízes indicados ao Supremo e até outros mecanismos que
garantissem uma participação mais decisiva do povo na organização do
poder judiciário.
A reforma política, ora em andamento no
Congresso Nacional, deveria levar em conta com muito carinho a questão
da participação popular, quem sabe aperfeiçoando e radicalizando
aspectos da participação direta da população. Cada vez mais, é
necessário encarar essa participação como um aspecto essencial da
democracia contemporânea. Ela pode oxigenar a vida democrática, torná-la
mais de acordo com os tempos que vivemos, nos quais o protagonismo do
povo cresce, o papel das multidões torna-se cada vez mais decisivo.
Ignorar isso é pecado mortal. É trabalhar contra a democracia, que não
pode ser mais apenas e tão somente o regime de eleições formais, tal e
qual nos acostumamos. É preciso dar outros passos. Para assegurar,
usemos uma palavra da moda, a sustentabilidade democrática.
*jornalista, escritor, deputado federal (PT-BA).
Artigo publicado no site da Carta Capital (10/03/2011)
Mais informações em www.emilianojose.com.br