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Livro revela como o programa Bolsa Família transformou a vida de mulheres por Paulo Cesar Nascimento

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Livro revela como o programa Bolsa Família transformou a vida de beneficiárias oriundas de regiões secularmente identificadas com a submissão feminina.

Dos rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais de uma centena de mulheres. Beneficiárias do Bolsa Família, essas brasileiras abriram as portas de seus casebres e, não raro, a própria alma, para contar suas vivências e aprendizados com os recursos transferidos regularmente pelo governo federal no âmbito de seus mais extenso programa destinado a mitigar a pobreza.

Os densos e francos relatos, que em muitas ocasiões adquiriram contornos de pungentes confidências, permitiram trazer à luz resultados muito mais abrangentes na vida dessas mulheres que a subsistência proporcionada pelo auxílio financeiro. O recebimento da renda monetária e o controle exercido por elas sobre o dinheiro – pois são as titulares do cartão que permite sacar o benefício na boca do caixa – modificaram substancialmente a percepção que tinham sobre a própria vida. Houve ganho de autonomia e liberdade de escolha, de dignidade e respeitabilidade na vida local. Em suma, passaram a ter voz em regiões secularmente identificadas com a submissão feminina.

As profundas mudanças comportamentais no universo feminino do Bolsa Família constituem os achados de um estudo de fôlego desenvolvido a quatro mãos pela socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo, professora titular do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e pelo filósofo italiano Alessandro Pinzani, professor adjunto de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Concebida com a finalidade de averiguar se, como e em que medida a nova renda e sua regularidade incidiam sobre a vida cotidiana das famílias e, em particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível em breve no livro Vozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp.

Walquiria chama a atenção para o fato de a pesquisa ter sido conduzida por autores provenientes de formações intelectuais distintas (filosofia e ciências sociais), além de provir de diferentes países (Itália e Brasil). Um dos motivos principais da cooperação foi a tentativa, por um lado, de aproximar a filosofia política da análise empírica da realidade social e, por outro, de fortalecer o diálogo interdisciplinar existente desde a fundação da sociologia. De acordo com ela, a simbiose resultou em uma diferença de olhar e de perspectiva teórica que proporcionaram ênfases e tons diversos ao tema abordado.

“Consideramos o estudo como um experimento interpretativo, no qual estiveram presentes o diálogo entre várias teorias contemporâneas normativas de cidadania, de democracia e de autonomia e seu confronto com a realidade das mulheres em estado de extrema pobreza, alvos do Bolsa Família”, enfatiza.

Impactos do dinheiro

Foi de Walquiria a iniciativa da empreitada, a partir de sua percepção de que o programa teria impactos na subjetividade das mulheres, pelo fato de o Bolsa Família conceder benefícios monetários. Segundo a “Sociologia do Dinheiro” – uma das várias teorias que ofereceram respaldo conceitual e analítico na avaliação do material empírico recolhido pelos docentes na pesquisa – o dinheiro é uma instituição diferente, capaz de transformar os indivíduos. Desse modo, argumenta a cientista, a destinação de um valor financeiro é completamente diferente da entrega de uma cesta básica, porque possibilita o desenvolvimento de determinadas capacidades e competências que o dinheiro, em sua função comunicativa e simbólica, acaba estimulando, como a liberdade de escolher minimamente a forma de utilizar o recurso.

A investigação requereu viagens de pesquisa ao longo de cinco anos, desde 2006, que Walquiria empreendeu a princípio sozinha e mais tarde acompanhada de Alessandro, nas quais foram entrevistadas 150 mulheres que recebem o Bolsa Família em regiões tradicionalmente consideradas as mais desassistidas do país: sertão nordestino (Alagoas), zona litorânea de Alagoas, Vale do Jequitinhonha (MG), periferia da cidade do Recife, interior do Piauí, interior do Maranhão e periferia de São Luís (MA). São lugares onde a população é em sua maioria semianalfabeta, os níveis de escolaridade são baixíssimos, não existem opções de emprego e o Estado é pouco atuante.

“Escolhemos entrevistar beneficiárias que moram em áreas rurais ou em pequenas cidades do interior, por entender que sua situação se diferencia muito da dos pobres urbanos, objeto já de inúmeros estudos. É muito diferente ser pobre em algumas daquelas regiões e ser pobre na periferia de São Paulo, por exemplo, onde bem ou mal existem alternativas. Os pobres rurais se deparam com problemas diferentes, começando pelo isolamento geográfico que resulta, quase sempre, na impossibilidade de ter acesso a serviços públicos básicos, como escolas e postos de saúde”, justifica a professora.

Importante no processo de seleção e localização das entrevistadas, segundo ela, foi o apoio de contatos locais (pessoas diretamente responsáveis pela aplicação do programa, como assistentes sociais, gestores, prefeitos, ou ainda integrantes de movimentos sociais e intelectuais), que intermediaram encontros com muitas das famílias ouvidas. Mas na maioria das vezes as beneficiárias foram procuradas livremente, a fim de evitar direcionamentos de qualquer natureza. Conforme observa ainda a socióloga, não procederam a uma pesquisa estatística ou quantitativa, mas fundamentalmente qualitativa.

“Aplicamos em nosso trabalho de coleta de dados a técnica da entrevista aberta, e não a do questionário fechado, pois julgamos ser a única possível nesse tipo de investigação, exatamente porque pretendíamos alcançar alguns níveis da estrutura subjetiva dos entrevistados, buscando apreender mudanças mais profundas, morais e políticas, proporcionadas pelo benefício. Realizamos então longas entrevistas, munidos apenas de um roteiro de questões e na audição atenta da fala mais livre possível dos entrevistados”, esclarece a pesquisadora.

O método impôs a necessidade da realização de repetidas conversas e do estabelecimento de uma relação de confiança com os entrevistados, o que significou a dedicação de tempos longos tanto na coleta dos depoimentos, com o retorno ao campo ao menos mais de uma vez – o propósito era o de acompanhar a adaptação das famílias e, em particular, das mulheres à nova situação econômica proporcionada pelo programa –, quanto na reflexão sobre o material recolhido. Walquiria frustrou-se por não ter recebido apoio financeiro da Universidade e decidiu custear a pesquisa com recursos próprios, agendando as viagens em períodos de férias.

Economia doméstica

Conforme observam os autores do estudo, a pobreza é um problema complexo e, como tal, não admite uma solução fácil. Portanto, não pode ser resolvida simplesmente por meio de um programa de transferência direta de renda. Do mesmo modo, é um equívoco pensar que o Bolsa Família se limita a garantir a sobrevivência material de famílias destituídas e extremamente pobres, embora, salientam, a medida governamental tem o mérito de enfrentar importantes questões ligadas à pobreza. Uma delas é o início da superação da cultura da resignação, ou seja, da espera resignada pela morte por fome e doenças relacionadas à miséria: com o valor recebido, podiam comprar comida para a família e já não passavam tanta “necessidade” (termo este muito usado pelas entrevistadas para falar de carências e privações).

“Pudemos constatar nas entrevistas a imprescindibilidade da bolsa para continuarem vivendo”, apontam os docentes. “Na grande maioria das famílias pesquisadas, o repasse representa o único rendimento monetário percebido e, em vários casos, constitui a primeira experiência regular de obtenção de rendimento. Antes disso, a vida se resumia à luta diária para obter comida, que poderia vir desde a sua caça como da ajuda de familiares. Todas reconheceram que, se suas vidas eram duras, sem a bolsa o seriam ainda mais.”

Dona Amélia que o diga. Moradora de Pasmadinho (MG), 41 anos, mãe de dez filhos, com marido desempregado que faz bicos quando estes aparecem, ela salienta que agora a família já não passa fome, pois antes “às vezes, não tinha para jantar ou não tinha para almoçar”. Ao responder sobre o papel da renda na mudança da vida dura, não pestaneja: “Porque a gente tem mais liberdade no dinheiro. Pode comprar mais o que a gente quer.”

A dupla afirma que, em diferentes níveis, praticamente todas as mulheres registraram mudanças relevantes em sua vida material, embora um número importante entre elas se queixasse do valor insuficiente do auxílio (muitas o definiram como “uma ajuda”) para obter outras melhorias na vida e ganhar mais liberdade na escolha dos bens de consumo, e quase todas afirmassem preferir um trabalho regular.

De forma geral, a bolsa (cujos valores são periodicamente reajustados) é utilizada para comprar gêneros alimentícios básicos: arroz, farinha, feijão, macarrão, carne e leite. Mas à medida que as usuárias aprendem a planejar minimamente o uso do dinheiro, desenvolvem também a capacidade de fazer escolhas e passam a buscar opções capazes, por exemplo, de variar o cardápio familiar (“como optar por comer macarrão ou batata uma vez por semana”, ilustra Walquiria) e até a se permitir algumas “extravagâncias” impensáveis até então, como comprar bolachas e iogurtes para as crianças. Nesse processo em que se aprimoram no gerenciamento adequado dos recursos recebidos, acabam gradualmente por conseguir acesso a outros bens e confortos para a família. Para aqueles de quem a miséria extirpou qualquer chance de escolha, os avanços são notáveis.

Em Inhapi (AL), Dona Luisa, com 41 anos, mãe de oito filhos e avó de uma menina de 2 anos, conseguiu pintar a casa e comprar sofás e televisão com a bolsa de R$ 160,00 (valor em 2011) e mais algum dinheiro proveniente dos “bicos” do marido, ajudante de pedreiro, relata a pesquisa. Testemunhou com alegria a melhora que a bolsa trouxe a sua vida (ela e a família comiam melhor e de fato a vida melhorara bastante, contou) e revelou como conseguira se organizar para adquirir novos colchões. Economizara tostão por tostão, não contou para ninguém, e, de repente, comprou um colchão e depois, usando do mesmo procedimento, comprou os demais. Demonstrava muita satisfação com sua proeza e, principalmente, pelo fato de agora todos eles dormirem sobre “camas de verdade”. Os planos para o futuro incluíam a compra de uma geladeira.

“A casa e a aparência dessa família demonstravam pobreza, mas tinham tido um grande ganho na dignificação de suas vidas, que se manifestava nos gestos e modos de falar das melhorias da residência e da dieta alimentar. Disso se depreende que o Bolsa Família não se limita a sustentar as famílias que o recebem, mas dá a elas um certo fôlego que lhes estaria permitindo sair da sua atual situação de privação absoluta de bens”, analisa Walquiria.

Batom e separações

O fato de o emblemático cartão amarelo do Bolsa Família estar em nome das mulheres é considerado positivamente pela quase totalidade delas. A clássica resposta sobre essa questão é a de que elas são melhores gestoras das finanças familiares e de que seus maridos normalmente são incapazes de fazer compras adequadas às necessidades familiares ou gastariam o dinheiro em bebidas. No entanto, muito mais que referendar essa justificativa, a decisão do governo em destinar o benefício do programa às mulheres (muitas passaram a dispor de uma renda fixa pela primeira vez) representou, para as destinatárias, a conquista de maior independência e segurança. Em sua maioria, afirmaram se sentir mais livres (ou “à vontade”, nas palavras delas) e menos angustiadas no que diz respeito à capacidade de adquirir bens primários para suas famílias. Quase nenhuma delas entrega o dinheiro para o marido.

“A gente fica mais independente quando coloca [o cartão] no nome da pessoa mesmo”, afirmou de forma positiva e entusiasmada Dona Neusa, 36 anos e mãe solteira de três filhos, moradora no bairro do Carvão, em Maragogi (AL). “É, [ela] fica com mais direito, né? Porque a gente vive com mais direito. Já que as mulheres não têm nada, não trabalham, aí elas têm esse direito, né?”, ressaltou Dona Maria, de 29 anos, casada, com uma enteada de 9 anos, também da mesma região. “Tá certo assim, pois a mulher é mais econômica que o homem”, resumiu Dona Rosangela, do bairro Anjo da Guarda, na periferia de São Luís do Maranhão.

O caráter liberatório da disponibilidade de renda monetária pode ser também aferido no aumento de autoestima e de autonomização na gestão das próprias vidas e destinos das mulheres ouvidas. Passou a existir espaço para cuidados antes proibitivos com a vaidade – ainda que a compra de um simples batom ou creme para cabelo fosse carregada de um injustificado sentimento de culpa por um “desvio” na finalidade do dinheiro recebido –, sentiram-se mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo – houve aumento no número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais – e algumas poucas tomaram inclusive decisões morais difíceis, como conseguir desfazer casamentos infelizes, ainda mais em regiões onde é raro a mulher tomar a iniciativa de separações.

“A vida delas mudou porque o universo de escolhas se ampliou consideravelmente. E exercer o direito de escolha é uma questão fundamental para a democracia”, argumenta Walquiria. Com um orçamento da ordem de R$ 24 bilhões estimado para este ano e atendendo a um universo de 50 milhões de pessoas, o Bolsa Família e seus beneficiários são alvo de polêmicas que, na opinião de Walquiria, constituem um bom exemplo da repetição histórica do preconceito e da força dos estereótipos em relação aos pobres.

“Nos mais variados ambientes sociais eles são acusados de preferir viver do dinheiro da bolsa, em vez de trabalhar; de fazer filhos para ganhar mais dinheiro do Estado, entre outras. Essas acusações estereotipadas provêm, na maioria dos casos, de pessoas que não dispõem de informações a respeito do programa, como o valor da bolsa, por exemplo, que com certeza não poderia substituir um salário regular; ou sobre o fato de que as famílias recebem no máximo ajuda para três filhos, recentemente para mais dois em idade escolar e uma ajuda para dois adolescentes, entre 16 e 17 anos, enquanto os outros ficam excluídos; ou sobre o fato de que os beneficiários não dispõem de capacitações, pois em sua grande maioria são analfabetos ou pouco escolarizados; portanto, dificilmente conseguem emprego”, defende.

Controvérsias à parte, as mudanças na subjetividade das mulheres constatadas ao longo dos cinco anos da pesquisa convenceram Walquiria de que o Bolsa Família pode ser considerado uzi como um longo processo, uma construção da identidade, que altera a subjetividade –, ainda que de forma incipiente e observada a ressalva de que o programa estaria apenas começando a alterar a forma como estes indivíduos se enxergam.

Conforme salienta, se a alimentação e outras conquistas no campo da subjetividade estão sendo asseguradas, por outro lado as famílias ainda carecem do acesso a demais direitos sociais básicos – assistência social, saúde e educação – associados à transferência do benefício estatal.

Para ela, contudo, o fato de ser ainda muito insuficiente como tal não permite ignorar suas possibilidades de se tornar uma consistente política de formação de cidadãos, se complementadas por um conjunto mais amplo de políticas que visem aos direitos garantidos na Constituição de 1988. Nesse sentido, destaca, o Bolsa Família começa pela mais preliminar de todas as prerrogativas da cidadania, porque diz respeito ao mais preliminar direito: o direito à vida.

O campo de atuação de Alessandro Pinzani é a filosofia política. Ele ocupa-se, em particular, das teorias da justiça social. O convite da professora Walquiria para participar da pesquisa deveu-se a esse interesse específico. Ao explicar em que aspectos o BolQmília, como objeto de pesquisa, tornou-se importante e trouxe contribuições para as suas investigações, ele observa que, em geral, os estudos de filosofia política no Brasil tendem a permanecer em certo nível de abstração.

Há exceções importantes, frisa, como os projetos de pesquisa social realizados pelo Cebrap ou pelo Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia de Porto Alegre, entre outros. A tendência, no entanto, é a de estudar modelos teóricos sem preocupar-se muito com sua aplicabilidade à realidade social, econômica e política brasileira.

Ainda de acordo com ele, os modelos contemporâneos mais pesquisados no Brasil – como a teoria da justiça como equidade, de Rawls, ou a teoria discursiva do Estado e do direito, de Habermas – partem de pressupostos que no país são dados só parcialmente. Em particular, pressupõe-se que todos os cidadãos tenham alcançado e ultrapassado um nível mínimo de qualidade de vida. “Mas a situação brasileira é diferente, com quase um terço da população que vive perto da linha da pobreza definida pelo FMI. Minha intenção era investigar o que isso significa para a elaboração de uma teoria da justiça mais preocupada com sua concreta aplicação em uma realidade social específica”, salienta Pinzani.

“Ao mesmo tempo, analisar os efeitos de um programa de transferência direta de renda monetária como o Bolsa Família, me ofereceu a possibilidade de estudar a relação entre dinheiro e autonomia individual, que já foi tematizada por Marx e Simmel, entre outros, e que me interessava desde que comecei a ocupar-me da teoria das capabilities de Amartya Sen e Martha Nussbaum”, complementa.

Segundo ele, todos esses autores foram fundamentais para elaborar os fundamentos teóricos a partir dos quais foi possível interpretar os dados empíricos recolhidos na pesquisa de campo. Finalmente, era sua intenção voltar a um aspecto importante de uma tradição teórica, na qual ele afirma se reconhecer bastante: a Teoria Crítica.

“Os membros da chamada primeira geração de tal teoria, Adorno e Horkheimer, em primeiro lugar, acreditavam na importância de conjugar pesquisa empírica e teoria social e parece-me que esta visão seja ainda valiosa”, argumenta.

Em relação aos seus achados acerca dos impactos do programa na autonomia das beneficiárias, Pinzani faz questão inicialmente de ponderar que o conceito de autonomia é bastante complexo. Existem, em primeiro lugar, diferentes âmbitos, nos quais é possível falar em autonomia: moral, político, econômico. Em segundo lugar, autonomia é algo que se pode alcançar em diversos níveis. Não há necessariamente uma conexão entre o fato de possuir um alto nível de autonomia econômica, por exemplo, e o de possuir um alto nível de autonomia moral ou política.

“Em nossa pesquisa, partimos de uma definição mínima de autonomia, entendida como a capacidade de elaborar planos de vida e de atribuir direitos e deveres a si e aos outros. Tal definição se aplica aos três âmbitos anteriormente mencionados e deixa aberta a possibilidade de que o indivíduo alcance diferentes níveis de autonomia em cada um deles”, esclarece.

“Ao mesmo tempo, incluímos em nossa visão de autonomia a ideia, defendida em particular por Sen, de que a liberdade individual depende da existência de circunstâncias subjetivas e objetivas que aumentam ou diminuem as opções de ação e de formas de ser que os indivíduos consideram valiosas. Exemplos: a possibilidade de viver livre de doenças endêmicas, como a malária, implica na existência de políticas públicas dirigidas ao combate de tais doenças; a possibilidade de encontrar uma profissão que nos sustente depende da disponibilidade de trabalho na região na qual moramos.” Ao investigar se e em que medida um programa de renda monetária regular como o Bolsa Família contribuía para criar condições materiais capazes de permitir aos beneficiários desenvolver maior autonomia, os resultados coletados deixaram Pinzani moderadamente otimista: pode-se dizer que na vida das beneficiárias abriram fendas de liberdade.

“A experiência de uma renda monetária regular, além de libertá-las da necessidade imperiosz de satisfzazer carências básicas, lhes permite certa autonomia em relação à planificação da vida delas e de suas famílias – não somente em sentido estritamente econômico, mas também no que diz respeito à saída de relações angustiantes de dependência pessoal, particularmente de dependência dos pais, dos maridos, dos irmãos ou cunhados, ou à esperança de uma vida melhor para seus filhos”, constata.

O pesquisador verificou que as beneficiárias passam a assumir uma maior responsabilidade com sua vida, a sentir-se mais “à vontade”, como afirmaram muitas delas nos depoimentos, passam a se perceber como pessoas reconhecidas pela sua comunidade, justamente por causa da regularidade da renda, que faz com que os comerciantes lhes concedam crédito, por exemplo.

“Sem esta possibilidade de planificar pelo menos minimamente sua vida, um ser humano se parece com um animal preocupado somente em caçar comida para si e para seus filhotes”, compara Pinzani.

“Neste sentido, na fala de algumas das mais desprovidas dessas mulheres, emerge a sensação de se ter alcançado somente agora uma realidade plenamente humana. Mas também as outras reconhecem que suas opções existenciais aumentaram significativamente – e isso pode ser lido como um aumento de sua autonomia moral.”

Trecho do livro

Em seguida nos dirigimos para a residência de Dona Madalena, agora com 35 anos. Encontramo-la “batendo feijão” na sua minúscula propriedade. Veio nos atender de modo sorridente, muito diferente do ano anterior, quando a encontramos lacônica, de semblante sombrio, tendo caído em prantos a certa altura da entrevista. Fotografamo-la juntamente com seus filhos, e neste momento ela fez questão de contar que no ano anterior a tínhamos encontrado num dos momentos mais difíceis de sua vida, pois queria se separar do marido. Agora, havia conseguido a separação e a vida havia melhorado muito. Perguntamos-lhe quanto estava recebendo pelo programa BF, e ela muito alegre nos disse: “Estou recebendo R$ 112 com esse pequeno aumento que teve”.

À pergunta sobre o que havia mudado na sua vida após seu ingresso no programa Bolsa Família, Madalena respondeu: “Adoro, porque eu não sei o que seria da minha vida sem ele, né? Ia ficar meio difícil, com três filhos. Acho ótimo, ótimo, porque se não fosse o Bolsa Família, eu não sei o que seria da família pobre”.

Do ponto de vista das mulheres entrevistadas, salta aos olhos seu desejo de garantir um futuro melhor a seus filhos. Pode-se dizer que é essa quase sua única esperança na vida: fazer deles pessoas menos destituídas de capacitações do que elas, enfim, equipá-los melhor para que busquem outro destino.

Artigo publicado originalmente no Jornal da Unicamp, 28 de abril de 2013 a 04 de maio de 2013.

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