Luiza bairros. Agora, Ministra por Maurício Pestana
Luiza Bairros, de 57 anos, é gaúcha de porto Alegre e uma das fundadoras
do Movimento negro unificado (MNU). Fez sua graduação em Administração
pública e Administração de empresas, no sul, e pós-graduação em
Sociologia, na Michigan State university, nos estados unidos. Agora, como Ministra da Igualdade Racial do Brasil, Luiza assume um novo desafio, sem perder o olhar do movimento social
Moradora de Salvador há mais de 30 anos, tornou-se pesquisadora associada do Centro de Recursos humanos/ CRH, da universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundou, em parceria com a Conferência nacional de Cientistas políticos negros (uma organização norteamericana), o Projeto Raça e Democracia nas Américas, que promove a troca de experiências entre estudantes de pós-graduação afro-brasileiros e pesquisadores afro-norte-americanos. Luiza também foi professora de Sociologia da Faculdade de direito da universidade Católica do Salvador (UCSAL). Em 2008, trouxe para dentro do estado da Bahia toda a sua experiência na luta contra o racismo e o seximo, à frente da Secretaria de promoção da Igualdade, criada em 2006.
A senhora é gaúcha e reside faz muitos
anos na Bahia, com vasta experiência em estudar a questão racial no
Brasil e no mundo. Em que a Bahia difere, e o que tem em comum no âmbito
da questão racial com outros lugares?
A grande diferença na Bahia é o peso da população negra dentro da
população total do estado. Algo que não é apenas numérico, mas que
também influencia. Toda a cultura baiana bebe fundamentalmente da
contribuição das culturas de matriz africana que vieram para o Brasil e
para a Bahia. Essa é a grande diferença, pois também faz existir na
Bahia uma minoria branca muito mais coesa do seu lugar, dos seus espaços
de poder. Portanto, as consequências ou os efeitos do racismo sobre a
população negra na Bahia tende a ser um pouco mais pronunciados do que
em outros Estados.
Eu não estou querendo dizer que exista um racismo na Bahia que
seja pior do que em outros lugares, e sim que determinadas condições
históricas e culturais produzem racismos que são diferenciados. Não é à
toa que causa muito espanto para muitas pessoas o fato de Salvador só
ter tido até hoje um único prefeito negro, a cidade que é o centro da
influência negra no estado. É como se, de certa forma, os negros da
Bahia tivessem sido colocados no lugar de provedores e mantenedores de
uma cultura diferenciada , mas que não necessariamente essa força possa
ser traduzida em outros espaços da vida social.
O quadro tem mudado nos últimos anos e a tendência é mudar cada
vez mais, a partir do trabalho dos movimentos negros, quando estes
oferecem uma consciência crescente de que esse espaço e essa influência
que se tem no núcleo que se chama baianidade precisa ser refletida em
outros espaços, em outros lugares, inclusive na política, no comando da
cidade e do centro.
A senhora milita há muitos anos na
questão racial. Qual diferença em atuar como militante na questão racial
e ser secretária do Estado, quais os principais embates?
Em primeiro lugar eu sempre digo uma coisa: o Movimento Negro
Unificado (MNU) mantinha na sua carta de princípios algo que ,para mim,
continua valendo: o dever do militante é combater o racismo onde quer
que ele se faça presente. Então, tanto faz estar no movimento social
quanto na estrutura do Estado, pois o combate permanece como tarefa
principal. O que muda, e bastante, é a forma de fazer as coisas, pois o
Estado é todo regulado. Existem normas e regras para absolutamente tudo o
que se queira fazer, e é preciso que todas as iniciativas que nós temos
se submetam a elas. Nesse sentido, torna a nossa atuação menos livre,
por assim dizer, pois não tem como propor e fazer coisas que estejam
fora daquilo que o projeto político do governo coloca.
Mas não existe conflito entre ser governo e movimento social?
Absolutamente, não existe conflito entre ser militante e gestora à
medida que se reconheça as diferenças entre esses dois espaços.
Permanece como gestora o compromisso com os direitos do povo negro,
permanece como gestora o compromisso no combate ao racismo, mas entre a
atuação no movimento social e a atuação do governo o que acontece é uma
tradução. Nós traduzimos no governo aquilo que os movimentos sociais
propõem. Mas essa tradução, como se sabe, nunca é literal. Existem
diferenças do ponto de vista do sentido, existem adaptações que precisam
ser feitas para que aquela agenda seja entendida nos termos que o
Estado opera. Eu sempre coloco como exemplo que o movimento social negro
colocou muito explicitamente a questão do combate ao racismo. No
Estado, entretanto, nós trabalhamos com a noção de promoção da
igualdade, o que não é necessariamente a mesma coisa, porque em muitos
sentidos é possível promover a igualdade entre brancos e negros sem que o
racismo seja removido.
Dê um exemplo.
Os Estados Unidos. Não há dúvida que, ao longo dos anos, uma
parcela significativa da população afroamericana conseguiu uma inserção
digna na sociedade de lá, sem que o racismo tenha acabado. Existe,
portanto, essa oportunidade de se reconhecer direitos, sem que a opinião
média das pessoas brancas a respeito dos negros mude fundamentalmente. É
um jogo bastante complexo, mas é preciso estar muito consciente dele
para que não se frustre a nossa participação dentro do Estado com
expectativas que, em determinados momentos, não podem ser atendidas.
Quilombo, religião de matriz
africana, juventude, segurança pública… Qual é a área mais delicada
que o Estado tem que atuar na questão racial?
Todas as áreas apresentam algum nível de dificuldade. Das que
você citou, considero as comunidades quilombolas. Nós tivemos uma
facilidade relativamente maior de trabalhar essa questão na estrutura do
Estado. No que se refere aos quilombos e se pensarmos no ponto de vista
das diretrizes estratégicas da Bahia, as nossas ações relativas se
inserem na diretriz da promoção do desenvolvimento com a inclusão social
e, como existe uma população rural que clama e sempre clamou por uma
inclusão mais efetiva aos programas sociais, de infraestrutura e de
incentivo à produção, nós conseguimos, então, inserir as comunidades
quilombolas dentro dessa outra agenda mais ampla. E os serviços e
benefícios também chegam juntos. Existe sempre a possibilidade de
emergirem conflitos de terra. Sempre há um fazendeiro disputando aquele
espaço e isso é o que tem provocado uma lentidão maior nas
possibilidades.
E as religiões de matrizes africana?
Aí a dificuldade é mais em função da novidade do tema.
Especialmente no caso da Bahia, os terreiros de candomblé ou pelo menos
alguns deles, sempre foram reconhecidos por quem estava no poder, mas eu
acredito que naquele período o tipo de relação que se estabelecia era
uma pouco respeitosa com essas religiões à medida que se davam em cima
de uma relação de clientelismo. O que nós temos procurado fazer agora é
eliminar esse viés clientelista dessas, em segundo lugar, evidenciar que
a necessidade de se proteger direitos dos terreiros de candomblé é algo
que se vincula à questão do racismo, ou seja, a intolerância religiosa é
uma questão de racismo nesse caso, pois se trata de religiões que foram
trazidas ao Brasil pelos negros. Em terceiro lugar estabelecer um tipo
de relação em que não haja interferência do Estado naquilo que exista de
sagrado.
No que se refere à questão da juventude e da segurança pública,
aí sim temos uma dificuldade de natureza diferente das anteriores,
porque não é voz corrente ou uma ideia completamente acentuada em nenhum
governo, de que esses conflitos entre a comunidade negra e a polícia
não tenham uma base de racismo na sua origem. Existe uma dificuldade
muito grande de se compreender isso dessa forma, na verdade, existe uma
permanente negação de que o racismo possa ser uma das causas principais
do porquê os negros são abordados pela polícia de forma mais frequente
nas ruas, do porquê os jovens negros são objeto de ações muitas vezes
mais violenta da polícia. Esse é um campo que temos ainda um longo
caminho para percorrer.
Sua geração chegou ao poder,
principalmente com a Dilma. E, mesmo assim, nós negros não chegamos
juntos. Nossa representação ainda não é representativa. Como a senhora
analisa essa questão?
É muito difícil falar dessas relações entre negros e brancos sem
colocar o racismo no meio. Eu nem sempre fico utilizando o racismo como
uma espécie de bode expiatório, em absoluto. A verdade é que o movimento
negro, ao longo das últimas décadas no Brasil, sempre atuou em um
espaço que não foi totalmente absorvido como parte da política em geral
que se fez pela democratização da sociedade brasileira.
Nós não fomos contados como parte desse esforço que a sociedade
fez e ainda faz para que nós tenhamos um país efetivamente justo, onde
as pessoas possam participar com seus talentos, contribuir com suas
histórias e experiências. Então, não termos chegado ao poder, ao mesmo
tempo em que a geração de militantes brancos chegou, é em parte
explicado por isso. Nós fizemos parte de um espaço de atuação política
sem que se fossem feitas ou produzidas alianças de maneira que
pudéssemos ser vistos como parte da solução no Brasil e não como parte
dos problemas. A maior parte do tempo da nossa militância foi gasta e
investida no sentido de provar para outras pessoas a legitimidade da
nossa luta.
"O movimento social negro colocou muito explicitamente a questão do combate ao racismo. No estado, entretanto, nós trabalhamos com noção de promoção da igualdade, O que não é necessariamente a mesma coisa porque em muitos sentidos é possível promover a igualdade entre brancos e negros sem que o racismo seja removido"
E quando a senhora acha que conseguimos isso?
Em 1988, naquele processo do centenário da abolição, em que eu
considero que a questão racial ganhou debate público, efetivamente.
Edson Cardoso escreveu um trabalho naquele período analisando a imprensa
brasileira e os principais jornais do país. É muito importante observar
como nos editoriais e nos artigos que saíram durante aquele ano, nós do
movimento negro não éramos nomeados. Éramos referidos como alguns
setores, alguns grupos, mas não se dizia que existia um movimento negro.
Então, esse não reconhecimento do
movimento negro como interlocutor político válido no Brasil provoca esse
déficit que ainda temos?
Acredito que sim, mas penso que a tendência é que essa
invisibilidade diminua. Ao mesmo tempo em que coloco isso, reconheço
outras coisas. Nós temos nos governos estaduais órgãos como a SEPROMI,
na Bahia, o que denota o fato de que, nessas discussões de qual é o
papel do governo e quais são as ações prioritárias, as nossas questões
de um certo modo têm que entrar e são contempladas. Isso está expresso
nos planos plurianuais de vários governos, algo impensável até pouco
tempo atrás. Está presente no próprio debate do Governo Federal quando
da criação da SEPPIR, não há dúvida com relação a isso. Agora, o que nós
precisamos é potencializar todos esses espaços, o da SEPROMI inclusive,
para que possamos nos debates das prioridades e nas decisões (às vezes,
até quase diárias) que se tomam dentro do governo do Estado, que se
leve em consideração algo que para nós é um princípio: o da promoção da
igualdade.
Qual foi o seu principal desafio como secretária de Estado?
Esses são os primeiros quatro anos de existência da secretaria
sem que nós tivéssemos um modelo a seguir. Porque ela foi,
diferentemente de outros lugares e do próprio Governo Federal, criada
para atender tanto a promoção da igualdade racial como as políticas para
as mulheres. Então, juntar em um mesmo espaço essas duas agendas
enormes é um desafio permanente. Especialmente no caso da Bahia, implica
em fazer também outro tipo de esforço para quebrar certa tradição, pois
quem trabalha com igualdade racial não fala da mulher negra e quem
trata de políticas para as mulheres tampouco trata de mulher negra
também.
Quando se fala nos negros, em geral, são sempre os homens, e
quando se fala nas mulheres, em geral, são sempre as mulheres brancas.
Então, esse esforço de falar em políticas e a necessidade de incluir as
mulheres negras, de falar e fazer em questão da igualdade racial,
inclui, necessariamente, mulheres, homens, negros, crianças… Foi
extremamente desafiante. Outro aspecto que é muito pouco observado é que
essas agendas novas que trazemos para o governo demandam um tipo de
profissional que, geralmente, não existe dentro do governo ou existem em
poucos números.
O que de mais importante e palpável para a população o órgão que a senhora dirige pode oferecer?
As pessoas ou os grupos para os quais as políticas públicas se
dirigem não estabelecem departamentos na sua vida, suas necessidades em
educação, em saúde ou trabalho. As pessoas vivem essas necessidades e
essas demandas de uma forma conjugada, até porque a saúde que eu tenho
vai determinar as minhas possibilidades como força de trabalho, vai
determinar as minhas possibilidades como pessoa que estuda e quer ter
acesso ao conhecimento. A minha inserção no mercado tem relação com o
tipo de educação que eu tive e por aí vai. Do lado do governo, temos
também que pensar nas dimensões da vida das pessoas como coisas
interligadas, se quisermos que o resultado seja concreto na vida delas.
Artigo publicado originalmente na Revista Raça Brasil – http://racabrasil.uol.com.br