Madiba por Emanoel Araujo
Mas será que o exemplo de Mandela ecoou no coração de líderes políticos africanos? O certo é que a África continua corroída pela corrupção.
A África é uma questão sentimental, sobretudo para nós, brasileiros, e por que não incluir aí os herdeiros das casas grandes. Todos temos uma dor e uma melancolia ancestrais.
Estou no Benin, um pequeno país da África ocidental, reunindo artistas contemporâneos para nova exposição no Museu Afro Brasil. E aqui, em Porto Novo, Abomey e Ouidah, não se pode ser indiferente às nossas raízes e à herança dos que foram e dos que voltaram à sua própria terra como brasileiros e construíram suas casas, palacetes, igrejas e mesquitas à maneira brasileira do século 19. Guardaram seus nomes e sobrenomes; assim são os Souzas, os Oliveiras, os Rego, os Silveiras, os D’Almeidas.
Em Ouidah, foram construídos um forte português e a casa dos governadores do século 18, onde viveu o famoso Francisco Félix de Souza, o Chachá, irmão de Rei Guezo por um pacto de sangue, talvez o maior traficante de escravos do seu tempo, que ganhou fortuna e teve mais de 80 mulheres e centenas de filhos que ostentaram o seu sobrenome.
Nas ruas de Porto Novo se pode ver, no segundo domingo de todo janeiro, os Agudás nas festas do Bonfim; depois, o Carnaval com a “burrinha” (o bumba meu boi), após a missa festiva da Irmandade.
No Benin, acordamos com a notícia vinda da África do Sul, que ecoava por toda África de coração partido. Partiu para a ancestralidade Madiba, o Presidente, Senhor Mandela. A cada minuto, declarações dos líderes políticos de todo o mundo manifestavam seus pesares.
Sua voz e sua trajetória política como líder de um povo oprimido ecoaram no coração do seu povo pela esperança de liberdade, na luta contra o perverso apartheid que assolou impiedosamente sua pátria. Ele era verdadeiramente a voz com que a nação contou contra todas as atrocidades da política da exclusão. Quem pode esquecer Soweto? No século 20, quem assistiu àquelas atrocidades e esqueceu? Quem?
Tive a honra de estar presente no almoço que o presidente Fernando Henrique Cardoso e dona Ruth ofereceram a Mandela em sua visita ao Brasil. Permanece na memória o doce e gentil homem que nem de longe transparecia seus amargos anos de prisão e resistência.
Um homem extraordinário, o grande líder africano nas lutas pela libertação do seu povo. Mas será que o grande exemplo de Mandela ecoou mesmo no coração de muitos líderes políticos africanos?
O certo é que a África continua corroída pela corrupção, que se perpetua desde os antigos reis que tornaram possível a escravatura vendendo seus próprios filhos. A escravidão se tornou uma realidade universal. Seria mesmo uma utopia desse líder altivo clamar por uma África livre das ditaduras, dos que se perpetuam no poder e da corrupção?
O mundo, a partir de agora, ficará mais pobre e ele será uma lembrança imorredoura do povo negro. Dos que não escaparam das mãos sangrentas dos negreiros; dos que suportaram o apartheid; dos norte-americanos que foram linchados e pendurados nas árvores como “Strange Fruit”; dos que estão nas periferias das grandes cidades brasileiras, nas favelas, nos alagados, nos mocambos.
Dos africanos pobres e muito pobres, cheios de filhos da poligamia, abandonados à própria sorte; da violência contra as mulheres; das mulheres que buscam o sustento da família nas beiradas das vias, ruas e estradas poluídas pelos milhares de motos movidas a gasolina adulterada; da homofobia dos africanos. E o futuro?
A lição da utopia de Madiba se refletirá nos homens que detém o poder de mudança na África? Mandela foi um exemplo de homem no clamor de suas falas de grande defensor das minorias, que aqui nesta terra são só maioria. Quem sabe esse povo será reconhecido como cidadãos que integram essa utopia, no desejo de se verem irmanados pela paz, liberdade, prosperidade e pelo avanço da humanidade africana.
EMANOEL ARAUJO, 73, artista plástico, é diretor-curador do Museu Afro Brasil
Artigo publicado na Folha de S.Paulo, 15.12.2013