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Major-brigadeiro da Aeronáutica defende punição aos torturadores da ditadura por ANGELA PINHO

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

O Major-Brigadeiro-do-Ar Rui Moreira Lima, de 92 anos, participou de 94 missões de guerra na Itália. Em petição, ele pede punição de militares que praticaram crimes durante a ditadura.



Comissão da Verdade aprovada
pelo Congresso
 é uma novidade
positiva para esclarecer o passado, mas é fundamental punir quem torturou e matou
durante a ditadura militar. Mais: é "burrice" das Forças Armadas
defender o contrário, já que a maior parte dos que fazem parte delas hoje não
participou das violações de direitos humanos. As opiniões não são de nenhum
militante de esquerda ou familiar de morto ou desaparecido político. São de um
militar da Força Aérea Brasileira (FAB), detentor da segunda maior patente da
Aeronáutica e herói da Segunda Guerra Mundial.

Maranhense radicado no Rio de Janeiro, o Major-Brigadeiro-do-Ar Rui Moreira
Lima, 92 anos, participou de 94 missões de guerra na Itália. Ele não gosta de
se definir nem como de esquerda nem como de direita, mas como um democrata. Em
1964, foi um dos poucos militares a resistir ao golpe que deu início a 21 anos
de ditadura. No dia 31 de março, pegou um avião e foi localizar as tropas que o
general Olympio Mourão Filho guiava de Minas Gerais para derrubar o presidente
João Goulart, no Rio de Janeiro. Chegou a fazer alguns voos rasantes sobre as
tropas de Mourão. Sem autorização para atirar, voltou para a base de Santa
Cruz, no Rio. Cassado, passou cerca de quatro meses preso e ficou proibido de
voar por mais de 17 anos.

Com a volta da democracia, Moreira Lima retornou à Aeronáutica. No fim dos anos
70, fundou Associação Democrática e Nacionalista de Militares, entidade que
luta pelos direitos de cabos cassados durante a ditadura e defende posições que
destoam das que são comumente defendidas por seus colegas de Forças Armadas.
Como presidente da entidade, protocolou uma petição para que o Supremo Tribunal
Federal mudasse a interpretação da Lei da Anistia, de 1979. No documento, ele
advoga pela punição de militares que praticaram crimes durante a ditadura. O
STF acabou decidindo manter a interpretação que perdoa as violações ocorridas
entre 1964 e 1985.

Amigo do comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, e frequentador dos eventos
promovidos pela FAB, Moreira Lima finaliza a tradução para o inglês de seu
livro Senta a Pua!, que narra a expedição da Força Expedicionária Brasileira na
Itália. Hit them hard! tem previsão de ser lançado ainda neste ano.



Época – Como surgiu a ideia de fundar uma associação de militares para a
democracia?

Rui Moreira Lima – Foi em 1979, quando veio a anistia do Figueiredo (João
Figueiredo, presidente entre 1979 e 1985). Eu e outros colegas que foram
impedidos de trabalhar queríamos garantir os nossos direitos. Quando o
Figueiredo anistiou aqueles torturadores, ele cometeu um erro. Qual a lei que
pode ajudar um torturador? No mundo inteiro, por meio de diversas convenções,
da OEA, ninguém atura a covardia do torturador. É um bandido, um desgraçado, um
covarde.

Época – O senhor defende a punição de quem praticou crimes na ditadura?

Lima – Em 1964, me tiraram da Aeronáutica e me proibiram de voar, que era
o que eu sabia fazer. Fiquei 17 anos sem poder voar. Fui vender fubá, grão de
bico, farinha. O meu retrato estava na base aérea de Santa Cruz (no Rio de
Janeiro) para eu ser preso se entrasse lá. Hoje a FAB me estende tapete
vermelho, é a minha casa. Mas alguns poucos caras da FAB fizeram isso comigo e
eles deveriam pagar por isso.

Época – A Argentina recentemente condenou na Justiça diversos militares por
crimes ocorridos durante a ditadura militar do país. O Brasil deveria fazer o
mesmo?

Lima – Devia. Isso é fazer justiça. O Figueiredo era um comandante, um
homem de cavalaria, mas era soldado, não entendia nada disso. Deu anistia para
quem torturou. Não pode fazer isso. A Justiça é uma coisa séria.

Época – A maior parte das Forças
Armadas se posiciona contra a punição de militares envolvidos em crimes durante
a ditadura. Existe algum constrangimento quando o sr. defende esse
posicionamento na instituição?

Lima – Não, todos me tratam
muito bem, mesmo. O brigadeiro Saito (Juniti
Saito, comandante da Aeronáutica
) é amigo meu, é uma pessoa dócil, boa. Sou
convidado para diversos eventos. Sou membro do Conselho Cultural da
Aeronáutica. Considero a Aeronáutica a minha casa. Nem deveria, mas sou tido lá
como um sujeito fora de série.

Época – E por que a maior parte das
Forças Armadas é contra rever a lei da anistia?

Lima –
 Por burrice, corporativismo burro. O mundo inteiro está
acabando com isso. Estão mandando os torturadores e matadores para a cadeia. Eu
não sou revanchista. Não tem revanche nenhuma. O camarada que não tem nada com
isso não tem culpa.

Época – Rever a Lei da Anistia não vai
reabrir uma ferida, como dizem os defensores da atual legislação?

Lima –
 Eu espero que abra uma porta. Não é possível esconder a
verdade. Tem muitos companheiros do Exército e da Aeronáutica que não estão de
acordo com isso. Não dizem por causa do tal do corporativismo. Mas isso cedo ou
tarde vai vir à tona.

Época – O que o senhor acha da Comissão
da Verdade, recém-aprovada?

Lima –
 Ela tem que estar presente. Mas ela é comissão da Verdade, tem
que ser de verdade. Eu estou na expectativa. A Comissão da Verdade é
obrigatória. Ela tem que dizer quem fez as coisas. E aí quem fez tem que pagar
uma prenda por causa disso. Botar o sujeito na cadeia se for o caso.

Época – Mas a ideia da comissão não é
colocar ninguém na cadeia.

Lima –
 Não, a ideia é dizer onde estão os corpos. É um crime não
mostrar onde o cara foi enterrado. A verdade tem que ser dita. Ela é feito a
rolha, você pode botar ela no fundo do tanque, mas ela salta.

Época – Muitas vezes, quando
questionados sobre os militantes que desapareceram durante a ditadura, os
militares dizem que os documentos relativos ao período foram destruídos. O
senhor acredita nisso?

Lima – 
Tem muita coisa que foi destruída mesmo. Mas só o fato de
existir a comissão e de chamar os caras que estão vivos para falar já é um
alento para as famílias que perderam parentes.

Época – Mas o senhor acha que a
comissão pode obter resultados concretos?

Lima –
 Sim, eles podem saber onde estão as ossadas. Alguma
evidência vai se conseguir. E aí acaba com isso. Porque quem fez isso (tortura
e assassinato de militantes) não foi o Exército nem a Aeronáutica nem a
Marinha. Foram sujeitos que nasceram ruins, mal caráteres, com ódio no coração
e inveja.

Época – Esporadicamente, ouvem-se
notícias de tortura em quartéis e de violações aos direitos humanos nas Forças
Armadas. Na opinião do senhor, isso está ligado ao treinamento que era
oferecido aos militares durante a ditadura?

Lima –
 Está ligado sim. Tem um sujeito, Dan Mitrione (americano que
ensinou técnicas de tortura a militares brasileiros), que chegou a ter uma rua
em Belo Horizonte como o nome dele. Depois mudaram para colocar o nome de um
estudante morto. Eu conheço gente, colegas, que foram fazer estudos no Panamá.
Sujeito que chegou na polícia do exército e fez tortura. Conhecidos, porque eu
não fui amigo desses caras. Mas eles estavam soltos, absolutos, pensando que a
revolução (a ditadura militar) ia durar eternamente.

Época – E o senhor acha que essa
cultura permanece ainda hoje?

Lima –
 Olha, ninguém foi para a cadeia porque torturou e ninguém
morreu por causa disso. 

Época – Quais são os principais
desafios das Forças Armadas hoje?

Lima –
 Hoje as Forças Armadas estão fazendo o que devem fazer:
defender a Amazônia, o mar, o Brasil.



Época – O senhor participou da Segunda
Guerra Mundial e se recusou a participar do golpe de 1964. Que princípios
guiaram sua carreira como militar?

Lima –
 Eu entrei nas Forças Armadas no dia 31 de março de 1939.
Nesse dia, recebi uma carta de meu pai, juiz, em que ele dizia: "Sê um
patriota verdadeiro e não te esqueças que a força somente deve ser empregada ao
serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças
Armadas". Essa carta norteou toda a minha trajetória. Já me perguntaram se
eu era comunista. Eu nunca fui comunista, eu fui brasileiro, fui defender o meu
país e continuo defendendo.

Artigo publicado originalmente na revista Época.

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