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“Mão pesada do MP atua contra um lado só” Por Paulo Moreira Leite

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Na segunda e última parte de sua entrevista , o cientista político Fábio Kerche recorda o tratamento diferenciado dispensado pelo Ministério Público aos partidos políticos, lembrando que a “mão pesada” que atinge o PT torna-se “leve” quando se aproxima dos demais.

A partir de uma ideia do professor Wanderley Guilherme dos Santos (“quando as instituições falham, resta o caráter”), Kerche sustenta que a ausência de regras precisas para evitar que o MP assumisse um papel de justiceiro no sistema político abriu espaço para que os valores pessoais e a opinião política de determinados procuradores assumissem um grande peso em sua atuação: “Valores e consciência pessoal assumem um grande peso na atuação desses atores. Como é possível agir com ampla liberdade, essas preferências marcam a atuação desses procuradores”.

BRASIL 247 — Seu livro  mostra que na maioria dos países democráticos o MP encontra-se em posição subordinada à soberania popular, representada pelo Poder Executivo, que dispõe de um mandato eleitoral. Como é isso?

KERCHE — O grande pressuposto da política é que os políticos querem continuar no poder. Na democracia, eles são selecionados pelos eleitores. De tempos em tempos, eles apresentam seu nome ao escrutínio popular, sendo premiados ou punidos pelos cidadãos. Isso contribui para que o político profissional não perca de vista os interesses de seus eleitores. A eleição funciona, portanto, como uma forma de controle, o mais importante das democracias modernas, pois cria incentivos para que os políticos observem os desejos dos eleitores. No caso dos atores não eleitos do Estado, como a burocracia, por exemplo, esse incentivo se dá de forma indireta, por meio dos políticos que supostamente comandam os burocratas.

BRASIL 247 — O que acontece na maioria dos países?

KERCHE — O funcionamento do Ministério Público, fora do Brasil, atende a uma regra básica: um político pode ser punido ou premiado pelos eleitores também pela atuação dos promotores. Nos Estados Unidos, os promotores locais são eleitos diretamente pelos moradores da região. Já os federais são nomeados pela Casa Branca, numa função que faz parte da agenda de toda campanha presidencial. Na França, a nomeação passa pelo Ministério da Justiça. No caso brasileiro, que é bastante singular, os membros do Ministério Público não são passíveis de punição ou premiação por parte dos eleitores ou dos políticos. Tampouco recebem incentivos que geram determinados comportamentos. O fato de um promotor atuar de maneira que uma parcela de cidadãos aprove não significa que uma instituição seja democrática, pode ser apenas uma coincidência. Instituições democráticas não devem ser construídas baseadas em coincidências ou na sorte, mas em incentivos gerados pela vontade popular, indicadas especialmente pelo voto.

BRASIL 247 — Durante oito anos de governo FHC, o PGR  Geraldo Brindeiro ganhou o apelido de engavetador-geral da república, pois inúmeras denúncias contra o presidente deixaram de ser investigadas. Como avaliar essa atuação?

KERCHE — Não tenho dados sobre a atuação de Brindeiro. Mas partindo do quase consenso entre os analistas políticos, ele não demonstrava ser muito combativo. Sua atuação parecia muito preocupada em preservar seu grande eleitor, o presidente Fernando Henrique Cardoso. O cálculo era simples: como a escolha do procurador geral é uma prerrogativa do presidente, precisando ser aprovado por um Senado que dificilmente recusava as indicações do Poder Executivo e era composto por maioria governista, Brindeiro não podia desagradar Fernando Henrique para continuar ocupando o cargo mais importante do Ministério Público Federal. Como o procurador geral é o único que pode acusar o presidente e o primeiro escalão da República, era racional não incomodá-los. O resultado é que ele foi conduzido durante 8 anos de FHC. Lula mudou isso. Ele e Dilma passaram a indicar para o Senado o mais votado pelos próprios procuradores — isso sem mudar a lei, com base num compromisso verbal. A partir desse momento, o comportamento racional passa a ser que o candidato à procuradoria geral esteja mais preocupado com seus colegas do que com o presidente. Ou seja, o grande eleitor não é mais o presidente, mas a própria corporação. Isso deu mais liberdade de atuação para o procurador geral. Por outro lado, sua nomeação perdeu todo vínculo com os representantes da soberania popular. Lula, de certa forma, alimentou o monstro que tenta devorá-lo.

BRASIL 247 — Examinando o papel de cada um, é bom lembrar também que existe o Conselho Nacional do Ministério Público, que deveria exercer a função de controle externo. Por que o Conselho não cumpre seu papel?

KERCHE — O CNMP não é um órgão de controle externo, por um motivo muito simples: a maioria de seus membros são integrantes do próprio MP. O grande teste deles foi decidir sobre uma reclamação do Lula. O ex presidente considerou que estava sendo acusado por um promotor do MP de São Paulo que não seria o promotor natural do caso. O CNMP decidiu que realmente o MP estava desconsiderando a regra neste caso e em muitos outros. Mas, para não causar confusão, concluiu que não se deveria o rever os procedimentos já abertos, mas somente observar a regra constitucional do promotor natural no futuro. Um estudo mais detalhado desse órgão é parte de minha agenda de pesquisas (para mais detalhes sobre o caso, que marcou as investigações contra Lula, acesse aqui).

BRASIL 247 — Como explicar o apoio  dos partidos de esquerda, em particular do PT, ao clamor de autonomia absoluta do MP?

KERCHE — Foi um erro baseado em uma análise conjuntural, não institucional. Quando o PT era oposição, interessava um Ministério Público que incomodasse o governo de FHC. Era um anseio natural, até porque, ao contrário de hoje, poucos procuradores que exerciam exerciam esse papel. Hoje, com a atuação enviesada do Ministério Público Federal, o PT está percebendo que autonomia sem contrapartidas pode gerar consequências políticas desastrosas. Não devemos analisar uma instituição sob esse prisma: quando me interessa, apoio; quando não, critico. O mesmo vale para o PSDB que mudou sua posição. Antes, o partido denunciava com frequencia  o caráter justiceiro da atuação de muitos procuradores. É preciso admitir que o desenho institucional do Ministério Público tem problemas, independentemente de que partido ocupar o governo.

BRASIL 247 — Em algum outro país o PGR é escolhido em lista tríplice e seu nome é apenas referendado pelo presidente da República?

KERCHE Que eu saiba, não. E duvido que exista. Essa é uma decisão muito importante para ser deixada na mão da própria corporação e distante da vontade dos cidadãos.

BRASIL 247 — Muitas pessoas, mesmo próximas do governo Dilma, acreditam  que a força tarefa tem uma atuação independente contra a corrupção, na base do “doa a quem doer? “

KERCHE — A atuação é bastante enviesada. Infelizmente. O PT sente muito mais a mão pesada do Ministério Público Federal que outros partidos. Mas os adversários de Lula e Dilma não devem se iludir: mesmo sem ser atingida com a mesma intensidade, a criminalização da política vai respingar em todos. Isso já é identificável nas pesquisas de opinião. Os partidos e políticos estão perdendo apoio. O risco óbvio é a aparição de um “salvador da pátria” fora dos quadros tradicionais. A Itália, que teve Berlusconi após a Operação Mãos Limpas, deve servir de alerta.

BRASIL 247 — Como julgar a campanha do MP em 2013 para derrubar a PEC 37?

KERCHE — A PEC 37 era a tentativa de regular de uma vez por todas a questão de qual instituição estaria autorizada a conduzir um inquérito penal. Eu pesquisei os debates na Constituinte e conclui que os parlamentares não queriam que os promotores e procuradores estivessem à frente das investigações penais. O lobby dos delegados de polícia, neste tema, surtiu mais efeito do que o dos membros do Ministério Público. O ponto é que não havia uma vedação clara na Constituição e integrantes do Ministério Público se utilizavam disso para fazer o papel da Polícia. Os promotores foram muito habilidosos ao apelidar o projeto como a PEC da impunidade, simplificando um debate complexo. Argumentavam que os promotores em outras democracias podiam conduzir investigações criminais, mas sem lembrar que eram obrigados a prestar contas de suas ações para atores externos. Ou seja, ressaltaram um aspecto, esqueceram do outro. Essa não é a primeira vez que eles simplificam um complexo debate. Nos anos 90, houve uma tentativa de regulamentar limitar os pronunciamentos públicos dos promotores antes do fim de um processo. Era uma tentativa de impedir que uma pessoa fosse acusada, publicamente, sem que seu caso tivesse sido examinado devidamente pela Justiça. Em mais uma boa tirada de comunicação, carimbaram o projeto como a lei da mordaça. Como ser favorável a uma lei da mordaça e um projeto que apoia a impunidade?! O debate fica muito difícil. De qualquer forma, o STF decidiu que o Ministério Público pode conduzir investigações penais, inovando do ponto de vista legislativo e entrando em um assunto que deveria ser tratado pelo Legislativo.

BRASIL 247 — Como avalia o fato de que líderes da força tarefa da Lava Jato e do MP se empenharam na campanha de coleta de assinaturas para criar leis contra a corrupção?

KERCHE — Este esforço está na mesma lógica da atuação durante a Constituinte: eles querem ainda mais poder. Algumas das propostas contornam direitos fundamentais, como a presunção da inocência, por exemplo. A diferença entre o remédio e o veneno, algumas vezes, é a dosagem. Acho que este é um desses casos. Um fim nobre, combater a corrupção, não pode ser usado como uma desculpa para passar por cima de direitos individuais.

BRASIL 247 — Em 2014, um dos principais integrantes da Lava Jato declarou que o plano da força tarefa era “refundar o nosso Brasil.” Em algum outro país do mundo os procuradores costumam fazer afirmações de cunho político tão claro?

KERCHE — Eu, pelo menos,  desconheço. Talvez algum promotor italiano, que, diga-se de passagem, é outro modelo bastante incomum e fonte de inspiração para os brasileiros por conta da Operação Mãos Limpas. De qualquer forma, Wanderley Guilherme dos Santos disse que quando as instituições falham, resta o caráter. Um jovem presta um concurso público, recebe instrumentos de poder, autonomia e quase não presta contas para ninguém, o que o impediria de tentar “refundar o Brasil”? Se ele reproduzir o senso comum de que a política é um problema, não a solução, a chance de acreditar que vai transformar o país longe do Congresso, Executivo, partidos políticos e eleição é tentadora. Nada parece impedi-lo de, pelo menos, tentar. Mas não deixa de ser estranho ao processo democrático.

BRASIL 247 — Como aprofundar  a observação do mestre Wanderley Guilherme sobre instituições e caráter?

KERCHE — A palavra caráter, aqui, tem um significado claro. Quando as instituições não oferecem respostas adequadas, cada um é colocado diante de seus valores e convicções. Valores e consciência pessoal assumem um grande peso na atuação desses atores. Minha  hipótese é que eles têm uma afinidade maior como PSDB e com o Temer do que com o PT. Como é possível agir com ampla liberdade, essas preferências  marcam a atuação  desses procuradores. O resultado é uma mão pesada para um lado e mais leve para o outro.

BRASIL 247 — Imaginando um governo sem compromissos com Lula nem com o PT, pode-se imaginar que esse sistema vai continuar?

KERCHE — Eu acho que é muito difícil reverter esse modelo institucional. Primeiro, porque eles jogam com a opinião pública. Quem questionar o Ministério Público é contra o combate à corrupção e a favor da impunidade. Fica difícil o debate nesses termos. Outro aspecto é que para modificar este grau de autonomia, discricionariedade, além dos instrumentos jurídicos que eles detém, seria necessário modificar a própria Constituição. O que pode mudar mais facilmente é a atual forma de indicação do procurador geral. Como eu disse, a indicação do mais votado pela corporação não tem previsão constitucional, foi uma iniciativa política do Lula. Temer, confirmando o impeachment, pode indicar alguém de sua confiança. Um modelo mais próximo do que foi com FHC.

BRASIL 247 — Como isso poderia ser feito?

KERCHE — Bastaria cumprir a Constituição, que atribui a escolha do Procurador Geral ao presidente da República e não a uma categoria. A lista tríplice é prevista para os estados., não para o MP federal. Governadores tucanos já escolheram nomes que não foram os mais votados pela corporação.

BRASIL 247 — Por que você começou a estudar o novo papel do Ministério Público, num período em que ninguém prestava atenção neste assunto?

FABIO KERCHE — Ainda na faculdade, tive a sorte de fazer parte de um grupo de pesquisadores que foram pioneiros em estudar o Poder Judiciário e o Ministério Público por meio de uma abordagem da Ciência Política e da Sociologia. Maria Teresa Sadek e Rogério Arantes foram fundamentais na minha formação e nessa opção pelo tema. Estudar os promotores e procuradores não era tarefa simples, já que quase não havia bibliografia sobre eles. Eu tive que adaptar ferramentas de análise sobre as burocracias públicas para poder desenvolver minhas pesquisas sobre este novo modelo de Ministério Público surgido com a Constituição de 1988.

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Antrevista publicada originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/250603/%E2%80%9CM%C3%A3o-pesada-do-MP-atua-contra-um-lado-s%C3%B3%E2%80%9D.htm

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