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“Ministério Púbico não é feito de anjos” Por Paulo Moreira Leite

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Aos 45 anos, Fábio Kerche é um especialista num assunto que muitos debatem e poucos estudaram no Brasil de 2016 — o papel político do Ministério Público, criador da Força-Tarefa que conduziu a Lava Jato ao lado de Sérgio Moro.

Doutor em Ciência Política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Kerche acaba de mudar-se para Washington, onde irá fazer um pos-doutorado no Research Fellow program no Centro para a América Latina da American University. Antes disso, ele ocupou diferentes cargos na área de comunicação nos governos Lula e Dilma, chegando a ser, por um curto período, secretário de imprensa da Presidência da República. Em 2009, ele publicou, pela EDUSP, o livro “Virtudes e Limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil”.  Aqui, a primeira parte de sua entrevista:

BRASIL 247 — No livro “Virtude e Limites” você faz um histórico da luta dos procuradores, durante a Constituinte, para conquistar um grau de autonomia desconhecido na maioria dos países democráticos. Qual era a motivação dos procuradores para atuar dessa maneira?

KERCHE – A experiência de todos os países mostra que todas as burocracias e agências estatais desejem mais autonomia e mais poder. Isso é normal. O que não é comum é elas conseguirem. O Ministério Público fez um lobby bastante organizado durante a Assembleia Constituinte de 1987 e 1988, mas suas demandas foram atendidas porque elas iam ao encontro do desejo dos parlamentares constituintes. A Constituição foi generosa em direitos coletivos e parecia fazer sentido ter uma instituição responsável por exigir que esses direitos fossem observados. Poucos votaram contra o projeto. O problema é que os constituintes não observaram a premissa básica da democracia em relação aos promotores e procuradores: todos os atores políticos, eleitos e não eleitos, precisam prestar contas de seus atos e serem passíveis de punição por eventuais desvios.

BRASIL 247 —  No Brasil de hoje, a força- tarefa da Lava Jato tem uma importância política muito superior àquilo que se poderia imaginar em 1988. Como isso funciona?

KERCHE — Esse protagonismo é uma novidade em si. Como mostram estudos do professor Rogério Arantes, até há pouco o combate à corrupção era realizado principalmente pelos Ministérios Públicos estaduais por meio da ação civil pública. Era bastante comum acompanhar ação de promotores de Justiça de alguns ministérios públicos estaduais junto a prefeitos acusados de corrupção. Esse tipo de atuação do MPF, hoje, lançando mão de uma ação penal, fazendo uma aliança com a Polícia Federal e com parte do Judiciário, é uma novidade.

BRASIL 247 — Como isso aconteceu?

KERCHE — Os procuradores da República estão mais poderosos por conta de instrumentos que não foram previstos na Constituição, mas que foram introduzidos durante os governos petistas. Uma delas é a nova forma de indicação do Procurador Geral da República, com base no compromisso de que o primeiro colocado numa lista tríplice irá assumir o cargo que tem a prerrogativa de apresentar denúncia contra o presidente, ministros de Estado, parlamentares federais. Mais tarde, tivemos a nova lei de delação premiada, que deu um poder tremendo ao trabalho de investigação, cobrando um preço equivalente em matéria de direitos e garantias individuais. Numa demonstração enorme de poder, a  liberdade de cada cidadão, este valor que gostamos de acreditar que não tem preço, é negociada em função de sua disposição para delatar. Quem não perdeu a memória do regime militar sabe que isso não tem preço.

BRASIL 247 — Qual o traço principal dessa atuação?

KERCHE — Eu acho difícil de negar que assistimos hoje, na Lava Jato, a uma atuação que favorece um dos campos de nosso sistema político. Não é uma queixa dos petistas. É um fato.

BRASIL 247 — Qual a origem disso?

KERCHE — Seguimos  um modelo que dá grande autonomia a agentes não eleitos do Estado. Na prática, rompemos com a divisão de tarefas entre as instituições que compõem o sistema de Justiça, arranhando um instrumento de pesos e contrapesos criados pelos constituintes em que a polícia investigava, o MP apresentava o caso ao Judiciário, e o juiz julgava. Essa divisão de tarefas era a melhor garantia contra um trabalho baseado numa visão única sobre qualquer investigação. Favorecia o contraditório, o necessário debate de opiniões. Impedia, enfim, um pensamento único no trabalho da Justiça e da Polícia. Mas agora, legislando contra a vontade dos constituintes, o STF decidiu que os promotores podem conduzir o inquérito penal.

BRASIL 247 — Qual o papel do PGR Rodrigo Janot nessa situação?

KERCHE — Um dos poucos instrumentos institucionais que protegem um cidadão contra o poder de um membro do Ministério Público é o princípio do promotor natural. Por este princípio, um promotor não pode ser indicado pelo Procurador Geral para acusar alguém. Se uma pessoa atirou em alguém em Botucatu, para lembrar da minha cidade, somente o promotor local pode levar o assassino a julgamento. A ideia é que o acaso ajude a limitar eventuais perseguições contra um cidadão em particular.

BRASIL 247 — Isso também mudou?

KERCHE — É possível argumentar que a criação pelo Procurador Geral de forças tarefas, como a da Lava Jato, seja uma forma de contornar esse princípio. Janot tem que dar aval para que um grupo de procuradores, não necessariamente aqueles designados previamente ao delito por meio do acaso, possa atuar em questões de forte impacto político. Ministérios Públicos estaduais já faziam algo semelhante na década passada por meio de grupos especiais, criados para combater crimes de grande repercussão pública e de maior complexidade. A diferença que aqueles eram grupos permanentes, enquanto as força tarefas são provisórias. É importante lembrar que o Ministério Público é uma instituição pouco hierarquizada. Seus membros tem ampla liberdade de atuação mesmo em relação ao Procurador Geral. As força tarefas e os grupos especiais são tentativas dos procuradores gerais de buscar construir uma certa uniformidade na atuação e impor sua marca e prioridades. Esse tipo de iniciativa seria mais razoável se houvesse instrumentos regulares e eficazes de prestação de contas por parte do Ministério Público e do próprio Procurador Geral.

BRASIL 247 — Qual o problema do modelo em vigor? O que está na origem deste modelo?

KERCHE — Como sempre, pode-se falar em vantagens e desvantagens. Procura-se garantir autonomia e poder para se combater a corrupção sem a interferência de ingerências políticas indevidas. A contrapartida é que, sem a necessária prestação de contas a outras instituições, o risco de parcialidade é muito grande.

BRASIL 247 — A ideia de prestação de contas é novidade?

KERCHE — É uma das exigências mais conhecidas e mais antigas do mundo político. James Madison, que foi quarto presidente dos Estados Unidos, governando o país entre 1809 e 1816, tornando-se um dos fundadores da democracia norte-americana, dizia que se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários.

BRASIL 247 — O ingresso no MP é feito por concurso público. Não é uma forma de controle?

KERCHE — Os membros do Ministério Público não ganham asas angelicais quando são aprovados em um concurso público. Sabemos que todo cidadão, seja o jornalista, o médico, o procurador, tem valores e convicções, que alimentam a riqueza dos regimes democráticos. O problema é que o modelo permite — num grau excessivo, vamos admitir — que os procuradores,  tomem decisões motivadas, muitas vezes, por valores e crenças pessoais, e não baseados em obrigações institucionais. Instituições deveriam moldar comportamentos e não é isso que ocorre no modelo criado em 1988 e incrementado nos governos petistas.

(Nesta sexta-feira, na segunda parte da entrevista, Fábio Kerche avalia a lógica política do MP, que agradou o Planalto sob FHC, cortejou os votos da corporação sob Lula e pode procurar uma acomodação num eventual governo Temer)

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Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/250414/“Ministério-Púbico-não-é-feito-de-anjos”.htm

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