Aldeia Nagô
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Mitos baianos por Antonio Risério

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

A imagem que a Bahia cultiva de si mesma – e passa para todo o Brasil – é,
em boa parte, um mito. Em resumo, é o seguinte. Numa terra plena de sol, um
povo manso e preguiçoso, viveria sempre relaxadamente. E esse mito está tão
enraizado, em termos sociais e culturais, que os próprios baianos acreditam
nele – piamente -, apesar de todas as evidências que teimam em contrariá-lo.
E todo o Brasil embarcou na canoa. Acha que a fantasia é real. Que traduz,
fielmente, a realidade baiana. E fim de papo. Mas a verdade é que não é bem
assim que as coisas se passam por aqui.


É claro que existem baianos preguiçosos. E não são poucos. O próprio Dorival
Caymmi, algo estudadamente, acabou se convertendo em exemplo maior, em
arquétipo da preguiça no Brasil. Baiano fala arrastado, cantando, capricha
em gestos largos e quase sempre caminha com uma lentidão digna do poder
judiciário – e tudo isso contribui para reforçar a imagem do preguiçoso.
Mas, bem vistas as coisas, Caymmi não é a regra. Nunca foi.

Baiano também bate ponto. Pega pesado no batente. Trabalha duro. Vira noite
no serviço. E produz muito. Quem achar que estou mentindo, que se disponha a
passar um dia no Pólo Petroquímico, em Camaçari, para conferir com seus
próprios olhos. A barra não é nada leve. Na área da construção, de resto, os
baianos ostentam um recorde: ergueram em apenas 15 dias o prédio da
Prefeitura de Salvador – façanha que, na época, rendeu matéria no
"Fantástico".

E não estou me referindo, aqui, apenas a operários. Encontramos baianos
trabalhadores, e mesmo "workahoolics", em todas as classes e grupos sociais.
Em meio a políticos, empresários, jornalistas, professores (das faculdades
particulares, ao menos, onde os coitados são submetidos a duríssimas
rotinas, a que os salários não fazem jus), publicitários, etc. O pique de
trabalho de alguns baianos que conheço, aliás, deixam exaustos e até sem
fôlego os próprios paulistas, que posam de incansáveis.

Quanto ao célebre estilo "relax" dos baianos, trata-se de fenômeno
relativamente verdadeiro. Mas, também, relativamente falso. E corre o risco
de passar a pertencer, apenas e definitivamente, ao passado. Para dar um
exemplo, a pressa, o nervosismo, a disputa ferrenha, a irritação e a
agressividade tomaram conta do trânsito também na Bahia, estado que
concentra o maior número de barbeiros por metro quadrado, em todo o País.

Em vez do famoso relax, o que se vê é o mais legítimo estresse. Mas mesmo
fora do exemplo extremo do trânsito, devo dizer que, diante de certas cenas
que presencio, é o caso de perguntar se ainda sobrevivem – a não ser em meio
a gerações mais velhas – os "ritos de gentileza do povo baiano", de que
falava, décadas atrás, o romancista Jorge Amado.

Por fim, a fantasia solar. Não é raro alguém me telefonar de um ponto
qualquer do País – de São Paulo ou do Paraná, por exemplo, e começar a
conversa com a pergunta: "Como está a Bahia?". Quando, em meio à resposta,
me queixo do excesso das chuvas, a pessoa parece, também ela, cair do céu,
perplexa: "Como? Chovendo na Bahia?!?!". Pois é, chovendo – e chovendo
muito.

Não é que a Bahia não seja uma terra solar. Faz muito sol por aqui. Mas,
regra geral, durante poucos meses, em meio às rápidas e claras chuvas de
verão. O padrão é mais ou menos o seguinte. Em março, começam as chuvas
incessantes. E vão cobrindo os meses, com ruas alagadas e desabamentos de
casas. Entre setembro/outubro, a transição. Mas sol – sol, mesmo -, batendo
firme e claro, só de novembro a fevereiro. Em março, recomeçam os
aguaceiros. Uns míseros três meses de sol, portanto – o que explica que
sejam tão raros carros conversíveis, cabriolés, na Bahia.

Na verdade, Salvador é uma cidade de altíssimos índices pluviométricos. Mas
os próprios baianos parecem não perceber isso. A fantasia solar se sobrepôs
ao real. E assim vão todos vivendo. Chova ou faça sol.

Antonio Risério é poeta e antropólogo.

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