Mocofaia explode de afro-brasilidade e invenção em seu disco de estreia
O trio de Luizinho do Jêje, Marcelo Galter e Sylvio Fraga, artistas da gravadora Rocinante, cria novas sonoridades brasileiríssimas
Além do streaming, Mocofaia ganha edição em vinil e mini documentário da gravação no Youtube.
Mocofaia significa uma espécie de desordem. Uma mocofaia pode ser a bicicleta velha do vendedor equilibrando uma torre de quentinhas; pode ser o quarto entulhado onde a banda guarda seus instrumentos; pode ser uma sacola cheia de coisa que alguém organiza às pressas para pegar a van do aeroporto. “Apesar de Mocofaia significar esse espaço de confusão, é um disco super organizado, é uma brincadeira com a organicidade da sua origem. Há disciplina, muito ensaio e a alegria de tocar”, adianta o pianista Marcelo Galter. Com sete faixas, o álbum foi gravado, lançado e prensado em vinil pela Rocinante e estreia neste dia 30 de outubro em todas as plataformas de streaming.
O grupo é formado por Luizinho do Jêje, um dos percussionistas mais inventivos do Brasil e líder do grupo Aguidavi do Jêje – indicado ao 25º Grammy Latino com seu primeiro disco; Marcelo Galter, pianista, compositor, arranjador e produtor musical baiano e Sylvio Fraga, compositor, poeta e diretor artístico da gravadora Rocinante (com três recentes indicações ao Grammy Latino como produtor musical nos discos Síntese do Lance (João Donato e Jards Macalé), Erika Ribeiro e Aguidavi do Jêje), o grupo traz uma proposta única e inovadora cuja abordagem une tradição e arrojo inventivo.
Sylvio, Marcelo e Luizinho têm, cada um, uma história muito distinta um do outro, tanto na música quanto na vida. Cada qual com trabalhos solo distintos e originais e no entanto o entendimento entre os três para compor e tocar é como o encontro de rios. Eis a ironia brincalhona do nome da banda, cuja música é arranjada e estruturada em claves afro-brasileiras (ancestrais ou inventadas). Após anos dos três colaborando em diversos projetos, inclusive nos trabalhos solo de cada um, Luizinho e Marcelo resolveram passar uma temporada no Rio de Janeiro, para onde acabaram se mudando. Lá se hospedaram na casa de Sylvio e com um violão na cozinha começaram a compor incessantemente. Resolveram então montar o grupo para dar vazão às músicas novas, e a criação coletiva seguiu com o mesmo frescor na hora de fazer os arranjos: “a gente faz tudo coletivamente, cada um colocando sua singularidade. Não são músicas que faríamos sozinhos e isso é muito enriquecedor pra gente. Há uma confiança total na visão musical do outro, há um constante aprendizado”, resume Sylvio.
O som é resultado de uma autêntica gama de inspirações do conjunto: eles montaram uma playlist com referências Mocofaia, que inclui Dorival Caymmi, João Donato, Olodum, Tom Jobim, Codona, Naná Vasconcelos, Gilberto Gil, Mestre Pastinha, João Bosco, Letieres Leite, além da gambiana Sona Jobarteh, a malinesa Oumou Sangaré e o camaronês Francis Bebey.
As composições do Mocofaia também se destacam pela lírica das letras, numa junção inusitada entre a bagagem literária da poesia de Sylvio e as tradições orais afro-brasileiras de Luizinho. A faixa “Mestre Besouro Mangangá”, por exemplo, é quase uma suíte em torno da palavra manga. Na letra, a manga é fruto, que no Nordeste brasileiro vira o verbo mangar — fazer graça, rir de algo — tem a beleza da flor do Mangangá que contém a memória do Mangalarga Marchador, sobre o qual se pode tomar “pinga sem pingar”, o que podemos considerar uma alusão à fluidez das palavras do grupo dentro de seus ritmos melódicos. No fim, a homenagem ao grande capoeirista Besouro Mangangá, com intervenções do berimbau de Luizinho. Mocofaia também é um sonho de liberdade musical: “não me amarre, por favor”.
No single “Vim pra Bahia”, em cima de uma clave híbrida surgida do violão brasileiro vira-lata do Sylvio, Luizinho constrói uma levada de atabaques e xequerê que carrega as tradições da nação Jêje e Marcelo traz aprendizados de orquestração de Claus Ogerman para o suingue de seus teclados e uma visão inovadora na construção das linhas de baixo synth. E em meio aos arranjos, não falta espaço para variações expressivas.
A faixa “História do quintal” é uma meditação em torno de um simples quintal, por onde passam os gatos da casa, gambás, o filho de Sylvio, onde cai a chuva sobre as plantas e a cabeça voa: “pinga, pinga no quintal da minha cabeça”. No samba raiz “Galo no muro”, uma cabila, a mulher “samba com pé no barro”, e “um bebê [chora] pra nos lembrar que o dia vai nascer”. No alujá “Mãe Nicinha e Mãe Runhó”, um chamado à celebração: “cadê meu irmão pra meter a mão no couro, pra gente cantar e dançar aqui no barracão”. Luizinho do Jêje resume: “fomos juntos buscando e descobrindo o caminho, o tempo todo. Não conseguimos nos definir num estilo, mas o som é raiz”. Em uma das letras, eles cantam: eu não sei pra onde vou, mas eu sei que vou tentar”.
“Mocofaia” está disponível em todas as plataformas digitais (link direto de streaming) e em vinil, todos projetos assinados pela Gravadora e Fábrica Rocinante. No Youtube, o grupo lança ainda um mini documentário especial com fases da gravação e produção do disco. O vinil, prensado em 180g, pode ser encontrado no e-commerce Rocinante Três Selos.
Fotos: João Atala.