Não existe a mulher negra universal. Por Carla Akotirene
Não existe a mulher negra universal. Carregamos escassez e águas com temperaturas diferentes, fluxos lunares minguados e de maré cheia, incapazes de saciar a sede duma dignidade interrompida.
Salgadas, adoçadas, densas e rasas, somos profundamente intrecruzadas pelo racismo-machismo-adultismo e, por vezes, pelas nossas intelectualidades desaplaudidas.Não creio, por exemplo, que as mulheres negras que auxiliam, decoram ou são dirigentes de certas articulações mistas da militância tenham reais condições de matar a vantagem da mucama subjetiva e de si. Vejo nelas o desejo de destemperar, até mesmo passar do ponto, o ingrediente vindo de outra cozinha, levantada pelas mãos de mães pretas.
Ao nos encontrarmos nos espaços da casa grande, deveríamos puxar as cantigas da senzala e os orikis dos quilombos. Estou falando da Irmandade do tipo que vai lá, sendo liberta, ajuda a comprar alforria pra outras.
Estou problematizando as nossas feridas!! Sabemos, sem meritocracia, o quanto nossas mães e avós se realizam intelectualmente a partir de nossas trajetórias acadêmicas e militantes. De longe, posso imaginar o que é pra você, ser vista com olhos gordurosos, apenas, por que ao contrário de sua prima que engravidou cedo e saiu da escola, você, por outros motivos seguiu. Deve ser doloroso, pra muitas de nós, olharmos no espelho e sentirmos raiva de onde estamos, e porque não viajamos. De termos dado tanto na mão, presenciar alguém da infância na faculdade, na TV, enquanto nós, com nossas fragilidades e resistências, estamos seguindo devagar, bem devagar mesmo. Ou, ganhamos bem, sem sermos respeitadas profissionalmente.
Tais ocorrências, pra mim que atendo mulheres mal tratadas pela vida, mulheres que tentaram se matar, ou que quase foram mortas, é perceptível dessa superestutrura colonial que enseja competividades, autoboicotes, recalques e repressões entre a dama de companhia da sinhá, a mãe preta e a liderança do quilombo. É o mau uso do elogio….
Não pretendo ser super humana do bem, acredito na possibilidade real de celebrarmos as falas bonitas, os jeitos altivos, sinceros, treinados e ancestrais que todas nós temos.
Que as articulações negras, dirigidas por (homens e mulheres) ajudem as que chegam formalmente à luta celebrar os jeitos e manejos das outras negras, jovens, velhas, faveladas, acadêmicas, secundaristas ou iletradas.
O nosso Ori escolheu reviver as experiências ancestrais como também romper, definitivamente, com o lado doloroso delas. Eu sei, por exemplo, que tenho o ar de quem a qualquer momento pode encantar o espelho da outra, só pra que ela veja seu lado feio, sei também que a minha ancestral aumenta o grau de sua deidade quando numa ética de cuidado, pelo ebó do meu comportamento consigo ser mais nobre com as mulheres. E você, consegue não rasgar o vestido da outra? Com todos os remendos da vida, acharei o seu muito bonito.
Asè!”
Carla Akotirene, baiana, é doutoranda em estudos de gênero, mulheres e feminismo