Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Nem sei se posso, mas quero por Juliana Sayuri

8 - 11 minutos de leituraModo Leitura
Eduardo_Giannetti

Sorry, brazucas… Em um breve e irônico post publicado nessa semana na revista americana Forbes, o jornalista Kenneth Rapoza endereçou críticas aos consumidores brasileiros: “Não há status em um Toyota Corolla, Honda Civic, Jeep Grand ou Dodge Durango. Definitivamente, vocês estão sendo roubados”.

 

Estamos? Estamos. E não só nas cifras milionárias desembolsadas para adquirir carrões e outros luxuosos mimos (sem os quais viveríamos muito bem, obrigado). “Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo”, critica o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor de O Valor do Amanhã: Ensaio sobre a Natureza dos Juros e do best-seller Felicidade: Diálogos sobre o Bem-estar na Civilização (ambos Companhia das Letras).

Para Giannetti, nós brasileiros estamos dispostos a pagar preços estratosféricos por carros importados (luxuosos e nem tanto), pois eles nos conferem a ilusória ideia de status. São “bens posicionais”, que hierarquizam a sociedade na antiga fórmula quanto mais caro, mais exclusivo; quanto mais exclusivo, mais status. “Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida sempre se renova”, diz. É o carro do ano, o look exclusivo da fashion week, o restaurante badalado, a deserta ilha paradisíaca e outras extravagâncias de gente chique. Para serem almejados, os objetos devem continuar um privilégio de poucos, fora do alcance dos plebeus. Nessa lógica, o diamante só brilha se refletir nos olhos dos outros.

Na quinta-feira, Giannetti recebeu o Aliás no seu apartamento no bairro paulistano de Vila Madalena. Ph.D. pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) de São Paulo, Giannetti costura economia e filosofia para discutir por que os ideais de beleza, poder e riqueza abalam a psique humana de uma maneira quase irracional. “Por que nos deixamos levar pelas promessas desses bens posicionais? Por que somos iludidos por eles?”, questiona. Para responder à questão, Giannetti busca na estante O Livro das Citações: Um Breviário de Ideias Replicantes, de sua autoria, com páginas marcadas por post its coloridos, e cita o poeta satírico Petrônio: “Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los”.

Conversamos numa sala ampla, charmosa e emoldurada por estantes e mais estantes cheias de livros. Só na biblioteca pessoal, o economista guarda mais de 5 mil títulos. “São meus bens posicionais”, diz, brincando a sério. “Todos nós temos bens posicionais. Seria uma ilusão dizer que não. Pascal tinha um pensamento interessante: ‘Os seres humanos se dividem em duas classes: os santos que se creem pecadores, e os pecadores que se creem santos.’ Prefiro estar entre os santos.”

Na Forbes dessa semana, Kenneth Rapoza ironiza os preços exorbitantes que os brasileiros pagam por carros importados. Afinal, por que aceitamos pagar tão caro?

Por um lado, porque não há alternativa. A indústria automobilística brasileira é altamente protegida. Os importados pagam uma tarifa exorbitante para entrar no País. Os carros ficam com um preço muito acima do mercado internacional, mesmo descontando os impostos. Por outro lado, os brasileiros se submetem aos preços pois os carros são “bens posicionais”. A ideia é do economista inglês Fred Hirsch. O valor do bem posicional depende justamente da “exclusividade”, isto é, do fato de que os outros não têm acesso a esses bens. Quanto mais caro, mais exclusivo. Quanto mais exclusivo, mais status. E, portanto, mais poder para impressionar os outros. O filósofo francês Nicolas Malebranche dizia que o desejo mais ardente das pessoas é conquistar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes. Essa é a ideia do bem posicional: o proprietário pensa que as pessoas passam a respeitá-lo e admirá-lo mais porque ele pode desfilar um carrão, uma grife, um luxo.

Mas todos os bens são consumidos assim?

Há uma diferença. Um copo de leite, por exemplo, é um bem normal. Se tenho prazer em beber um copo de leite todas as manhãs, isso independe do resto da sociedade. Se amanhã todo mundo beber um copo de leite igualzinho, o meu prazer não mudará uma gota. Mas suponha que eu sou um jovem ambicioso, trabalho 12 horas no mercado financeiro, ganho meu dinheiro honestamente e decido que a coroação da minha vitória será um automóvel caríssimo. Compro meu carro dos sonhos – um BMW, um Mercedes ou um dos carros mencionados pela Forbes – e, de repente, tenho um estalo: “Eu sou especial”. As meninas vão ver um brilho diferente no meu olhar, os amigos vão me invejar, os outros vão me respeitar quando passar na rua. Volto para casa feliz da vida. Mas, na manhã seguinte, acontece uma coisa estranha: todos os carros da cidade se transformaram em BMWs idênticos ao meu. E aí? Será que esse carro ainda tem a importância e o valor que tinha aos meus olhos e aos olhos dos demais? Ou será que o poder que ele me conferia simplesmente desapareceu? Pois é, desapareceu. Uma das melhores definições dessa ideia é do satírico romano Petrônio: “Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los”. Isso foi dito na Roma antiga, há dois milênios. Uma passagem de Adam Smith, n’A Riqueza das Nações (1776), também ilustra isso: “Para a maior parte das pessoas ricas, a principal fruição da riqueza consiste em poder exibi-la, algo que aos seus olhos nunca se dá de modo tão completo como quando elas parecem possuir aqueles sinais definitivos de opulência que ninguém mais pode ter a não ser elas mesmas”. Essa é uma definição irretocável do bem posicional. Quer dizer, sim, compramos um sinal de opulência e de distinção, um prestígio, um brilho – embora muitas vezes sabendo que estamos sendo roubados. Mas, afinal, por quê? Beleza, poder e riqueza mexem com o psiquismo humano de uma maneira quase pré-racional. Não percebemos quão vulneráveis somos a esses apelos. Isso certamente não é de hoje. Ao longo da história, muitos pensadores se debruçaram sobre essa questão, a partir de uma perspectiva ética. Como entender o fascínio por beleza, poder e riqueza? Por que nos deixamos levar por essas promessas? Por que somos iludidos por esses bens posicionais?

No mês passado, os brasileiros marcaram níveis históricos de inadimplência (na série do Banco Central iniciada em 2000). Vale tudo para poder adquirir esse bens?

Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo, pois o bem posicional sempre se renova. Isto é, no momento em que se democratiza o acesso a um bem de consumo, outros novos são inventados. É como uma corrida armamentista: sempre teremos novos e diferenciados objetos de desejo. Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida armamentista sempre se renova. Não dá para desmontar totalmente as armadilhas dessa corrida, mas podemos almejar uma sociedade mais madura e marcada por uma pluralidade de valores. Assim nem todos estariam competindo na raia estreita, por um carro x ou y. Deveríamos conquistar um lugar de honra na sociedade mais pelo que somos e menos pelo que possuímos.

Há diferenças entre a sociedade de consumo de outros países e a do Brasil atual?

O que complica o Brasil é a desigualdade. Isso acirra e exacerba o poder do dinheiro, da posse, da propriedade. Quem não tem superestima o que o dinheiro pode comprar, ficando muito vulnerável a fantasias e fascínios sobre o status. Na outra ponta, o rico tem o poder superdimensionado por poder comprar o trabalho dos outros a um preço aviltado, adquirindo uma preeminência desmesurada na sociedade. Mas a novidade brasileira é a mobilidade social dos últimos dez anos. Cerca de 30 milhões de brasileiros, antes praticamente excluídos, passaram a ter acesso ao mercado de consumo. Há um momento de deslumbramento diante dessas novas possibilidades, o que é natural, pois essas pessoas tiveram uma demanda reprimida durante diversas gerações. Por isso elas vão com muita sede ao pote, que lhes foi negado por muito tempo. Mas esse deslumbramento não pode durar para sempre. Em certo momento, a sociedade precisará amadurecer. E as pessoas, principalmente dessa nova classe média, vão precisar pensar no futuro.

O que quer essa nova classe média?

É o que todos queremos saber. Mas podemos dizer que essa nova classe média tem uma demanda vigorosa por credenciais educacionais. O que até seria certo, mas a ideia de educação é que está equivocada. Educação é conhecimento, cultura, formação, habilidades, informação. E não simplesmente um diploma, um papel vazio. Um dos dados mais estarrecedores dos últimos tempos foi revelado na pesquisa feita pelo Ibope. Um dado realmente alarmante: 38% dos egressos do ensino superior no Brasil são analfabetos funcionais. Há alguma coisa muito grave e muita errada em um sistema educacional em que isso acontece. Se tiver o mínimo de seriedade e até de autorrespeito, o governo deveria se debruçar sobre essa realidade, principalmente neste momento de ascensão social.

No livro O Valor do Amanhã o sr. diz que o imediatismo impera na sociedade brasileira. Como isso se traduz no consumo?

A imaginação brasileira é muito volátil: quando as coisas vão mal, as pessoas caem em desesperança radical; quando as coisas vão bem, elas caem na euforia e na exuberância. A lâmina da sobriedade precisa cortar nas duas direções. Essa preferência pelo presente, mesmo a um custo elevado no futuro, é uma das características mais marcantes da vida brasileira, com raízes históricas desde a colonização. Atualmente, dá para notar isso em muitas dimensões: a formação de capital humano, a infraestrutura, a poupança previdenciária. Os nossos juros exorbitantemente elevados são sintomáticos dessa predileção pelo presente. Eu me inspiro num conto de Machado de Assis intitulado, não por coincidência, O Empréstimo. Machado descreve um personagem com vocação para a riqueza, mas sem vocação para o trabalho. E a resultante é: dívida. Adaptei isso para a sociedade brasileira, pois o Brasil me parece um país com vocação para o crescimento, mas sem vocação para a poupança. E a resultante disso é desequilíbrio macroeconômico.

Com a ascensão dessa classe emergente, os ricos vão querer esbanjar ainda mais para manter seu status e seus bens posicionais?

Nós temos um quadro curioso de discriminação social no Brasil: as pessoas da elite financeira e econômica se sentem diferentes do resto da sociedade e não querem ter seus privilégios ameaçados. Por outro lado, o País tem uma inconsistência estrutural interessante em diversos campos: nos transportes, na moradia, na educação. A nova classe média tem uma demanda, legítima e até natural, por automóveis, um símbolo de autonomia e status. Mas temos infraestrutura para acompanhar uma agressiva expansão da frota? O avião, por exemplo. Antes restrito, o transporte aéreo agora está recebendo muita gente (e é bom que isso aconteça), mas temos infraestrutura para ordenar esse crescimento? Não, aí o caos nos aeroportos. A mesma falha na questão habitacional: há uma imensa demanda por moradia, absolutamente legítima e muito bem-vinda, por casa própria. Minha Casa, Minha Vida é a cereja do PAC. Mas temos infra urbana de saneamento básico, por exemplo, para dar real dignidade às pessoas? Em pleno século 21, 40% dos domicílios brasileiros não têm saneamento básico, o que é gravíssimo. E a telefonia? Todo mundo tem celular atualmente, mas ninguém consegue se comunicar direito por causa das panes do sistema. Nesses exemplos e em outras situações, encontramos a mesma inconsistência. Nós fazemos a parte fácil – relacionada ao consumo imediato -, mas temos muita dificuldade para dar estrutura a essas demandas de uma maneira sustentável e ordenada. Então, a vida cotidiana é conturbada. É um pesadelo vivido pela sociedade inteira, independentemente da classe social.

ECONOMISTA E FILÓSOFO, Ph.D. PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, PROFESSOR DO INSPER. É AUTOR DE O VALOR DO AMANHÃ

Entrevista publicada originalmente em o Estado de São Paulo de 19 de agosto de 2012

Compartilhar:

Mais lidas