Noam Chomsky em SP. Por Mário Sérgio Conti
Noam Chomsky chegou ao café, nas Perdizes, com três tons de azul –no tênis, na camisa, na jaqueta. Estava bem melhor da gripe que pegara em Montevidéu. “Fui a um churrasco ao ar livre e fazia um frio horrível, receita certa para ficar doente”, explicou.
Contou que conversara com o ex-presidente Mujica, “um dos poucos políticos honestos hoje”. Perguntou de Lula, lamentou a destituição de Dilma (“o PT perdeu uma enorme oportunidade”) e elogiou o ex-chanceler Celso Amorim. Tomou expresso e comeu pão de queijo.
No café e na GloboNews, um fluxo contínuo de jovens veio lhe pedir autógrafo e selfies. Uns admiravam o linguista que virou a disciplina do avesso. Outros, o crítico radical do imperialismo. Chomsky é o intelectual americano mais conhecido no mundo.
Ele se lembra de, criança, ter escutado Hitler no rádio. Não entendeu o sentido do que dizia, mas captou-lhe a dicção violenta e o seu efeito sobre a multidão fanática. O primeiro artigo que publicou, no jornal da escola, lastimava a queda da Barcelona diante dos fascistas. Tinha dez anos.
A revolução começou com “Estruturas Sintáticas”, lançado há 70 anos com a frase memorável: “colorless green ideas sleep furiously”, ideias verdes sem cor dormem furiosamente. O sentido é nulo, mas a gramática existe. Ou seja, a sintaxe independe da semântica; a forma, do conteúdo.
Chomsky, grosso modo, postulou a existência de uma linguagem interna, usada para pensar, da qual decorreria outra, externa, mero meio de comunicação. Ambas se fundariam num sistema biológico inato, a gramática universal. Pensamos, logo existimos.
Além de cartesiano, Chomsky foi influenciado por linguistas medievais. Eles presumiram uma língua divina primordial, perdida quando da presunçosa tentativa humana alcançar o paraíso –fazer a Torre de Babel. Algo da estrutura da língua adâmica existiria na gramática universal.
Ocorre que o pensamento de Chomsky não tem brumas místicas. Ali onde a linguagem e a política se encontram, ele foi marcado, isso sim, pela clareza materialista de George Orwell. O primeiro livro que leu dele, “Homenagem à Catalunha”, levou-o ao anarco-sindicalismo.
O anarquismo é evidente na sua política. Chomsky combate os estados, a começar pelos Estados Unidos. Preza a luta espontânea dos fracos contra a autoridade da força. Acha que comunidades sem hierarquia podem gerar liberdade. Como na Barcelona insurgente de Orwell.
Na linguística, algo dessas concepções está presente, ainda que indiretamente. Ele defendeu que as crianças não aprendem a língua materna, e sim a “adquirem”. Com um mínimo de estímulos, logo chegam a complexidades altamente sofisticadas. Têm em si a gramática universal.
Caberia aos linguistas, pois, facilitar a aquisição da língua. Para incentivar e tornar perene a criatividade infantil, diminuindo assim a distância entre a competência universal e a performance individual –um projeto que talvez se inspire no anarquismo.
Veio, então, a pergunta fatal: o que acha do Brasil? “É ótimo o país que produz uma maravilha como essa”, respondeu. Deliciado, apontou Valéria, a brasileira com quem se casou há pouco.
Chomsky falou a sério: eles se olham nos olhos, andam de mãos dadas, cuidam um do outro. Ouvem música clássica e assistem juntos a filmes de Woody Allen. Estão de mudança de Massachusetts para o Arizona.
Valéria apresentou Machado de Assis ao marido, que adorou seus romances. Sorrindo, citou “Quincas Borba”: “To the winner, the potatoes”.
Chomsky tem 88 anos. Publicou dezenas de livros, tem três filhos, cinco netos e um bisneto. Mais que as glórias passadas, vale o aqui e agora: trabalha todos os dias; é criativo e curioso; viaja o mundo vergastando os poderosos e é ouvido pelos jovens; ama e é amado.
Ao vencedor, as batatas.
Publicado originalmente na FSP de sábado 12.08