Aldeia Nagô
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Nossa região é o reino dos paradoxos, Por Eduardo Galeano

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

Brasil, peguemos caso a caso:
Paradoxalmente, Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais
altas belezas da arte da época colonial; paradoxalmente, Garrincha,
arruinado desde a infância pela miséria e pela poliomielite, nascido
para a infelicidade, foi o jogador que mais alegria deu em toda a
história do futebol; e, paradoxalmente, já cumpriu cem anos de idade
Oscar Niemeyer, que é o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dos
brasileiros.


Peguemos o caso da Bolívia: em 1978, cinco mulheres voltearam uma ditadura militar. Paradoxalmente, toda a Bolívia riu delas quando iniciaram sua greve de fome.
Paradoxalmente, toda a Bolívia terminou jejuando com elas, até que a ditadura caiu.

Eu conheci uma dessas cinco obstinadas – Domitila Barrios – no povoado mineiro
de Llallagua. Em uma assembléia de operários das minas, todos homens, ela se
levantou e fez todos se calarem.

– Quero lhes dizer isto – disse. Nosso
inimigo principal não é o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso
inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós.

E anos depois
reencontrei Domitila em Estocolmo. Tinha sido expulsa da Bolívia e ido para o
exílio com seus sete filhos. Domitila estava muito agradecida pela solidariedade
dos suecos, cuja liberdade admirava, mas eles lhe davam pena, tão solitários que
estavam, bebendo sozinhos, comendo sozinhos, falando sozinhos. E lhes dava
conselhos:

– Não sejam bobos – lhes dizia. Nós, lá na Bolívia, nos juntamos. Ainda que seja
para brigar, nos juntamos.

E como tinha razão.

Para
quê, digo eu, existem os dentes se não se juntam na boca?, existem os dedos se
não se juntam na mão?

Juntarmos: e não apenas para defender o preço de
nossos produtos, mas também, e sobretudo, para defender o valor de nossos
direitos. Estão bem juntos, embora de vez em quando simulem rixas e disputas, os
poucos países ricos que exercem a arrogância sobre todos os demais. Sua riqueza
come pobreza, e sua arrogância come medo. Faz bem pouco tempo, peguemos este
caso, a Europa aprovou a lei que converte os imigrantes em criminosos. Paradoxo
dos paradoxos: a Europa, que durante séculos invadiu o mundo, bate a porta na
cara dos invadidos quando retribuem a visita. E essa lei foi promulgada com uma
assombrosa impunidade, que seria inexplicável se não estivéssemos acostumados a
ser comidos e a viver com medo.

Medo de viver, medo de dizer, medo de ser. Esta nossa região faz parte de uma
América Latina organizada para o divórcio de suas partes, para o ódio mútuo e a
mútua ignorância. Mas, somente estando juntos seremos capazes de descobrir o que
podemos ser, contra uma tradição que nos adestrou para o medo e a resignação e a
solidão e que a cada dia nos ensina a nos desquerermos, a cuspir no espelho, a
copiar em lugar de criar.

Durante toda a primeira metade do século XIX,
um venezuelano chamado Simon Rodríguez, andou pelos caminhos de nossa América,
no lombo de mula, desafiando os novos donos do poder:

– Vocês – clamava
dom Simon – vocês que tanto imitam os europeus, por que não os imitam no mais
importante, que é a originalidade?

Paradoxalmente, ninguém dava ouvidos a
este homem que tanto merecia ser ouvido. Paradoxalmente, o chamavam de louco,
porque tinha o bom senso de acreditar que devemos pensar com nossa própria
cabeça, porque tinha o bom senso de propor uma educação para todos e uma América
de todos, e dizia que aquele que não sabe é enganado por qualquer um e que
aquele que nada tem é comprado por qualquer um. Porque tinha o bom senso de
duvidar da independência de nossos países recém-nascidos:

– Não somos donos de nós mesmos – dizia. Somos independentes, mas não
somos livres.

Quinze anos depois da morte do louco Rodríguez, o Paraguai foi exterminado. O
único país hispano-americano verdadeiramente livre foi paradoxalmente
assassinado em nome da liberdade. O Paraguai não estava preso na jaula da dívida
externa porque não devia um centavo a ninguém, e não praticava a mentirosa
liberdade de comércio, que nos impunha e nos impõe uma economia de importação e
uma cultura de impostação.

Paradoxalmente, ao cabo de cinco anos de uma
guerra feroz, entre tanta morte sobreviveu a origem.

Segundo a mais
antiga de suas tradições, os paraguaios nasceram da língua que os nomeou, e
entre as ruínas fumegantes sobreviveu essa língua sagrada, a língua primeira, a
língua guarani. E em guarani falam ainda os paraguaios na hora da verdade, que é
a hora do amor e do humor. Em guarani, ñeñé significa palavra e também significa
alma. Quem mente a palavra, trai a alma. Se te dou minha palavra, me dou.

Um século depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chile deu sua palavra,
e se deu.

Os aviões cuspiam bombas sobre o palácio do governo, também
metralhado pelas tropas de terra. Ele disse:

– Eu daqui não saio
vivo.

Na história latino-americana é uma frase freqüente. Foi pronunciada
por uns quantos presidentes que depois saíram vivos para continuar
pronunciando-a. Mas essa bala não mentiu. A bala de Salvador Allende não
mentiu.

Paradoxalmente, uma das principais avenidas de Santiago do Chile
se chama, ainda, Onze de Setembro. E não se chama assim pelas vítimas das Torres
Gêmeas de Nova York. Não. Tem esse nome em homenagem aos verdugos da democracia
no Chile. Com todo o respeito por esse país que amo me atrevo a perguntar, por
puro senso comum: não estaria na hora de mudar o nome? Não estaria na hora de
chamá-la Avenida Salvador Allende, em homenagem à dignidade da democracia e à
dignidade da palavra?

E, pulando a cordilheira, me pergunto: Por que será que Che Guevara, o argentino
mais famoso de todos os tempos, o mais universal dos latino-americanos, tem o
costume de continuar nascendo? Paradoxalmente, quanto mais o manipulam, quanto
mais o traem, mais nasce. Ele é o mais nascedor de todos.

E me pergunto:
não será porque ele dizia o que pensava e fazia o que dizia? Não será por isso
que continua sendo tão extraordinário neste mundo onde as palavras e os fatos
muito raramente se encontram, e quando se encontram não se cumprimentam porque
não se reconhecem?

Os mapas da alma não têm fronteiras, e eu sou patriota de várias pátrias. Mas
quero culminar esta pequena viagem pelas terras da região evocando um homem
nascido, como eu, aqui pertinho.

Paradoxalmente, ele morreu há um século
e meio, mas continua sendo meu compatriota mais perigoso. Tão perigoso que a
ditadura militar do Uruguai não pôde encontrar uma única frase sua que não fosse
subversiva e teve que decorar com datas e nomes de batalhas o mausoléu que
ergueu para ofender sua memória.

A ele, que se negou a aceitar que nossa
pátria grande se rompesse em pedaços; a ele, que se negou a aceitar que a
independência da América fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres; a
ele, que foi o verdadeiro primeiro cidadão ilustre da região, dedico esta
distinção, que recebo em seu nome.

1820, Paso del Boquerón. Sem virar a cabeça, afunda no exílio. O vejo, estou
vendo-o: desliza do Paraná com a agilidade de um lagarto e se afasta flamejando
seu poncho esfarrapado, ao trote do cavalo, e se perde na mata. Diz adeus à sua
terra. Ela não queria acreditar. Ou, talvez, não soubesse ainda que partiria
para sempre.

Se acinzenta a paisagem. Vai, vencido, e sua terra fica sem
alento. Lhe devolverão a respiração os filhos que lhe nascerem, os amantes que
chegarem? Os que desta terra brotem, os que nela entrem, serão dignos de
tristeza tão profunda?

Sua terra. Nossa terra do sul. Lhe será muito necessário, don José. Cada vez que os ambiciosos a lastimarem e a humilharem, cada vez que os tontos a considerarem muda ou estéril, lhe fará falta. Porque o senhor, don José Artigas, general dos simples, é a melhor palavra que ela pronunciou.

Na semana passada, o Mercosul homenageou o jornalista e escritor Eduardo Galeano com o titulo de Cidadão Ilustre do Mercosul pelo incentivo que presta à cultura, à identidade latino amerciana e à integração regional. Durante a homenagem, Galeano apresentou este texto.


"Os mapas da alma não têm fronteiras"

Matéria no site de Luiz Carlos Azenha:

<http://www.viomundo.com.br/denuncias/conceicao-lemes-aldo-vicentin-mais-uma-vitima-do-amianto/>

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