Aldeia Nagô
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Novela de classe de Emilio Odebrecht x Lula. Por Paulo Moreira Leite

11 - 15 minutos de leituraModo Leitura
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O efeito mais grave  e deprimente dos depoimentos e delações da Lista do Fachin é seu papel na restauração da velha ordem social brasileira, típica de uma sociedade desigual e hierarquizada, onde as classes sociais e seus representantes pouco a pouco retornam aos papéis tradicionais num universo de domínio e  submissão.

Num tempo em que a Lava Jato já havia se transformado em espetáculo fantasioso e juristas de bom calibre comparavam as longas prisões preventivas a uma tortura sem sangue, o professor da USP Renato Mello Jorge da Silveira, titular da cadeira de Direito Penal da USP, apontou para uma questão social nítida. Descreveu a delação premiada como  aquele mecanismo que mobiliza fortes e fracos, para reproduzir uma velha ordem que sempre beneficia os primeiros em benefício dos segundos. Disse o professor: “beneficia-se o criminoso de alta gama, aquele que teria mais informações. Pactua-se, portanto, com quem mais delinquiu. Pune-se, por outro lado, a menor criminalidade, ou outros, que simplesmente ficaram aquietados.”

É isso aí: num país onde, entre 2002 e 2016, ocorreram mudanças que, com todos os seus limites e distorções, permitiram que um povo sempre dominado, caminhasse de cabeça erguida e com mais consciência do que nunca  sobre direitos e vontades, as delações premiadas funcionam — sociologicamente — como  um mecanismo de retorno a velha ordem.

É este o fio condutor do espetáculo, seu sentido histórico, que se projeta como ameaça sombria para muitos anos vindouros desde país tão belo, habitado por um povo tão maltratado mas altivo e corajoso. Nos dias de hoje, pós-lista do Fachin, vivemos o ponto decisivo de uma novela de classe, patrocinada pelo conjunto da velha classe dominante brasileira, com o auxílio sempre indispensável da Globo e seu império, exímio ilusionista de multidões.

O empreiteiro Emílio Odebrecht, no papel de “criminoso de alta gama”, é chamado a colaborar na punição de Lula, aquele personagem que, na pior das hipóteses, poderia ser enquadrado na categoria “menor criminalidade”, para que seja conduzido à prisão, onde pode fazer companhia a outros condenados, aqueles “outros, que ficaram aquietados.”

Este é o horizonte do folhetim. O  capítulo decisivo será exibido em 3 de maio, quando Lula se apresenta perante Sérgio Moro, para responder por cinco inquéritos. Divulgada em ambiente de circo, a função dramática da lista de Fachin fica cada vez mais clara:  criar o clima de suspense, definindo uma espectatativa na qual, como acontece nas boas dramaturgias, o público já está convencido de tudo e já não se pergunta pelo que pode acontecer. Só quer saber como o vilão será apanhado.

Como explicou o professor Luiz Moreira, em entrevista ao 247: “a combinação entre a midiatização das acusações e a insistência com que elas são veiculadas na mídia geram uma espécie de cansaço que pode levar as pessoas a entenderem que realmente há algo reprovável juridicamente nas condutas de Lula. Repare que não se trata de comprovação jurídica de que Lula tenha cometido algum crime, mas a permanência das acusações gera esse sentimento de que ele é culpado.”

A novela de classe ajuda a criar o cansaço, essa dificuldade de raciocinar e manter os sentidos em alerta. Só os muito iludidos com a Lava Jato em sua fase Lista do Fachin têm direito a se impressionar com a citação de velhos quadros da elite brasileira, como José Serra, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Fernando Henrique Cardoso, imaginando que a situação mudou. Estamos falando de personalidades úteis a seus patrocinadores, capazes mesmo de atos execráveis mas inteiramente descartáveis, substituíves como protagonistas que se revelam simples coadjuvantes , como já foram tantos nomes do passado — Janio Quadros, Adhemar de Barros, Fernando Collor, o próprio José Sarney, Paulo Maluf  — dispensados das funções quando sua presença tornou-se inconveniente, porque excessivamente desmoralizante.

Basta reparar que, embora nenhuma investigação esteja encerrada, já se vislumbram possíveis substitutos,  como o prefeito-ator, o apresentador-candidato, o economista-filósofo de programas-sexy e assim por diante. O lote de personalidades disponíveis para os serviços de quem sempre  mandou e sempre pagou bem é infinito, num país onde a origem das grandes fortunas se encontra na chibata e no pelourinho dos capitães do mato, modo de vida inaugurado logo após o Descobrimento, atualizado em sucessivas expedições coloniais recebidas pelo país até hoje, chegando, sem maiores disfarces e raros percalços, ao governo Michel Temer.

No Brasil entre 2002 e 2017, vivemos, apesar das aparências em contrário, no mundo como ele é: um lugar onde a  luta de classes existe e mobiliza patrão e empregado, burguês contra proletário, ricos contra pobres, império e colônia. Não existem personagens-deuses, nem lideranças de mármore, mas homens e mulheres de carne-e-osso, falíveis e também geniais, capazes de gestos mesquinhos e até vergonhosos em meio a atos de generosidade.

No país dos falsos homens-cordiais, do fascismo vendido como sabonete, da social-democracia dos banqueiros, chega-se à etapa mais dramática — até aqui — de  um conflito como nunca se tinha visto, uma luta histórica que sempre esteve disfarçada porque seu sabor estragava o apetite dos bons jantares, a superficialidade do jornalismo bem comportado. Este é o Brasil que aguarda pelo 3 de maio.

E é nesta situação que Emílio Odebrecht assume, com risos no rosto e comentários bem humorados, possivelmente espontâneos, o esforço para destruir um cidadão que se revelou um inimigo de classe, um alvo a ser destruído.

Em várias ocasiões, o patriarca da ex-maior empresa produtiva brasileira, o que realmente manda — e passou a mandar ainda mais depois que o celular do filho Marcelo tornou-se o mapa da mina do Ministério Público — aceitou ser enquadrado pelo procurador Sérgio Bruno Fernandes, que o interrogava, com um desempenho que logo seria notado — de forma elogiosa — pelo Jornal Nacional.

Mais de uma vez, Emílio Ocebrecht ouviu lições de moral e de política quando lembrou que estamos falando de um esquema que existe “há mais de 30 anos.” Num esclarecimento típico de quem está muito à vontade nas funções, e até ultrapassa a fronteira de quem se limita a ouvir o que a testemunha tem a dizer, o procurador interrompeu delicamente o depoimento para  argumentar: “Sempre há um momento para começar a resolver. Estamos tentando mudar as coisas como vinham sendo feitas. Vamos ver se a gente consegue.”

Sempre na posição de menino — em sua infância o termo era “moleque _- apanhado fazendo coisa errada, Emílio Odebrecht também foi advertido pelo procurador em outra ocasião. Este se mostrou incomodado por sua relutância em empregar termos do Código Penal — como propina — para se referir aos pagamentos a políticos. Usando uma situação hipotética, perguntou ao dono da ex-maior empresa produtiva brasileira como ele definiria o gesto de um cidadão que dá uma “ajuda” a um guarda que deveria ser multado por excesso de velocidade. Foi uma argumentação longa, excessivamente didática, que avermelhou a pele amorenada do empresário, tratado como aquele aluno humilhado perante toda classe — no caso perante o país — apontado como incapaz de entender uma questão simples e óbvia.

Tratando o interlocutor como um cidadão que desconhece questões básicas da vida em sociedade, o procurador lembrou que o pagamento seria criminoso mesmo que o policial tivesse usado o dinheiro para matar a fome do filho.  Emílio Odebrecht — cujas opiniões Fernando Henrique Cardoso gostava tanto de ouvir que chegou a lhe convidar para fazer um projeto de reforma do capitalismo brasileiro — ficou quieto mais uma vez. Empresário, não era de se imaginar que fosse aproveitar a deixa e debater crimes famélicos, num país que só muito recentemente — e por causa de quem mesmo?  — deixou o mapa da fome da ONU. Isso ajudaria a entender por que as vezes é difícil pensar a vida apenas pelo Código Penal, não é mesmo?

Perdeu a chance de explicar que o debate, ali, não envolvia exclusivamente o bom uso de um dicionário da língua portuguesa mas um percurso histórico, que gerou benefícios e prejuízos que dizem respeito a todos os presentes naquela audiência. Poderia ter lembrado — a título de simples contribuição ao debate em curso diante de imagens que depois seriam vistas pelo país inteiro — que mesmo envenado por propinas e outras práticas condenáveis, que hoje o país se dispõe a investigar e punir, o desenvolvimento brasileiro permitiu muitas coisas. Uma delas: ajudando a formar a oitava maior economia do mundo, com uma base material importante, capaz de alimentar uma superestrutura sofisticada, que dá lugar a atividades complexas e caras, entre elas um Ministério Público com formação acadêmica, ótimos  salários e boa remuneração funcional, cursos no exterior, verbas para viajar e autonomia constitucional. Essa é a irônica dialética da coisa, da Lava Jato e seu objeto.

Mas, na posição de “criminoso de alta gama”, beneficiado pelo ” aquele que mais delinquiu,” para retomar as palavras sensatas, sociologicamente inatacáveis, como mostrou o professor Renato Mello Jorge da Silveira, Emílio Odebrecht assumiu o percurso previsto no roteiro da novela de classe.

Mais popular presidente da História republicana, ocupando — até aqui — a primeira posição entre candidatos em 2018, a posição de Lula aos olhos da maioria dos brasileiros demonstra que ele está protegido contra críticas políticas e ataques frontais. Não tem a biografia de um monge mas é um dos raríssimos homens públicos brasileiros cuja propria história fala a favor. Seus inimigos sabem que deve ser tocaiado pelas costas, em lances de bastidor, que tem a força da fofoca e fazer comentários de pé de ouvido perante as multidões, sem a chance de se defender.

O esforço de Odebrecht para destruir Lula como líder dos trabalhadores brasileiros — indiscutivelmente o mais importante desde a implantação do trabalho assalariado no país — baseia-se numa tentativa  de  reescrever, quatro décadas depois, a história das primeiras lutas sociais no final da ditadura militar. Lembrando uma atuação moderadora de Lula na década de 1970, durante uma greve do Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, Odebrecht deixa no ar uma suspeita maliciosa contra uma liderança que acaba de emergir das greves do ABC. “Ele criou as condições para que eu pudesse ter uma relação diferenciada com os sindicatos,” disse Emílio Odebrecht.

Proprietário de uma inegável capacidade de negociação — e de uma permanente vontade política de conciliação — Lula ajudou fez trajetória como um moderado assumido. Foi assim que ajudou a preparar  o ingresso dos trabalhadores na cena política com fisionomia própria, construindo um partido de classe, o PT, e uma central sindical independente, a CUT. Mesmo criticado por lideranças e organizações situadas a sua esquerda, que sempre reclamaram de sua moderação litar, chegando a ser afastado da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Mesmo assim, completou um percurso único. Num processo do qual era o lider indiscutível, vinte anos depois da queda da ditadura, ingressava no Planalto como primeiro presidente operário, num governo que se prolongaria pelos doze anos seguintes, sendo interrompido apenas através de um golpe de Estado. Um dos méritos de sua atuação como liderança sindical foi justamente assegurar uma “relação diferenciada com sindicatos” — que permitiu a instalação de Comissões de Fábrica nas grandes empresas, assegurou melhorias salariais inegáveis e outros benefícios. Transportando esse mesmo espírito para o Planalto, assumiu propostas que permitiam ganhos tanto para as camadas de cima da pirâmide, mas, pela primeira vez, para as camadas debaixo.

Com o riso aberto de quem prepara uma gargalhada, Emílio Odebrecht ainda deu uma contribuição indispensável para se compreender o conteúdo da Lava Jato  como um processo essencialmente político, quando afirmou, em tom de revelação comprometedora:  ” Lula nunca foi de esquerda. É um bon vivant.”

Confirmando que a relevância de uma afirmação dessa natureza é própria de tribunais construídos por uma ditadura, mesmo em regimes stalinistas, a fonte de Emílio Odebrecht tem origem. Trata-se do general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações, a máquina de espionagem da ditadura de 64, que tentou cooptar Lula para seus quadros, num encontro fechado no bairro da Liberdade, sendo repelido de forma clara e direta. (Para não haver dúvida: quem relata o esforço para atrair Lula, e a recusa do líder metalúrgico, é o jornalista José Nêumane Pinto, insuspeito de qualquer simpatia pelo personagem).

Acusado de ter feito gestões para garantir financiamento do atual BNDES para a multinacional Dow Chemical, gigante mundial da industria química, Golbery encerrou a carreira política como malufista militante. Tinha  um emprego confortável numa diretoria do Banco Cidade, frequentemente envolvido  — ora vejam! — em denúncias de lavagem velha  financeira para políticos paulistas. (Por um período, Fernando Henrique Cardoso chegou a residir num apartamento que pertencera ao presidente da instituição). Até por ser um personagem que  não pode ser mecionado sem provocar mal-estar em todas as rodas, a referência a Golbery acabou suprimida em tele-jornais mais recentes da TV Globo. Num recurso de edição, ficou a frase, sem a referência ao general da ditadura. Foi um desserviço a verdade factual. Quem ouviu a nova versão, teve a impressão de que Emílio Odebrecht pensava aquilo que o general disse. Na verdade, foi o general — morto em 1987 — que falava por sua boca.

Disputando o papel de protagonista do esmagamento de Lula, Emílio Odebrecht apresentou-se como um dos autores da Carta ao Povo Brasileiro. Alvo de críticas severas de uma parcela importante do Partido dos Trabalhadores, na conjuntura da campanha de 2002 este documento serviu para esvaziar o ambiente de terror econômico que se procurava construir em torno de uma possível vitória de Lula, que incluia até um exótico “lulômetro” elaborado por um executivo do mercado financeiro, que pretendia associar o agravamento da crise às declarações do candidato favorito ao Planalto. Há 15 anos, o documento foi saudado, pelos adversários de hoje, como uma demonstração de “amadurecimento” do Partido dos Trabalhadores e de Lula. No inferno de 2017, afirmação de Emílio Odebrecht é serviu para questionar a sinceridade de Lula, no esforço para transformar a Lava Jato num juízo de caráter, mudança própria dos tribunais totalitários.

Ouvido pelo 247, um dos autores da Carta reagiu inconformado com a versão do empresário: “isso é engenharia de obra feita.” No livro “Sobre Formigas e Cigarras”, onde oferece o melhor relato interno sobre a Carta, Antônio Palocci revela que o principal interlocutor, entre empresários, na redação do documento, foi João Roberto Marinho, um dos donos da Globo, que ouviu e aprovou a versão final do documento.

Mesmo quando ocorre num ambiente de salvação nacional, como se tenta criar em torno da Lava Jato — uma investigação necessária que se transformou numa ameaça a democracia — a delação de qualquer pessoa é malvista em toda parte. Como ensinou o filósofo Isaiah Berlim, os bons princípios éticos são aqueles que não atendem a nossos interesses. A delação, não custa lembrar, é uma demonstração de deslealdade, que não se apoia em nenhum compromisso ético — pois todo delator atua, em primeiro lugar, para prejudicar alguém em nome do interesse próprio.

Nos primeiros meses de sua longa preventiva, o filho Marcelo Odebrecht usava o jargão “dedurar” e disse que havia ensinado as filhas que o ato de dedurar alguém por uma falta cometida cometida poderia ser até mais grave do que a própria falta. Valores, como se diz por aí.

Deu para entender a novela de classe?

Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/290602/Novela-de-classe-de-Emilio-Odebrecht-x-Lula.htm

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