O acerto de Paulo por Pedro Estevam Serrano
Mesmo
com as mudanças ocorridas na legislação penal de porte e comércio de drogas, o
uso de algumas substâncias entorpecentes ainda continua sendo crime no Brasil,
o que caracteriza uma evidente inconstitucionalidade e uma irracionalidade a
toda prova.
Inconstitucionalidade
formal, jurídica, que se traduz em agressão a um valor evidente do pensamento
liberal que se transformou em conquista humana, qual seja, de que ninguém pode
ser penalmente punido por conduta pessoal que não ocasione danos a terceiros.
Mesmo o vetusto liberalismo inglês de Stuart Mill postulava por este critério
definidor das fronteiras da liberdade individual.
Não
sou um liberal, não consigo enxergar as sentidas diferenças sociais da vida
contemporânea como "naturais", ou que a mão invisível do mercado solucionara
nossos problemas de injustiça social. Mas tenho com o liberalismo um diálogo
constante, reconhecendo que esta forma de pensar produziu valores que se
traduziram em conquistas humanas e não apenas da classe social que a
supedaneou.
Aliás,
desta dimensão humana da liberdade, o chamado "neo-liberalismo" contemporâneo
se esqueceu. Defendem ardentemente a liberdade do capital e se esquecem das
liberdades humanas, aliás contra elas litigam, compondo uma atípica conjunção
de defesa da liberdade de propriedade com o ataque às demais formas de
liberdade individual e coletiva.
De
qualquer modo, a questão é objetiva, nossa Constituição estatui o direito de
liberdade como norma magna. Outro não pode ser o sentido material deste
dispositivo, se não o de vedar sanções penais a condutas que atinjam apenas o
próprio corpo do agente, sem ocasionar danos a terceiros. E por óbvio não há
que se entender dano como a mera perturbação natural da convivência social,
mas, sim, efetivos danos concretamente aferíveis.
Não
vejo, portanto, qualquer sentido racional, numa sociedade livre e democrática,
a existência de uma legislação penal que puna criminalmente o usuário de
qualquer substância entorpecente. No caso de nossa Constituição, parece-me
evidente a inconstitucionalidade de tal legislação repressiva.
E
também me parece inconstitucional, por consequência do raciocínio exposto,
punir-se com as sanções penais do tráfico usuários que produzam drogas para
consumo próprio, como é o caso do plantio caseiro de maconha.
Nesse
sentido, é com alegria e esperança que vejo a notícia na mídia que o deputado
Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara Federal, defende às abertas a propositura
de projeto de lei que descriminalize o uso e o plantio não comercial de maconha
em cooperativas.
Mais
que um avanço qualquer, uma atitude de coragem cívica do deputado que resolve
dar ao debate democrático o caráter que ele deve ter para ser funcionalmente
eficaz em termos de evolução social: buscar convencer a maioria e não conformar
sua opinião confortavelmente a ela, o que parece ser o maior vício de nossa
democracia na conjuntura atual.
O
debate na questão nem se dá pelo clássico argumento dos que defendem a
descriminalização: de que o Estado gasta fortunas com a repressão atavicamente
ineficaz, nem pelo argumento dos que defendem a criminalização mais rigorosa,
de que o uso estimula o tráfico.
O
verdadeiro argumento é o do descabimento do Estado em imiscuir-se penalmente na
esfera privada de gestão corporal. Cabe ao Estado educar e informar do mal que
as drogas ocasionam, mas não criminalizar a pessoa pelo mero uso de seu corpo,
indiferente a terceiros.
Fora do período de eleições, que tem sido tão propicio a demagogias
conservadoras irracionais, o debate do tema vai avançando, infelizmente ainda
de forma limitada a iniciativas corajosas como esta do deputado Paulo Teixeira.
Pedro
Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC-SP,mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.
Artigo publicado originalmente em www.cartacapital.com.br