O caso Battisti por Luís Roberto Barroso
Nas
últimas semanas, tenho acompanhado, com interesse profissional e
acadêmico, os diversos artigos e comentários que têm sido veiculados em
Migalhas sobre o processo envolvendo o pedido de extradição e a
concessão de refúgio a Cesare Battisti.
Fiz grande proveito pessoal de
todas as manifestações, assim as favoráveis como as desfavoráveis.
Naturalmente, como advogado da causa, não poderia me apresentar como
alguém que tenha uma visão neutra e imparcial. Mas, de longa data, sou
militante da crença de que quem pensa de maneira diferente da minha não é
meu inimigo nem meu adversário, mas meu parceiro na construção de um
mundo plural e tolerante. E acho, de maneira igualmente sincera, que em
um tema levado ao debate público, todos têm direito à própria opinião.
Mas, talvez, não aos próprios fatos. As anotações que se seguem têm por
finalidade narrar objetivamente os fatos relevantes e expor as
principais teses jurídicas que estão em discussão. Ao final, cada
leitor, de maneira independente e esclarecida, formará a sua convicção.
1. Militância comunista e no PAC.
Cesare Battisti ingressou na organização Proletários Armados pelo
Comunismo (PAC) em 1976, com pouco mais de 20 anos. Nascido em uma
família comunista histórica, militou desde os dez anos na causa, tendo
participado dos movimentos Lotta Continua e Autonomia Operária. O PAC
praticou inúmeras ações subversivas no período entre 1976 e 1979, com o
propósito de enfraquecer e, eventualmente, derrubar o regime político
italiano. Tais ações incluíram furtos de carros, furtos em
estabelecimentos de crédito, furtos de armas, propaganda subversiva e
quatro mortes. Os mortos foram um agente penitenciário, um agente
policial e dois "civis": um joalheiro e um açougueiro. Os dois civis
eram ligados à extrema direita, andavam armados e haviam matado
militantes de esquerda, em reação a "operações subversivas de
auto-financiamento".
2. Fim do PAC, prisão e julgamento de seus membros.
Em 1979, a organização Proletários Armados pelo Comunismo foi
desbaratada e a maioria de seus membros foi presa. Levados a julgamento
por todas as operações do grupo naquele período, houve diversas
condenações. Quatro dos integrantes do PAC – mas não Cesare Battisti –
foram condenados por um dos homicídios: o do joalheiro Torregiani.
Cesare Battisti não era considerado sequer suspeito de qualquer dos
homicídios e não foi acusado de nenhum deles. Foi condenado, no entanto,
a uma pena de 12 anos por delitos tipicamente políticos: participação
em organização subversiva e participação em ações subversivas. Esteve
preso de 1979 a 1981, em uma prisão para presos políticos que não haviam
cometido ações violentas. De lá evadiu-se em 1981, em operação
conduzida por um dos líderes do grupo – Pietro Mutti -, que não havia
sido preso ainda. Battisti refugiou-se inicialmente no México e depois
na França, onde recebeu abrigo político.
3. A delação premiada.
Em 1982, Pietro Mutti, que era acusado pelos homicídios e por
participação na maioria das ações do grupo, foi preso. Abstraindo das
muitas denúncias da Anistia Internacional sobre torturas no período, o
fato é que Mutti torna-se "arrependido" e "delator premiado". Nessa
condição, acusa Cesare Battisti de ter sido o autor dos quatro
homicídios atribuídos ao grupo. Como dois dos homicídios ocorreram no
mesmo dia, em localidades diversas e distantes – o do joalheiro
Torregiani e o do açougueiro Sabadin -, Mutti afirmou que Battisti seria
responsável pelo primeiro como autor intelectual – teria participado de
uma reunião em que se discutiu a ação – e do segundo como cúmplice,
dando cobertura ao autor do disparo. Nos outros dois homicídios – dos
agentes Santoro e Campagna -, Mutti acusou Battisti de ter desferido os
tiros.
4. "Provas" totalmente frágeis.
As únicas provas contra Battisti foram a delação premiada de Mutti e a
"confirmação" feita por outros acusados dos homicídios e das ações do
PAC. Mutti mudou diversas vezes de versão e de pessoas às quais acusava,
protegendo e incriminando deliberadamente determinados militantes,
conforme reconhecimento textual da sentença. As outras "provas"
referidas na sentença italiana fariam corar um aluno de primeiro ano de
direito penal. Coisas do tipo: o autor do disparo contra Santoro,
segundo testemunhas, era louro e de barba. Battisti é moreno e sem
barba. No entanto, segundo Mutti, ele estaria disfarçado. Outra "prova":
a pessoa que ligou para a agência de notícias reivindicando a autoria
do fato tinha sotaque do sul da Itália. Battisti é do sul da Itália.
Logo, Battisti é o autor do homicídio!? Mais ou menos como incriminar
alguém no Brasil por ter sotaque nordestino.
5. Réu revel e indefeso. Procurações falsas.
A trama era extremamente simples: a culpa de todos os homicídios foi
transferida para Cesare Battisti, o militante que estava fora do alcance
da Justiça italiana, abrigado na França. Sem surpresa, o processo de
Battisti foi "reaberto", tendo sido ele julgado à revelia e condenado à
prisão perpétua. Sem ter indicado advogado e sem ter sido defendido
eficazmente. Detalhe importante: as procurações pelas quais os advogados
de defesa teriam sido constituídos foram consideradas falsas em perícia
realizada na França. De fato, ao fugir, Battisti deixou folhas em
branco assinadas. Tais folhas foram preenchidas anos depois – este o
fato comprovado pela perícia -, com nomes de advogados que defendiam
diversos dos acusados, indicados pela liderança do PAC (isto é, pelos
delatores premiados). Não apenas o conflito de interesses era evidente,
como o advogado que "defendeu" Battisti afirmou que jamais falou com
ele, razão pela qual sequer poderia contestar as acusações sobre novos
fatos imputados pelos delatores premiados.
6. Abrigo político na França.
Battisti permaneceu na França, como abrigado político, por 14 anos.
Trabalhou como zelador até tornar-se um escritor reconhecido, publicado
pelas principais editoras francesas. Dentre outras coisas, denuncia as
arbitrariedades da repressão italiana. Em 1991, a Itália requereu sua
extradição, que foi negada pela Justiça francesa. Cesare Battisti
casou-se e teve duas filhas, uma nascida no México, hoje com 25 anos, e
outra na França, hoje com 14 anos. Jamais esteve envolvido ou foi
acusado de qualquer ação anti-social desde 1979. Em 2003, mais de 12
anos depois do primeiro pedido de extradição, Sylvio Berlusconi chega ao
poder na Itália e passa a perseguir os antigos militantes que haviam
participado dos anos de chumbo. Diante da recusa da Inglaterra e do
Japão de extraditarem antigos acusados, Cesare Battisti se transforma no
último troféu político daquele período. A Itália requer uma vez mais à
França, já agora sob o governo de Jacques Chirac, a extradição de Cesare
Battisti. A França defere. Antes da execução da decisão, Cesare
Battisti foge para o Brasil.
7. Prisão e refúgio no Brasil.
Em 2007, já próximo das eleições francesas, Battisti é preso no Brasil
com a ajuda da polícia francesa, à época comandada por Sarkozy, Ministro
do Interior e candidato à presidência. Sua prisão é utilizada como tema
de campanha eleitoral, fato amplamente noticiado pela mídia européia. A
Itália requer sua extradição. Como a Constituição brasileira veda a
extradição por crime político, o pedido italiano destaca do conjunto das
condenações apenas os quatro homicídios e sustenta a tese de que foram
crimes comuns. Cesare Battisti requer a concessão de refúgio político ao
CONARE – Comitê Nacional de Refugiados. O pedido é indeferido por três
votos a dois. Em janeiro de 2009, o Ministro de Estado da Justiça, Tarso
Genro, apreciando recurso contra aquela decisão, concede-lhe refúgio
político.
8. Fundamentos do refúgio.
A decisão do Ministro da Justiça se baseou em um conjunto de fatos que
são notórios e foram adequadamente narrados na sua fundamentação. A
Itália de fato viveu um período de convulsão política conhecido como
"anos de chumbo". Esse período foi marcado por violência, radicalização e
pela aprovação de legislação de exceção. Inúmeros relatórios dos
organismos internacionais de direitos humanos registraram fatos graves
no período, associados à conduta do Estado italiano. Cesare Battisti foi
condenado em julgamento coletivo por tribunal do júri, à revelia. Sua
extradição só foi concedida pela França, depois de 14 anos, quando o
ambiente político havia se modificado na Itália e na França. Era
plausível o temor de perseguição política. Alguém pode até discordar da
avaliação política do Ministro. Mas a decisão foi bem fundamentada,
tendo sido manifestada em linguagem polida e diplomática.
9. Por qual razão aceitei a causa.
Procurado pela escritora francesa Fred Vargas, em nome de um grupo de
intelectuais franceses que apóia Cesare Battisti, dispus-me a estudar o
caso. E, após fazê-lo, aceitei a causa, por considerá-la moralmente
justa e juridicamente correta. E isso por duas linhas de razões. A
primeira: sou convencido, pelo conjunto consistente de elementos
objetivos descritos acima, que Battisti foi transformado em bode
expiatório. Seus ex-companheiros e, depois, delatores premiados, estavam
certos de que ele se encontrava protegido na França e transferiram-lhe
crimes e culpas que jamais teve e pelas quais não havia jamais sido
acusado. Ademais, é fora de dúvida que não teve devido processo legal. E
de que é um perseguido político. Ainda que não estivesse convencido
desses argumentos – como de fato estou -, haveria um segundo, muito
consistente.
10. A derrota do socialismo e a vingança da história.
Mais de trinta anos se passaram desde os fatos relevantes para o
presente processo, ocorridos no auge da guerra fria, do embate entre
socialismo e capitalismo. O sonho socialista e a tomada revolucionária
do poder faziam parte do imaginário de um mundo melhor de toda uma
geração. A minha geração. Eu vi e vivi, ninguém me contou. Condenar
esses meninos e meninas – era isso o que eram quando entraram para o
movimento – décadas depois, fora de seu tempo e do contexto político
daquela época, após a queda do muro de Berlim e da derrota da esquerda,
constitui uma expedição punitiva tardia, uma revanche fora de época, uma
vingança da história. Gosto de lembrar de uma frase que está inscrita
na capela do Castelo de Chenonceau, na França, na entrada, à direita: "A
ira do homem não realiza a vontade de Deus".
O DIREITO
11. Natureza do ato de refúgio.
O Ministro da Justiça concedeu refúgio a Cesare Battisti por fundado
temor de perseguição política, com base no art. 1º, I da Lei nº
9.474/97. Trata-se, inequivocamente, de um ato político, com ampla
margem de valoração discricionária. Havia orientação jurisprudencial
expressa do Supremo Tribunal Federal a respeito. Com efeito, a crença de
que o conceito jurídico indeterminado "perseguição política" possa ser
tratado como algo rigorosamente objetivo, sem margem a valoração
discricionária, é singularíssima. Além do precedente já referido – caso
Medina -, a doutrina é pacífica. O Professor Celso Antônio Bandeira de
Mello, referência nacional e internacional do direito administrativo
brasileiro, e citado em favor da tese de que se trataria de ato
vinculado, veio a público para dizer, textualmente, que discordava
veementemente desse ponto de vista. Além disso, afirmou que a Lei nº
9.474/97 impõe que seja extinta a extradição após a concessão de
refúgio. Nesse ponto, aliás, a lei brasileira apenas reproduz as
Convenções internacionais sobre refúgio e asilo. Não desconheço que
muitas pessoas divergem da decisão política do Ministro. Mas a verdade é
que ele era a autoridade competente para tomá-la.
12. Subversão da jurisprudência.
Ora bem: assentado tratar-se de ato político, a jurisprudência
histórica do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o Judiciário
não deve sobrepor a sua própria valoração política sobre a da autoridade
competente. O mérito do ato político não dever ser revisto. Além disso,
o Supremo Tribunal Federal, também de longa data, já havia assentado
que atos referentes às relações internacionais do país – como o refúgio –
são de competência privativa do Poder Executivo. Vale dizer: para
extraditar Cesare Battisti, o STF precisa modificar, de maneira
profunda, três linhas jurisprudenciais antigas, consolidadas e corretas,
passando a afirmar: a) refúgio não extingue automaticamente a
extradição; b) não constitui ato de natureza política; e c) atos
relativos às relações internacionais do país não constituem competência
privativa do Executivo. Até a jurisprudência antiga e reiterada de que o
STF apenas autoriza a extradição, mas que a decisão final é do
Presidente da República, está sob ataque.
13. Impossibilidade da extradição: crime político.
Mesmo que o refúgio fosse anulado, a extradição não poderia ser
concedida. Cesare Battisti participou de um conjunto de ações na luta
política italiana no final da década de 70. Em um primeiro julgamento
foi condenado por participar de organização subversiva e de ações
subversivas. O segundo julgamento, considerado "continuação" do
primeiro, incluiu quatro homicídios. A sentença condenou-o a uma pena
única – prisão perpétua – pelo conjunto das ações. Referiu-se a elas
como "um único desenho criminoso" e fez mais de trinta referências a
"subversão" da ordem política, econômica ou social. Como é possível
destacar quatro fatos e tratá-los como crimes comuns quando a sentença é
una, a pena é única e a decisão se refere ao conjunto da obra? O
próprio STF já negou extradição de italianos por ações análogas
praticadas no mesmo período – incluindo homicídio -, sendo que a decisão
de uma delas é do mesmo tribunal que condenou Battisti.
14. Impossibilidade de extradição: anistia.
A extradição, como se sabe, exige dupla imputação: é preciso que o fato
seja crime no país requerente e no país requerido. Os fatos imputados a
Cesare Battisti – ainda que se quisesse, arbitrariamente, ignorar sua
natureza política -, são conexos com sua atuação política. No Brasil, a
Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) e a Emenda Constitucional nº 26, de
1985, anistiaram os "crimes de qualquer natureza" relacionados com
crimes políticos ou praticados por motivação política, praticados entre 2
de setembro e 15 de agosto de 1979. Pois bem: a sentença italiana
afirma, textualmente, que as mortes foram praticadas como justiçamento
de "inimigos do proletariado" e de "agentes contra-revolucionários".
Battisti foi até condenado pela reivindicação política dos atentados,
tipificada como propaganda subversiva. Como seria possível afirmar que
não são crimes que tiveram motivação política? A Itália, passadas mais
de três décadas, não conseguiu aprovar uma lei de anistia. Mas nós, sim.
Felizmente. Se houve anistia aqui pelos mesmos fatos, não cabe
extradição.
15. Impossibilidade da extradição: prescrição.
A sentença proferida no segundo julgamento contra Cesare Battisti é de
13.12.1988 – por ironia, data de aniversário do Ato Institucional nº 5. A
condenação foi à pena de prisão perpétua. O Ministério Público não
recorreu, até porque não tinha interesse. Para ele, portanto, deu-se aí o
trânsito em julgado. Em 13.12.2008, consumou-se a prescrição. O
entendimento pacífico do STF é que a prisão preventiva – Battisti foi
preso em 2007, para fins de extradição – não suspende o curso da
prescrição. Para deixar de reconhecer a prescrição, o STF teria que
alterar também essa linha jurisprudencial consolidada. Note-se que em
relação a um dos homicídios – o de Torregiani – a condenação de Battisti
envolve "reformatio in pejus", já que, no primeiro julgamento coletivo,
outras pessoas – e não ele – foram condenadas. Note-se, também, que em
relação a esta condenação, a sentença de 1988 foi inicialmente anulada
com remessa para confirmação. E foi efetivamente "confirmada", nos
termos da própria decisão italiana. Não se reabriu prazo recursal para o
Ministério Público e, portanto, o termo a quo da prescrição não foi
alterado.
16. Impossibilidade da extradição:
violação do devido processo legal. A extradição é inviável, pois a
sentença condenatória violou elementos essenciais do devido processo
legal (Constituição, art. 5º, LIV e Lei nº 6.815/80, art. 77, VIII):
cuidou-se de revisão criminal in pejus, na qual o peticionário restou
revel perante Tribunal do Júri. Além disso, foi condenado a prisão
perpétua – sem que a Itália tenha se comprometido a comutar a pena -,
representado por advogado que era também patrono de outros réus
implicados nos mesmos fatos, em conflito de interesses, sendo certo que o
fundamento determinante da nova condenação foi depoimento obtido em
programa de delação premiada.
CONCLUSÃO
17.
Como qualquer pessoa do ramo poderá constatar, não são teses retóricas,
sentimentais ou políticas. Pelo contrário, trata-se de argumentação
jurídica, fundada no conhecimento convencional e na jurisprudência
dominante. A anulação do ato de refúgio, sem procedimento próprio, do
qual tivessem participado a autoridade competente e o próprio refugiado,
é que não corresponde ao entendimento tradicional, tanto no direito
internacional como no interno. Ainda assim, reitera-se aqui o respeito
devido e merecido por quem professa crença diversa.
18.
Como assinalado, a defesa não seguiu o caminho do argumento
humanitário, que poderia ser assim enunciado: Cesare Battisti vive há
mais de trinta anos uma vida pacata e produtiva; constituiu família e
contribui decisivamente para a criação de duas filhas ainda jovens (14 e
25 anos); é uma pessoa querida e respeitada na comunidade intelectual
francesa, da qual participou ativamente nos 14 anos em que esteve
abrigado na França. A pergunta é natural e óbvia: em que serve à causa
da humanidade mandar esse homem para cumprir prisão perpétua na Itália?
Outra pergunta: que sentimentos ainda movem aquele admirável país para
fazer com que, décadas depois, não tenha conseguido aprovar uma lei de
anistia dos velhos adversários? Mais do que isso, como bem destacou o
professor Celso Antônio Bandeira de Mello: observando a inacreditável
mobilização política italiana, trinta anos depois dos fatos, é possível
imaginar que eles estejam mesmo à caça de um criminoso comum? E alguém
acha, verdadeiramente, que há ambiente político na Itália para que esse
homem cumpra pena sem grave risco de violações à sua dignidade? Uma
última pergunta: por que o Brasil deveria fazer uma ponta nesse filme,
desempenhando um atípico papel de carrasco?
19.
A defesa não explorou, tampouco, uma linha de argumentação política.
Battisti foi militante do sonho socialista, que empolgou corações e
mentes em outra fase da história da humanidade. É vítima de uma
expedição punitiva fora de época. Cesare Battisti, tragicamente, não
consegue se desvencilhar de sua sina de troféu simbólico de disputas
políticas por onde passa. Em meio a palavras de ordem e juízos sumários,
poucos são os que leram a decisão concessiva de refúgio. E menos ainda
os que estão verdadeiramente interessados em sua vida, seus direitos e
no terror que o espera em um cárcere político italiano.
20.
Não tem sido fácil enfrentar a pretensão da Itália. Por muitas razões.
Trata-se de um país fascinante, poderoso e querido pelos brasileiros. Um
encantamento que não se abala pelas notícias estarrecedoras que vêm de
lá, em domínios que vão da perseguição a imigrantes a usos atípicos de
palácios governamentais. Nem por certas práticas políticas que
espantariam os mais atentos observadores da cena política
latino-americana. Como, por exemplo, a que levou à "convocação" do
representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados. Sob ameaças e intimidações, foi obrigado a cancelar as
audiências que pedira aos Ministros do STF e teve de fazer as malas e
partir. Basta consultar alguém que tenha ouvido seu relato, sofrido e
indignado, acerca da pressão feita pela Itália junto ao órgão (ACNUR),
em Genebra.
21.
Tampouco é fácil enfrentar um certo senso comum, que se colhe na
opinião pública em geral – e na mídia, em particular – de que, pelas
dúvidas, não devemos nos incomodar e nos indispor com a Itália por um
indivíduo que nada tem a nos oferecer. Uma visão pragmática e utilitária
da vida, que não leva em conta miudezas como dignidade humana e
direitos fundamentais das pessoas. É nesse ambiente de indiferença que o
público deixa de saber de alguns fatos que talvez fizessem diferença,
como por exemplo:
a) que o Procurador-Geral da República até
alguns meses atrás – o Dr. Antônio Fernando de Souza -, cujas
manifestações sempre atraíram grande interesse da imprensa,
pronunciou-se de maneira taxativa pela validade do refúgio e pela
extinção da extradição;
b) que na data do julgamento, seu
sucessor, Dr. Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento em favor do
respeito ao refúgio, fim da extradição e libertação de Cesare Battisti;
c)
que alguns dos mais proeminentes juristas brasileiros, pro bono e
desinteressadamente, se pronunciaram em favor do refúgio e da extinção
da extradição, dentre os quais os Professores José Afonso da Silva,
Paulo Bonavides, Dalmo Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello;
d)
que a Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do
Brasil e o Instituto dos Advogados do Brasil se manifestaram
favoravelmente à validade do ato de refúgio e à extinção do processo de
extradição;
e) que o Ministro Joaquim Barbosa não apenas proferiu
voto a favor do refúgio e contra a extradição (acompanhado pelos
eminentes Ministros Eros Grau e Cármen Lúcia), como se queixou de
maneira veemente contra a "arrogância" do governo italiano nesse caso e
contra a "insistência inapropriada" da Itália em suas gestões junto ao
Supremo Tribunal Federal.
22.
A perspectiva é que na retomada do julgamento, com o voto-vista do
Ministro Marco Aurélio, ocorra um empate. Sinal inequívoco de que, no
mínimo, há dúvida razoável. Note-se bem: com todo o peso político da
Itália e com todo o peso de uma opinião pública predominantemente
contrária, talvez haja empate. Só quem estava do lado da defesa pode
saber o que isso significa. Pois bem: depois de se excepcionarem tantos
precedentes – refúgio não é ato político, relações internacionais não
são competência privativa do Executivo, prisão preventiva interrompe a
prescrição -, seria o caso de se excepcionar só mais um e decidir: in
dubio, pró condenação? Condenar um homem por voto de Minerva? Só para
registro, a origem da expressão refere-se à decisão da deusa Atenas
(Minerva), que diante do empate, absolveu Orestes, que vingara a morte
de seu pai, Agamenon.
23.
Estes os fatos e as teses jurídicas. A história real, documentada, que
não se consegue contar. De um lado, o poder, as razões de Estado, a
perseguição sem fim. De outro, um indivíduo, seus direitos fundamentais,
a página virada da história. A partir daqui, cada um formará seu
próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus desejos.
Não tenho, nem poderia ter, a pretensão de controlar o pensamento e o
sentimento alheios.
O advogado Luís Roberto Barroso, do escritório Luis Roberto Barroso & Associados, que defende o refugiado Cesare Battisti no STF