Aldeia Nagô
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O conformista inconformado por Saul Leblon

9 - 13 minutos de leituraModo Leitura
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O surgimento do PT e a vitória de um operário em 2002 e 2006, que fez a sucessora em 2010, causaram um ruído insuportável no escopo biográfico e político de FHC.

Resgatar  o legado de Fernando Henrique Cardoso é tido como o  grande trunfo da campanha conservadora em 2014.

O escrutínio eleitoral desse patrimônio, como se sabe, não contabiliza  um saldo favorável.

‘Por acanhamento do próprio tucanato’ –alega o PSDB, que agora estaria disposto a redimir a herança de seu maior quadro.

Nas derrotas presidenciais de 2002, 2006 e 2010 a coalizão conservadora preferiu, ao contrário,  guardar essa carta  na manga do esquecimento.

Havia respaldo nas estatísticas sociais e econômicas, bem como nas enquetes de prestígio popular, à conveniência da decisão.

Talvez tenha chegado a hora de voltar a Fernando Henrique Cardoso, de fato,  não propriamente pelo seu legado presidencial.

Mas pela atualidade que a tensão da história latino-americana  –e brasileira, claro—veio adicionar à coerência do seu percurso intelectual, da sociologia à Presidência da República.

O próprio tucano ensaia esse aggiornamento das linhas estratégicas do projeto conservador, do qual ele se tornou uma referência.

Em artigo recente (‘Diplomacia inerte’), FHC faz a atualização do quadro analítico que desenvolveu como sociólogo, depois adotou como presidente, para responder aos desafios do desenvolvimento na periferia do capitalismo.

“(…) houve um erro estratégico desde o governo Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da posição do Brasil na ordem internacional”, diz o ex-presidente.

O cabo eleitoral número um do PSDB reafirma o fatalismo implícito no festejado texto de 1967, ‘Dependência e desenvolvimento na América Latina’, escrito com Enzo Falletto, no Chile, quatro anos depois do golpe no Brasil, e publicado em 1973, ano da queda de Allende.

Os dois acontecimentos trágicos pareciam dar razão à analise sociológica sobre a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento soberano na região.

O artigo do último domingo reitera essa inexorabilidade diante do que aponta como sendo  ‘as forças que predominariam no mundo’ na última década.

Arquivo

“Nossa diplomacia guiou-se pela convicção de que um novo mundo estava nascendo e levou o presidente (NR Lula), em sua natural busca de protagonismo, a ser o arauto dos novos tempos. Não me refiro ao que eu gostaria que ocorresse, mas às tendências que objetivamente se foram configurando (…)  A convicção implícita era a de que pós-Muro de Berlim, depois de breve período de quase hegemonia dos Estados Unidos, (dos) equívocos da política externa daquele país…assistiríamos a uma correção de rumos. (essa visão)  encontra eco nos sentimentos de boa parte dos brasileiros, inclusive de quem escreve este artigo. Sempre sonhamos com um mundo multipolar (…)  Nisso é que o governo Lula calculou mal.(…)  o Brasil faz reuniões com países árabes (…) abre embaixadas nas mais remotas ilhas,(enquanto) a Petrobras é expropriada pela Bolívia, interfere contra o sentimento popular em Honduras, além de calar diante de manifestações antidemocráticas quando elas ocorrem nos países de influência ‘bolivariana’. Noutros termos: escolhemos parceiros errados, embora, em si mesma a relação Sul/Sul seja desejável, e menosprezamos os atores que estão saindo da crise como principais condutores da agenda global (…)”

Desguarnecido dos préstimos da toga colérica, que de herói da ética se confessou um delinquente jurídico ao manipular  a dosimetria na AP 470,  o conservadorismo renova  assim o martelete do suposto anacronismo geopolítico dos projetos progressistas.

A dependência é estrutural, dizia FH em 1967; a dependência é virtuosa, adicionaria FH presidente; a dependência é inexorável e o Brasil do PT perdeu seu tempo ao afrontá-la, diz o redimido patrono do PSDB.

O ponto de partida repisado no artigo de domingo encontrou suas bases empíricas em um texto que antecede o  livro de 1967 da dupla FHC/Faletto.

Em 1964, dois meses antes do golpe de Estado,  seria publicada uma pesquisa premonitória, ‘Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico’, coordenada pelo então sociólogo da USP.

Nela,  Fernando Henrique encontraria o fundamento da futura  visão sobre a dependência.

A pesquisa  desnuda o  equivoco de boa parte da esquerda, então, que via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores do campo e da cidade na luta pelo desenvolvimento industrial, contra o imperialismo e o atraso  agrário.

O levantamento coordenado por FHC não apenas desmentia o idílio.

Ele  antecipava a vontade predominante no empresariado industrial brasileiro de se aliar ao capital estrangeiro, ao largo de Jango, dos sindicatos e das reformas de base.

Em síntese, as bases burguesas do projeto nacional e popular eram tão sólidas quanto se revelaria o dispositivo militar de Jango.

O esquematismo importado das sociedades europeias viveu seu teste do pudim dois meses depois de publicado o diagnóstico e deu razão ao sociólogo.

Três anos mais tarde, com Faletto, ele ampliaria essa constatação, dando-lhe o escopo de uma matriz de validade latino-americana.

Focado na realidade efetiva dos interesses das classes dominantes, que opunha o capital às massas populares na disputa pela destinação do excedente econômico na região, ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, sinalizava a complementariedade de propósitos entre o capital local e o estrangeiro.

Tal convergência, antes de levar à estagnação pela atrofia do mercado interno, em decorrência do arquivamento das reformas de base, permitiria um padrão de desenvolvimento associado e dependente.

Ao privilegiar os conflitos de interesse no interior da sociedade à margem de idealizações ideológicas, o livro representou um avanço, sem  todavia definir um novo marco histórico.

Faltava-lhe abordar o essencial: a problematização dos conflitos inerentes à endogamia entre o capital local e o internacional  e o seu custo social.

A ausência desse olhar dialético e engajado o levaria a amplificar aquilo que corretamente criticava nos esquematismos de uma parte da esquerda: trocava-se a materialidade da luta de classes por um fatalismo alheio às contradições transformadoras do processo.

Até que ponto seria viável um desenvolvimento que alijava a grande maioria da sociedade das decisões relativas ao seu destino e à destinação do excedente econômico?

A visão de FH, de certa forma, repetia o tropeço dos que viam no desenvolvimento periférico quase que  uma atividade reflexa do centro hegemônico.

A dinâmica interna estaria assim previamente dada; independente da prática política, ela orbitaria como um lubrificante, sem nunca alterar o núcleo duro da engrenagem.

Com a exacerbação da lógica financeira, a partir da desregulação propiciada pelas derrotas da esquerda mundial nos anos 70/80, esse enredo mecanicista ganha a robustez de um sujeito histórico hegemônico.

Os mercados autorreguláveis, seus agentes racionais e as agencias de risco assumem o rosto genérico de um interlocutor dotado de mando e ubiquidade.

Esse determinismo  inquestionável, sob a ótica conservadora,  daria estofo ao  projeto político do sociólogo que exerceu  a Presidência da República de 1995 a 2002, disposto a  personificar sua teoria.

E assim o fez.

A saber: com as privatizações, o desmonte do Estado (‘sepultar a Era Vargas’) , o descompromisso  estatal com as grandes obras de infraestrutura, a renúncia a uma política industrial, a redução do Itamaraty a um anexo do Departamento de Estado norte-americano, a desmoralização do planejamento econômico,  a terceirização do interesse público a agentes privados, a corrosão do poder aquisitivo dos trabalhadores, a desqualificação dos sindicatos e das organizações sociais, o sopão à pobreza (cuja sorte seria entregue à transição demográfica), a derrisão de tudo o que remetesse ao interesse público e, finamente, o deslumbramento constrangedor de um cosmopolitismo provinciano, festejado no Presidente que falava ‘línguas’ e era bajulado no exterior pelo bom comportamento.

Aquilo que em princípio era só  uma constatação  histórica, que desmentia o flerte da elite local com a agenda do desenvolvimento soberano,  transformar-se-ia na determinação política de fazer da servidão uma virtude.

O surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e 2006 –que fez  a sucessora em 2010–  introduziu um ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico com a sorte do país e de sua gente.

Para revalidar a teoria  –e os interesses aos quais ela consagra uma dominância irreversível, era preciso desqualificar a heresia de forma exemplar.

Não apenas  derrotá-la nas urnas.

Quando a realidade teima,  a redenção requer o açoite inapelável da moral.

E parecia que Joaquim Barbosa seria o anjo negro de origem humilde, desfrutável em mais de um sentido, capaz de executar a purga saneadora  da história maculada pelo ‘voluntarismo petista’, como espicaçou FH em outro artigo (‘Estadão’, 03-03-2014).

Não foi assim que se deu.

O artigo deste domingo retoma então os marcos analíticos de uma biografia em rota de colisão com a realidade e exorta o país a aceitar o seu confinamento no tabuleiro geopolítico que os vencedores manejam à revelia das ilusões multipolares.

Como em 1967, não se cogita discutir os requisitos para disputar a hegemonia do processo.

Não há atores e interesses capacitados a operar essa difícil disputa, sugere o ex-presidente.

Nem no Brasil, nem em outras latitudes da  América Latina, onde hereges  verão  igualmente  fracassar  uma agenda social desprovida de sustentação econômica e inserção mundial.

A demonização das experiências venezuelana, boliviana e argentina faz parte desse tour de force  que transforma o noticiário internacional em uma extensão da guerra interna contra a ingerência do Estado e da democracia nas diretrizes do desenvolvimento.

FHC e assemelhados tem razão ao apontar a espiral de desequilíbrios introduzida na matriz econômica brasileira desde 2003.

De fato, mais de 50 milhões de novos consumidores aportaram no mercado em apenas dez anos; 17 milhões de empregos foram criados no período; o salário mínimo registrou um aumento real superior  a 60%.

O conjunto não apenas invadiu o mercado, mas a teoria de 1967 e com ela asfixiou o espaço politico e eleitoral d conservadorismo.

Um novo protagonista histórico, imprevisto e improvável na mecânica fatalista da dependência conservadora exige seu espaço na democracia depois de tê-lo conquistado no mercado:  o consumo das famílias brasileiras cresce ininterruptamente há 120 meses; tempo suficiente para uma geração nascer, crescer e completar dez anos.

Como devolver essa pasta de dente ao tubo estreito da dependência se a disputa se acirrou com demandas crescentes por infraestrutura, serviços de qualidade, habitação, participação, segurança, lazer etc?

O conformismo de 1967  esgotou o prazo de validade e com ele a pertinência da agenda conservadora abrigada no PSDB e assemelhados?

Não, sugere FHC, se o caos urbano –e o constrangimento externo decorrentes de desequilíbrios na capacidade de pagar importações crescentes– fizer regredir os avanços da última década.

Não se o torniquete financeiro internacional  –ancorado nas agencias de risco e na potencial fuga de capitais–  tanger a pasta  com a  chibata dos juros altos, o estalo do arrocho fiscal, a volta do desemprego e reversão dos ganhos salariais.

A hora do acerto de contas chegou, brada o conservadorismo latino-americano de olho na reversão do ciclo mundial de liquidez que, de fato, restringe a   margem de manobra progressista para mitigar a disputa pelo excedente.

É um pedaço da verdade. Mas a exemplo do que constatou o livro de 1967, não é toda a verdade.

O Brasil  dispõe dos requisitos objetivos para um salto industrializante que irradie a produtividade necessária aos novos avanços em direção à cidadania plena de sua gente.

A saber:

1) as empresas instaladas no país dispõem de uma massa de capital monetário suficiente,  hoje alocado na roleta rentista (que inclui a dívida pública; e em repouso em paraísos fiscais, onde Brasil figura como o 4º país com maior volume de depósitos: US$ 520 bi, ou mais de R$ 1 trilhão, segundo a organização inglesa “Tax Justice Network);

2) o mercado de massa brasileiro forma hoje, sozinho, o 16º maior país do mundo em movimento econômico;

3) a economia dispõe de sólidas bases de recursos naturais, incluindo-se o impulso industrializante inerente à exploração das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta neste século.

Falta a amarração política desses ingredientes, processo que guarda semelhança com a disputa de um gigantesco jogo de truco estratégico.

A iniciativa privada mantém o pé no freio do investimento e a emissão conservadora  exaspera a guerra de expectativas para desencorajar o capital privado a  apostar no país.

Derrotado o ‘lulopetismo’, o lucro será maior, sugere-se.

Quem pode induzir a  gigantesca escala de investimentos e o salto tecnológico que os oligopólios globais e seus associados locais – assim convertidos, como previa FHC em 1967–  se recusam a deflagrar?

Para escapar ao fatalismo conservador, e à  hipertrofia autoritária do Estado verificada  na ditadura, só existe um caminho:  encarar o fortalecimento da democracia participativa como um requisito indispensável à reordenação do desenvolvimento brasileiro.

Entenda-se por isso a criação dos instrumentos que forem necessários à ampla repactuação de metas e prazos  que tornem críveis as linhas de passagem entre as urgências da sociedade  e as possibilidades efetivas do crescimento.

Antes  que a crispação conservadora resulte em um endosso ao fatalismo embutido em ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, será preciso escrever na prática uma outra referência histórica que liberte a democracia da passividade a que foi condenada no arcabouço conservador.

‘Democracia Social e Desenvolvimento na América Latina’ é um bom título para esse novo período à espera do seu autor coletivo.

Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditorial%2FO-conformista-inconformado%2F30397

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