O direito de conhecer a verdade Por NAVI PILLAY
A recente sentença
da Corte Interamericana de Direitos Humanos exigindo que o Brasil revise sua
lei de anistia é um marco crucial na luta contra a impunidade em uma região que
ainda precisa entender melhor e confrontar as atrocidades cometidas durante os
conflitos internos das últimas décadas.
As anistias
que sepultam a verdade são suscetíveis a prejudicar a perspectiva de construção
de sociedades justas e seguras no futuro
A recente sentença
da Corte Interamericana de Direitos Humanos exigindo que o Brasil revise sua
lei de anistia é um marco crucial na luta contra a impunidade em uma região que
ainda precisa entender melhor e confrontar as atrocidades cometidas durante os
conflitos internos das últimas décadas.
As leis de anistia que fazem vista grossa para os abusos de direitos humanos
não só distorcem os registros históricos que todo país deve ter mas também
minimizam o sofrimento das vítimas e prejudicam seu direito a conhecer a
verdade e a obter uma reparação.
Os governos
costumam justificar as leis de anistia em nome da rápida reconciliação
nacional.
A história mostra,
porém, que não responsabilizar os autores, além de negar a justiça às vítimas,
pode gerar novos conflitos em vez de curar feridas. Quando anistias são
concedidas na pressa de virar a página dos conflitos -ou pela sinistra razão de
encobrir os abusos- sua revogação deve ser sempre uma opção aberta.
No entanto, na
América do Sul e em outros lugares, o esquecimento continua sendo promovido.
Isso acontece apesar de que, como a Corte sublinhou, deixar indefesas as
vítimas e continuar com a impunidade são ações incompatíveis com o espírito da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Um exemplo é o
Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal negou a possibilidade de alterar a lei
de anistia de 1979, afirmando que os crimes cometidos durante a ditadura foram
"atos políticos".
No Chile, a lei da
anistia continua vigente, após 32 anos, apesar do repúdio internacional e das
tentativas fracassadas de condenar o ex-ditador Augusto Pinochet.
No Uruguai, o governo
teve que intervir para impedir a promulgação de uma lei que teria permitido a
libertação de autores de violações de direitos humanos devido à sua idade
avançada. Nesse contexto, medidas para melhorar a prestação de contas são
fundamentais.
Na Argentina, país
com o maior número de julgamentos de direitos humanos no mundo, tribunais
continuam presidindo casos de crimes contra a humanidade e graves violações de
direitos humanos cometidos durante a guerra suja. O ex-ditador Rafael Videla
está novamente respondendo por violações de direitos humanos.
A Argentina tem
demonstrado que conhecer a verdade é um direito sem limites. E um direito que
ninguém pode negar. Todos e cada sociedade têm o direito de saber quem violou
seus direitos, por que, quando, onde e como os crimes foram cometidos, e de
serem informados sobre o destino das vítimas.
Anistias que
sepultam a verdade e isentam os responsáveis são suscetíveis a prejudicar a
perspectiva de construção de sociedades justas e seguras no futuro. A impunidade
fomenta o ressentimento e a falta de confiança nas instituições. Ela encoraja
os autores a cometer novos crimes e pode encorajar outros a se juntarem aos
infratores.
A posição da ONU
sobre as anistias é claríssima: não são admissíveis se evitam o julgamento de
pessoas que podem ser penalmente responsáveis por crimes de guerra, genocídio,
crimes contra a humanidade ou violações graves de direitos humanos. Por outro
lado, a anistia não deve pôr em perigo o direito das vítimas a recursos legais,
incluindo a reparação, nem pode limitar seu direito e o das sociedades de
conhecer a verdade.
O exercício desses direitos é incompatível com a impunidade. Os países do
hemisfério Ocidental devem estar atentos à decisão da Corte Interamericana e
prover a longa e negada justiça às vítimas de violações dos direitos humanos.
NAVI PILLAY é
comissária das Nações Unidas para os direitos humanos.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação
obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais
e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Artigo publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo