O eleitor corrupto: uma maldição da democracia brasileira por Gustavo Castanon*
É um lugar comum. Os políticos brasileiros estão mais uma vez na condição de Judas universal. Segundo parte majoritária da opinião pública, nossa classe política é constituída de sociopatas. Também já se tornou lugar comum lembrar que esses políticos não vieram de Marte.
Nem dos EUA. Vieram todos da sociedade brasileira. Diante disso, um terceiro lugar comum ainda decreta que a corrupção é culpa da ignorância do povo brasileiro votando. Mas não, meus caros. Há muito mais em jogo do que ignorância.
Primeiro, evidentemente, a natureza humana. Somos (também) naturalmente egoístas, portanto, nenhum governo ou sistema político jamais eliminará todas as formas de corrupção. A crença de que a educação e o conhecimento permitiriam a escolha de políticos honestos vem da ideia socrática de que todo erro moral é fruto da ignorância. Isto muitas vezes está por trás de ingênuos debates de família ou de facebook, no qual o interlocutor vaticina que uma posição política ou econômica diferente da dele é fruto de “ignorância”, e não de outro projeto de sociedade. Mas numa sociedade dividida em classes, existem interesses antagônicos que definem as posições muito mais que o conhecimento: essas últimas são muitas vezes fruto de uma ideologia, entendida aqui como discurso organizado de justificação de interesses de classe.
Segundo, temos a farsa da democracia no regime capitalista. Atribuir aos agentes públicos a origem da corrupção é menos um ato de ignorância do que de má fé. Sempre que um agente público se corrompe, é porque um agente privado o corrompeu. Ora, o que é a corrupção senão o desvio do bem público para benefício privado? O poder esmagador do capital, que opera desde os veículos de informação de massas até os grandes bancos e empreiteiras, tem o poder de subjulgar governos, parlamentares e partidos. Financiando-os, chantageando-os e finalmente difamando-os. Nesta ordem.
E é aqui que entra a terceira principal causa da corrupção brasileira: o eleitor corrupto. Figura tradicional da vida nacional, o eleitor corrupto nunca participou ativamente da vida política e se orgulha disso. Tem um bizarro senso de moralidade no qual decente é a pessoa que não se mete na vida pública e ocupa sua vida tentando ficar rico. Ganhar dinheiro dentro da lei é todo seu horizonte moral.
Complemento natural de sua mentalidade é o discurso de que o sistema é bom, o problema são aqueles que não obedecem a lei: os bandidos e os corruptos. É a redução hipócrita da política ao moralismo conhecida no Brasil como “udenismo”. Degradar a imagem da totalidade da classe política, de todos aqueles que supostamente deveriam dedicar sua vida a melhorar a sociedade, é altamente libertador para o eleitor corrupto, ajudando-o a sentir-se mais confortável com suas opções de vida.
E nada melhor para degradar a classe e a vida política do que permitir que bancos, indústrias, empreiteiras e empresas de ônibus contribuam para campanhas eleitorais. São dois coelhos com uma cajadada: garante que o capital controle a vida política não permitindo mudanças estruturais nas leis e na sociedade e submete todas as pessoas que se dedicam a vida política ao esgoto do financiamento privado de campanha. O custo atual das campanhas políticas na era da informação – inflacionadas pelo excesso de “doações” – não para de crescer, o que obriga qualquer político com pretensões eleitorais a se submeter a uma ciranda de súplicas por recursos que o permitam sonhar com a disputa. Se eleito, não pode pensar em não beneficiar seus doadores, pois nunca mais receberia recursos, isso se não fosse ainda chantageado por denúncias, falsas ou verdadeiras, da mídia.
Os meios de comunicação ajudam na construção deste discurso só falando em políticos corruptos (os que os desobedecem), mas nunca em corruptores, seus anunciantes. O massacre midiático diário reforça a opinião de ingênuos e o discurso de hipócritas de que o problema é o caráter do político, e não o sistema político. Quando chega a eleição no entanto, o eleitor corrupto vota em candidatos notoriamente corruptos, beneficiados por avalanches de doações do sistema. Hipócrita, afirma que não tem opção, porque todos são desonestos. Todos são iguais. Mas curiosamente, ele nunca vota naqueles “iguais” que teme oferecerem uma longínqua possibilidade de mudança no sistema econômico.
O eleitor corrupto sabe muito bem que enquanto planos de saúde financiarem campanhas, nunca haverá grandes investimentos no SUS. Ele sabe que o financiamento privado é o juro da dívida pública que come seus impostos, é seu rio poluído, sua estrada inacabada, seu engarrafamento, sua falta de metrô, o ônibus lotado. Mas ele sabe também que isso é a melhor forma de manter o sistema – onde acha que se dá bem – intacto. Trabalhando muitas vezes nas próprias empresas corruptoras, justifica-as como vítimas de extorsão da classe política. O corruptor é a vítima. O político, o vilão.
Este mês, por cinco dias, milhares de eleitores corruptos saíram às ruas desse país lado a lado com outros milhares de cidadãos indignados com o estado da política nacional. Extasiados, sentiram o gosto da rua e bradaram aos céus seu ódio à política. Mas numa das reviravoltas que só a vida política oferece, eles ficaram nus. Ao propor exatamente aquilo que, consciente e inconscientemente, a maioria dos manifestantes brasileiros exigia – a reforma desse sistema político apodrecido – a Presidente Dilma levou os eleitores corruptos de um estado de delírio a um estado de estupor.
Abandonando as ruas, esse câncer brasileiro está agora em casa preocupado, assistindo movimentos sociais dando a linha dos protestos e exigindo um plebiscito que pode, pela primeira vez, dar um verdadeiro golpe na corrupção brasileira se proibir o financiamento privado de campanhas. Erraticamente, afirmam que plebiscito é autoritário, que consultar o povo é ditadura da maioria e outras hipocrisias semelhantes.
Mas se este plebiscito de fato se realizar, teremos a oportunidade de ver estes tristes personagens da vida nacional desmascarados à nossa volta. Eles falarão que o estado terá mais despesas ainda com o financiamento público de campanhas, fingindo ignorar que o Brasil gasta muitas vezes mais com o financiamento privado “retribuindo” com a corrupção às “doações” das empresas. Eles falarão que ele não acabará com o caixa dois, fingindo ignorar que os limites que serão estabelecidos às campanhas serão muito mais estreitos e que denúncias de caixa dois (por alguns, finalmente, sem rabo preso) serão muito mais frequentes. Eles falarão que isso não acabará com a corrupção, fingindo não saber que o que se quer é somente tornar possível a um político que não quer se corromper continuar na vida pública.
E finalmente, sabendo que nada corrompe mais a política do que as doações de empresas, ele votará contra o financiamento público de campanhas. Mas a partir desse dia, uma coisa estará conquistada na política brasileira, ganhando ou perdendo o financiamento público. O direito sagrado de classificar qualquer exemplar dessa classe de hipócritas com seu adjetivo predileto: o de corrupto.
*Gustavo Arja Castañon é doutor em psicologia e professor de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora