O embate entre o governo Lula e a rede Globo por Dario Pignott
O
embate entre Lula e a Globo poderia ser resumido como uma disputa pela
verossimilhança, um bem escasso no mercado noticioso brasileiro. Ao
participar quase que diariamente de atos ou eventos públicos, o
presidente dialoga de forma direta com a população, estabelecendo um
contrato de confiança que contrasta com a obstinação dos meios
dominantes em montar um discurso noticioso divorciado dos fatos que, às
vezes, beira a ficção. O artigo é de Dario Pignotti, publicado
originalmente no Le Monde Diplomatique (Edição Cone Sul e Espanha).
Dario Pignotti – Le Monde Diplomatique (Cone Sul e Espanha)
No
início da década de 1980, centenas de milhares de brasileiros cantaram
em coro "O povo não é bobo, abaixo a rede Globo!", quando a corporação
na qual se apoiou a ditadura militar censurou as mobilizações populares
contra o regime militar, utilizando fotonovelas e futebol para tentar
anestesiar a opinião pública. Hoje, um segmento crescente do público
brasileiro expressa seu descontentamento frente o grupo midiático
hegemônico. Medições de audiência e investigações acadêmicas detectaram
um dado, em certa medida inédito, sobre as relações de produção e
consumo de informação: a credibilidade da rede Globo, inquestionável
durante décadas, começa a dar sinais de erosão.
Contudo, é
possível perceber uma diferença substantiva entre a indignação atual e
o descontentamento daqueles que repudiavam a Globo durante as
mobilizações de três décadas atrás em defesa das eleições diretas (1).
Em 1985, José Sarney, primeiro presidente civil desde o golpe de Estado
de 1964, obstruiu qualquer pretensão de iniciativa reformista relativa
à estrutura de propriedade midiática e ao direito à informação, em
cumplicidade com a família Marinho – proprietária da Globo, da qual,
aliás, era sócio. O atual chefe de Estado, Luiz Inácio Lula da Silva,
parece disposto a iniciar a ainda pendente transição em direção à
democracia na área da comunicação.
No início de 2009, no Fórum
Social Mundial realizado na cidade de Belém, Lula convocou uma
Conferência Nacional de Comunicação. A partir daí, mais de 10 mil
pessoas discutiram em assembléias realizadas em todo o país os rumos da
comunicação e definiram propostas para levar para a Conferência,
realizada de 14 a 17 de dezembro, em Brasília. "É a primeira vez que o
governo, a sociedade civil e os empresários discutem a comunicação;
isso, por si só, já é uma derrota para a Globo e sua política de manter
esse tema na penumbra (…) O presidente Lula demonstrou estar
determinado a instalar na sociedade um debate sobre a democratização
das comunicações; creio que isso terá um efeito pedagógico e poderá
converter-se em um dos temas da campanha" (de 2010), assinala Joaquim
Palhares, diretor da Carta Maior e delegado na Conferência.
O
embate entre Lula e a Globo poderia ser resumido como uma disputa pela
verossimilhança, um bem escasso no mercado noticioso brasileiro. Ao
participar quase que diariamente de atos ou eventos públicos, o
presidente dialoga de forma direta com a população, estabelecendo um
contrato de confiança que contrasta com a obstinação dos meios
dominantes em montar um discurso noticioso divorciado dos fatos que, às
vezes, beira a ficção.
Lula configura um "fenômeno
comunicacional singular; o povo acredita nele, não só porque fala a
linguagem da gente simples, mas porque as pessoas mais carentes foram
beneficiadas com seus programas sociais; isso é concreto, o Bolsa
Família atende a 45 milhões de brasileiros que não prestam muita
atenção ao que diz a Globo", observa a professora Zélia Leal Adghirni,
doutora em Comunicação e coordenadora do programa de investigação sobre
Jornalismo e Sociedade da Universidade de Brasília.
"Por que
Lula ganhou duas vezes as eleições (2002 e 2006), uma delas contra a
manifesta vontade da Globo? Por que Lula tem uma popularidade de 80%?",
pergunta Adghirni (2), para quem "as teorias de comunicação clássica
que estudamos na universidade não são aplicadas ao fenômeno Lula.Desde
a teoria da ‘agulha hipodérmica’ até a da ‘agenda setting’, dizia-se
que os meios formam a opinião ou pautam o temário do público, mas com
Lula isso não ocorre: os meios de comunicação estão perdendo o
monopólio da palavra".
Por outro lado, como se sabe, a
construção de consensos sociais não se galvaniza só com mensagens
racionais ou versões críveis da realidade, também é necessário
trabalhar no imaginário das massas, um território no qual a Globo segue
sendo praticamente imbatível. A empresa do clã Marinho controla o
patrimônio simbólico brasileiro: é a principal produtora de novelas e
detém os direitos de transmissão das principais partidas de futebol e
do carnaval carioca (3).
Frente à gigantesca indústria de
entretenimento da Globo, o governo é praticamente impotente. Não
obstante, a imagem do presidente-operário provavelmente ganhará
contornos míticos em 2010, com o lançamento do longa-metragem Lula, o
filho do Brasil, que será exibido no circuito comercial e em um outro
alternativo (sindicatos e igrejas). O produtor Luis Carlos Barreto
prevê que cerca de 20 milhões de pessoas assistirão à história do
ex-torneiro mecânico que se tornou presidente, o que seria a maior
bilheteria da história no país.
O balanço provisório da política
de comunicação de Lula indica que esta tem sido errática. Em seu
primeiro mandato (2203-2007), impulsionou a criação de um Conselho de
Ética informativa, iniciativa que arquivou diante da reação
empresarial. Após essa tentativa fracassada, o governo não voltou a
incomodar as "cinco famílias" proprietárias da grande imprensa local,
até o final de sua primeira gestão.
Em seu segundo governo –
iniciado em 1° de janeiro de 2007, Lula nomeou Hélio Costa como
ministro das Comunicações, um ex-jornalista da Globo que atua como
representante oficioso da empresa no ministério. Mas enquanto a
designação de Costa enviava um sinal conciliador aos grupos privados,
Lula seguia uma linha de ação paralela.
Em março de 2008, o
Senado, com a oposição cerrada do PSDB, do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, aprovou o projeto do Executivo para a criação da
Empresa Brasileira de Comunicações, um conglomerado público de meios
que inclui a interessante TV Brasil, para a qual, em 2010, o Estado
destinará cerca de 250 milhões de dólares. O generoso orçamento e a
defesa da nova televisão pública feita pelos parlamentares do Partido
dos Trabalhadores (PT) indicavam que Lula havia decidido enfrentar a
direita política e midiática. Ao mesmo tempo em que media forças com a
Globo – ainda que não de forma aberta -, Lula aproximou posições com as
empresas de telefonia (interessadas em participar do mercado de
conteúdos e disputar terreno com a Globo) e algumas televisões
privadas, como a TV Record -de propriedade de uma igreja evangélica (4).
A
estratégia foi tomando contornos mais firmes no final do mês de outubro
quando Lula defendeu, durante uma cerimônia de inauguração dos novos
estúdios da Record no Rio de Janeiro, o fim do ‘pensamento único’
capitaneado por alguns formadores de opinião (em óbvia alusão à Globo)
e a construção de um modelo mais plural. Dias mais tarde, o mesmo Lula
afirmava: "Quanto mais canais de TV e quanto mais debate político
houver, mais democracia teremos (…) e menos monopólio na comunicação"
(5).
Com um discurso monolítico e repleto de ressonâncias
ideológicas próprias da Doutrina de Segurança Nacional (como associar
qualquer objeção à liberdade de imprensa empresarial com ocultas
maquinações "sovietizantes"), o grupo Globo lançou uma ofensiva, por
meios de seus diversos veículos gráficos e eletrônicos, contra a
incipiente tentativa do governo de estimular o debate sobre a atual
ordem informativa, que alguns definem como um "latifúndio" eletrônico.
O
primeiro passo neste sentido, assinala Joaquim Palhares, foi "esvaziar
e boicotar a Conferência Nacional de Comunicação, retirando-se dela,
dando um soco na mesa e saindo impestivamente para tentar
deslegitimá-la", movimento seguido por outros grupos midiáticos. O
segundo movimento consistiu em articular um discurso institucional para
fazer um cerco sanitário contra o contágio de iniciativas adotadas por
governos sulamericanos como os da Argentina, Equador e Venezuela,
orientadas na direção de uma reformulação do cenário midiático.
A
Associação Brasileira de Rádio e Televisão (ABERT) e a Associação
Nacional de Jornais (ANJ) "temem que o que ocorreu na Argentina se
repita no Brasil; eles vêem essa lei como uma ameaça e começaram a
manifestar sua solidariedade com a imprensa da Argentina", afirma Zélia
Leal Adghirni. O receio expresso pelas entidades representativas dos
grandes conglomerados midiáticos é o seguinte: se o descontentamento
regional contra a concentração informática ganha força junto à opinião
pública brasileira, poderia romper-se a cadeia de inércia e conformismo
que já dura décadas e, quem sabe, iniciar-se um gradual – nunca abrupto
– processo de democratização.
O inverso também se aplica: se o
Brasil, liderado por Lula, finalmente assumir como suas as teses do
direito à informação e à democracia comunicacional, é certo que essa
corrente de opinião, atualmente dispersa na América Sul, poderá
adquirir uma vertebração e uma legitimidade de proporções continentais.
NOTAS
(1)
Esse objetivo finalmente foi frustrado pelo regime, socorrido pela
Globo, que montou um simulacro eleitoral proibindo o voto direto,
graças ao qual os generais deixaram o poder sem sobressaltos nem
investigações sobre violações de direitos humanos.
(2) A
respeito da vitória de Lula nas eleições de 2006, ler Bernardo
Kucinski, "O antilulismo na campanha de 2006 e suas raízes", in.
Venício Lima (compilador), "A mídia nas eleições de 2006", Perseu
Abramo, São Paulo, 2007.
(3) Em 1989, o então candidato à
presidência Lula foi objeto de um golpe midiático, perpetrado pela
Globo que, para impedir sua vitória, fabricou a candidatura de Fernando
Collor de Mello, que deixaria o mandato em 1992, cercado de escândalos
de corrupção. Dario Pignotii, "Globo: o partido mais poderoso do
Brasil", Le Monde Diplomatique, edição Cone Sul, Buenos Aires, setembro
de 2007.
(4) Nos últimos anos, a TV Record, que pertence a
neopetencostal Igreja Universal do Reino de Deus, arrebatou parte da
audiência cativa da TV Globo, contra a qual iniciou uma guerra de
denúncias. A Record veiculou um programa especial sobre a Globo, onde
repassou seus vínculos com a ditadura. Por sua parte, a Globo denunciou
calotes cometidos pela Record que, segundo investigações judiciais,
estaria desviando dinheiro do dízimo dos fiéis.
(5) Luiz Inácio
Lula da Silva, declarações na inauguração da nova sede do canal Rede
TV, em Osasco, área metropolitana de São Paulo, 13/11/2009.
(*) Jornalista, Brasília, Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo
Le Monde Diplomatique, edição Cone Sul.
Tradução: Katarina Peixoto
Artigo publicado originalmente em www.cartamaior.com.br