O Faraó, camelos e o Facebook por Francisco Carlos Teixeira
Os cientistas e acadêmicos ocidentais, seguidos apressadamente pela
mídia, sempre declararam a inexistência de uma “opinião pública” no
Mundo Árabe. Mesmo no Egito, onde uma poderosa elite e uma importante
classe média bem educada, falante de inglês, possuem raízes profundas,
era negada qualquer possibilidade de existência de uma “sociedade
civil”.
Berlim. Os últimos acontecimentos no Egito, em especial
os últimos 18 dias entre 25 de janeiro e 11 de fevereiro colocam por
terra algumas teses tradicionais das ciências políticas e da percepção
política e social do Mundo Árabe pela opinião pública ocidental. A tese,
velha da Guerra Fria, sobre a pretensa "excepcionalidade árabe", da sua
incapacidade para a democracia e, portanto, a aceitação alegre, pelo
Ocidente, de todo tipo de ditadura pós-colonial (claro, sendo
pró-ocidental). Da mesma forma, a crença na inexistência de uma opinião
pública no mundo árabe, explicaria a ausência de democracia. Ambas as
teses devem, agora, ser severamente revistas.
O Egito de Hosni Mubarak
O
Egito é um país central para o mundo árabe, para os muçulmanos em geral
e para o equilíbrio no Oriente Médio e no Mediterrâneo. Os últimos
dados confiáveis – já que o censo demográfico, e conseqüentemente o
acesso à condição de eleitor, é um dado secreto, só sabido pelas forças
de segurança – dão ao país pouco mais de 80 milhões de habitantes,
extremamente concentrados no Cairo e na longa e estreita faixa fértil ao
longo do Nilo. Isso faz do Egito o país árabe mais populoso do mundo (o
país muçulmano mais populoso é a Indonésia, logo seguida do Paquistão,
países não-árabes). Ao mesmo tempo a população egípcia é extremamente
jovem. Cerca de 33% de todos os egípcios possuem menos 15 anos de idade e
a média nacional de idade é de 24 anos.
Temos aqui um primeiro
dado que ilumina profundamente a revolta, e a conseqüente revolução, no
país: a extrema juventude da população, a maioria nascida quando Mubarak
já era o raís – o líder e chefe – do Egito. Estes jovens não são
contemporâneos da Guerra dos Seis Dias, em 1967, e da Guerra do Yom
Kippur, de 1973, nas quais Hosni Mubarak conquistou suma fama de
defensor da pátria. É em verdade uma juventude marcada pela presença da
globalização, dos meios eletrônicos e da busca de uma boa carreira
profissional e um padrão de vida melhor (a média salarial egípcia está
em torno de 100 euros mensais).
Contudo as vantagens param por
aí: apenas 71% desta imensa população é alfabetizada, sendo que entre as
mulheres apenas 59% delas podem ler e escrever. Tal restrição não
decorre, como rapidamente poder-se-ia dizer no Ocidente, do Islã. Muitas
mulheres egípcias ocupam postos importantes na universidade, nos
hospitais e nas escolas. Trata-se, em verdade, de deficiência do regime.
As reformas falhadas
A economia egípcia depende de
uma agricultura tradicional, centrada na produção de algodão, arroz,
trigo aos quais se soma a indústria têxtil e a exploração do petróleo,
apenas relevante. Contudo o turismo e os direitos decorrentes do
trânsito do Canal de Suez geram grande parte da riqueza do país e o fato
de serem atividades diretamente controladas pelo Estado são, também,
fontes da ampla corrupção e do enriquecimento ilícito da elite mantida
pelo regime de Mubarak.
Mubarak buscou, desde a crise de 2008,
"abrir" o país aos investimentos e aos capitais estrangeiros, nomeando
um ministério de tecnocratas altamente influenciados por um impiedoso
neoliberalismo tardio. Os resultados foram catastróficos. O deficit
público atingiu 8% do PIB e o desemprego espraiou-se por toda a
população, atingido quase 10% da população ativa do país, enquanto a
inflação saltava para 12% ao ano. Assim, somava-se à ausência de
democracia e a imposição do espetáculo da corrupção das elites, a
pobreza crescente das populações. Não é de estranhar que o primeiro
egípcio a se imolar contra o regime Mubarak fosse um desempregado.
O
Egito é, ainda, um dos mais importantes parceiros na "ajuda" militar
dos Estados Unidos, logo abaixo de Israel e pouco antes da Colômbia. A
grande parceria entre Estados Unidos e Egito emergiu quando Anwar
Al-Sadat (o sucessor de Gamal Abdel Nasser e que governou entre 1970 e
1981) rompeu as tradicionais relações com a então URSS, em 1972,
expulsou milhares técnicos e militares russos, e voltou-se para o
Ocidente. Em troca de uma política externa "aceitável" para o Ocidente –
ou seja, garantia de segurança para Israel, manutenção da liberdade de
navegação no Canal de Suez e fechamento do acesso aos palestinos na
região de Gaza – os EUA mantêm as FFAA do país em alto nível de
desempenho e com o equipamento necessário para dar aos militares
egípcios o sentimento de superioridade e segurança no Mundo Árabe.
A elite militar
O
país, contudo, gasta 3.4% do seu PIB de U$ 500 bilhões com os
militares, que formaram ao longo dos trinta anos de regime Mubarak
(1981-2011), uma elite muito acima dos níveis sociais do conjunto da
nação. O próprio marechal Mohamed Hussein Tantawi, de 75 anos, que
acumulava o ministério da defesa e a chefia das FFAA e agora é o chefe
do Conselho Supremo que governa o Egito pós-Mubarak, é parte desta elite
gerada sob o regime e que se comportou ao longo dos últimos trinta anos
como garantidor do regime.
Mas, a burocracia estatal, em grande
parte oriunda do Partido Nacional Democrático (de Mubarak), mereceu bem
mais críticas do que as FFAA. O alistamento militar massivo, como uma
alternativa para jovens rapazes mal preparados e sem esperanças no mundo
profissional, além das histórias de heroísmo na Guerra do Yom Kippur,
garantiram grande popularidade aos militares.
A decisão de não
reprimir a população revoltada na Praça da Libertação – na verdade uma
tarefa transferida para a polícia e os paramilitares – nos dias mais
duros da revolta consolidou a popularidades das FFAA. Contudo, o regime
inaugurado dia 11 de fevereiro é, em verdade, uma brutal ditadura
militar, onde o Conselho Supremo Militar governa por decretos
inapeláveis.
A esperança de uma transição pacífica para a
democracia é, contudo, real e concreta. A proclamação do Conselho
Supremo Militar promete "eleições livres, novo marco constitucional e
políticas de ajuda e assistência social para a população".
O
marechal Tantawi (ao lado do chefe dos serviços secretos Omar Suleiman, o
vice-presidente nomeado por Mubarak no auge da crise), de 75 anos, o
homem forte do novo regime, possui um longo histórico de negociações com
os americanos e os israelenses, servindo de garante para o status quo
pós-1973 (ano da Guerra do Yom Kippur). Não sem motivos, Tantawi fez
contato, logo após assumir o poder no Cairo, com Ehud Barak, ministro da
defesa de Israel, para garantir – ao contrário do sentimento popular,
claramente pro-palestinos, que nada mudaria na política externa e de
defesa do Egito.
A cólera das ruas
Os cientistas e
acadêmicos ocidentais, seguidos apressadamente pela mídia, sempre
declararam a inexistência de uma "opinião pública" no Mundo Árabe. Mesmo
no Egito, onde uma poderosa elite e uma importante classe média bem
educada, falante de inglês, possuem raízes profundas, era negada
qualquer possibilidade de existência de uma "sociedade civil".
Claro,
que o olhar dirigido pelo Ocidente ao Mundo Árabe era (e ainda é)
baseado na sua própria história, nas experiências vividas nas margens do
Atlântico Norte, tais como a Revolução Americana (1776) e a Revolução
Francesa (1789). Em face do fato de que a história do Egito (bem como da
Índia ou da China) não possuírem experiências similares, concluía-se
pela impossibilidade da democracia implantar-se nos antigos países
"coloniais".
Assim, o Egito (e os demais países não-europeus)
estaria condenado a viver regimes autoritários, a única forma de
garantir a ordem e o progresso em face de massas atrasadas e,
normalmente, fanatizadas pelo Islã ou outra religião não cristã.
Assim,
o próprio conceito de "opinião pública" foi, para os analistas
ocidentais, substituído pela idéia de "rua árabe". Apenas a rua, as
praças e o bazar seriam locais de reunião e de troca de opinião, em
substituição precária e esporádica da noção ocidental de "opinião
pública". A "rua árabe" funcionava ora como espaço amedrontado do
murmúrio, ora como o local de explosões violentas e sem direção. As
redes tradicionais de sociabilidade árabes – como as mesquitas, os cafés
e a ampla rede de instituições de ensino e, no caso egípcio, a
Universidade de Al-Azhar, além da sociabilidade profunda nos locais de
trabalho – nunca mereceram a necessária apreciação. Assim, criava-se a
noção de uma "excepcionalidade árabe", uma espécie de beco sem saída
político, onde a escolha seria entre regimes autoritários capazes de
controlar a multidão feroz ou o caos fanatizado das massas.
Camelos e Facebooks
O
processo em curso no Egito – depois da experiência na Tunísia – mostra
outra realidade, mais complexa e nuançada, onde a ciência política
ocidental, e a percepção leiga, não foram capazes de entender os
elementos constitutivos mais importantes.
Não só a população
urbana dos grandes centros mostrou-se capaz de ampla mobilização – foi
assim em Túnis, no Cairo ou Alexandria e aponta para ser em Argel e em
Sanaa – como ainda foi capaz de fazê-lo sem apelo à violência endêmica e
a xenofobia ou, o que se dizia acontecer, cair em mãos do islamismo
radical. A surpresa adveio, assim, do conhecimento superficial do Mundo
Árabe e, ao mesmo tempo, dos preconceitos ocidentais.
De forma
muito apressada, a mídia ocidental – saturada de sua própria tecnologia e
idolatrando produções como "Rede Social" – denominou o movimento de
rebeldia como uma "Facebook Revolution", dada a relevância, concreta,
dos meios eletrônicos na dispersão das ideias de revolta. Ainda aqui,
mais uma vez, as redes tradicionais de sociabilidade árabes, as formas
de comunicação diárias nas escolas, mesquitas, nos cafés e no trabalho,
são ignoradas em favor de uma percepção tecnologizante e ocidentalizada.
A
piada do "Le Monde" mostrando um Mubarak atento à explicação do que é
Facebook pelo seu camelo no caminho do exílio para Sharm el-Sheik é boa,
mas é só uma piada.
As revoluções sempre ocorreram na história
onde a repressão política e o mal-estar econômico e social perduraram
sobre as populações. A revolução Russa (1917) ou a longa Revolução
Chinesa (até 1949), bem como a Luta pelas Diretas Já, na
redemocratização do Brasil, por exemplo, não foram produtos – e nem o
poderiam ser – da Internet (ou mesmo do rádio ou da televisão). Havia,
ontem como hoje, redes de sociabilização do protesto e da resistência, e
a Internet pode ser um ótimo meio para a divulgação de novas (e velhas)
ideias. Mas, a Internet não pode ser considerada a causa das
revoluções.
Estaríamos, neste caso, em face de um novo
preconceito, agora explicando a história das revoluções através de
tecnologias recentíssimas. Seria apenas mais uma forma de etnocentrismo.
Uma revolução moderna
Um outro preconceito aceito sem
debates no Ocidente é a certeza que os movimentos sociais no Mundo
Árabe, quando movimentos de massa, são sempre islâmicos radicais. O que
vemos hoje – apesar do claro processo de re-islamização das sociedades
árabes pós-coloniais – é uma explosão de ideais e projetos de futuro em
busca de uma vida melhor, adequando islamismo e bem-estar social. A
"onda islamizante" já passou. Os jovens que protestam no Cairo são
irmãos daqueles que protestam em terão contra a ditadura dos aiatolás.
A geração islamistas radical não está no Cairo e sim em Kandahar.
É
bem verdade que tais preconceitos são sempre favoráveis aos interesses
ocidentais. A crença arraigada na impossibilidade de uma democracia
árabe, ou muçulmana, servia à perfeição para justificar o apoio
ocidental aos regimes repressivos mais cruéis e abusivos existentes no
mundo em face de um hipotético risco de ascensão do caos e fanatismo.
Assim, a Europa comunitária (CE), pretensa pátria da democracia, manteve
até bem tarde calada em face das revoluções em Túnis e no Cairo. Em
Munique, na reunião anual sobre segurança e defesa, o chefe da OTAN – a
aliança militar ocidental – apontou para as mudanças políticas no
Mediterrâneo como a causa imperiosa para o aumento dos gastos militares.
Por
sua vez, Israel – "a única democracia do Oriente Médio" – não só
lamentou a revolta egípcia, como ainda desenvolveu sérias gestões junto a
Washington visando demover o Presidente Obama em seu apoio aos
militantes da Praça da Libertação no Cairo. Para o premier Netaniahu a
segurança de Israel não se adéqua com a democracia no Oriente Médio.
Os
espetaculares acontecimentos em Túnis e no Cairo abrem caminho para o
debate série e não mais eivado de etnocentrismo sobre os diversos
caminhos, autônomos, em direção a uma democracia sólida e humanitária. A
preeminência ocidental, a modelagem única baseada na história desta
pequena e hoje cada vez mais pobre península da Eurásia, não seria mais
modelo obrigatório para todos.
A conciliação entre Islã e
democracia, lançando por terra prateleiras inteiras de "saber
ocidental", encontra-se hoje, no Cairo, com seu próprio destino.
Conforme a proclamação do Conselho Supremo do Egito busca-se a
construção de um sistema "em que a liberdade do ser humano, o império da
lei, a fé no valor da igualdade, a democracia plural, a justiça social e
a erradicação da corrupção constituam as bases da legitimidade de
qualquer sistema de governo que dirija o país".
Palavras. Mas, são palavras que vieram de 18 dias de revolta e luta e custaram até o momento 300 mortos.
(*) Professor Visitante da Universidade Técnica de Berlim
Francisco Carlos Teixeira é professor
Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
Artigo publicado originalmente em http://www.irdeb.ba.gov.b