O Garibaldi de Igarapé por José R. Bessa Freire
Um divertido panfleto está
circulando na internet, provocando reações diversas. Pessoas bem informadas
morrem de rir; militantes politizados estrebucham de raiva; patriotas ingênuos
tremem de medo. O panfleto jura que a Pátria está ameaçada, mas pode ainda ser
salva, se seguir o exemplo de Plácido de Castro, "o gaúcho que defendeu o
Acre". Mostra foto dele, solene, de bigodões retorcidos e anuncia: "Agora
outro gaúcho, consciente e patriota, se levanta em defesa da
Pátria".
Quem ameaça a Pátria? Os
índios. Quem é o novo herói que a defende? Um descendente de italianos, Paulo
César Quartiero, o maior produtor de arroz da região. O panfleto apresenta sua
bibliografia: fazendeiro, 55 anos, que em 1978, favorecido pela ditadura
militar, migrou do Rio Grande do Sul para Roraima. Omite, no entanto, que a
região é habitada há pelo menos cinco mil anos por índios Makuxi, Wapixana,
Ingariko e Taurepang.
Quartiero, o forasteiro
recém-chegado, não quis saber disso. Invadiu terras indígenas, ocupou-as
ilegalmente, expulsou índios, derrubou árvores, poluiu igarapés, arrasou o
habitat dos pássaros, plantou arroz, se elegeu prefeito de Paracaima, ficou
podre de rico. Os índios reclamaram ao Judiciário, que tartarugou durante trinta
anos, com recursos de advogados bem pagos, cheio de latinorum malandro. Depois
de transitar por todas as instâncias, o Supremo mandou devolver a terra dos
índios aos índios. Decisão irrecorrível.
A decisão, porém, não foi
cumprida, porque cinco arrozeiros, embora indenizados por ‘benfeitorias’,
resistem à lei. Estão armados. São perigosos. Em 2004, atacaram quatro
comunidades, incendiaram 34 casas indígenas e o posto de saúde, espancaram
índios, baleando um deles. Na semana passada, preso por desacato à Polícia
Federal, Quartiero pagou 500 paus de fiança e foi solto. Podem anotar: ele está
aprontando alguma presepada para repercutir no Dia do Índio, 19 de abril.
Esses arrozeiros
fora-da-lei tentam, agora, ganhar o apoio da opinião pública para a sua causa.
Mas essa é uma causa inglória. Nenhum cidadão honesto, inteligente e sensível,
com sede de justiça, vai concordar com o roubo das terras indígenas. Por isso,
não conseguindo apoio para a defesa de interesses pessoais escusos, eles tentam
confundir a cabeça das pessoas, dizendo que estão defendendo a Pátria amada
salve-salve. Só se o nome da fazenda deles for ‘Pátria’.
O panfleto dos arrozeiros
conclama: "O Brasil somos todos nós. Está na hora de defender o que é nosso.
Vamos resistir. Vamos vencer". Nós quem, cara pálida? Defender o direito de
Quartiero ocupar terras indígenas, destruir o meio ambiente e encher o bolso de
dinheiro é "defender o que é nosso"? Ou "defender o que é nosso" é reconhecer o
direito dos índios, que há séculos preservam a biodiversidade e a
sociodiversidade? É bom lembrar que terras indígenas são propriedades da União.
Portanto, são mais "nossas" nas mãos dos índios do que nas dos
fazendeiros.
Novos
Bandeirantes
A violência dos arrozeiros
ocorre sob nossas barbas, em pleno século XXI, mas nos faz lembrar as
bandeiras do período colonial, aquelas expedições armadas que invadiam
aldeias e queimavam malocas. Os bandeirantes formavam uma espécie de Esquadrão
da Morte Rural. O padre Antônio Vieira conversou com um deles, que participou da
expedição de Raposo Tavares ao rio Madeira (1648-1651), onde viviam cerca de
150.000 índios. O bandeirante confessou como atuavam: "Nós damos uma descarga
cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia.
Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas
deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a
viagem".
O bandeirante falava como
se estivesse contando uma façanha maravilhosa, uma caçada esportiva. Tratavam os
índios como se fossem antas ou onças, escreveu Vieira, em 1654, lamentando a
impunidade dos criminosos. Outro jesuíta, Jerônimo Rodrigues presenciou o
assassinato de velhos, enfermos e crianças: "Nenhuma pessoa, que não tenha
visto com os seus próprios olhos tais horrores abomináveis, pode imaginar coisa
igual. A vida inteira desses bandidos consiste em ir e vir do sertão, indo e
trazendo cativos com muita crueldade, mortes, saqueios e depois vendendo-os como
se fossem porcos do mato"
O historiador Capistrano de
Abreu perguntou: será que tais horrores podem ser compensados pela consideração
controvertida que, graças aos bandeirantes, as terras devastadas pertencem hoje
ao Brasil? Os arrozeiros acham que sim, quando apresentam Quartiero como um novo
Garibaldi. Mas Garibaldi, o guerrilheiro italiano do século XIX que se exilou no
Rio Grande do Sul, lutou por uma causa coletiva, na Guerra dos Farrapos. Já as
lutas e a folha corrida do ‘Garibaldi de Igarapé’ mostram um lado obscuro, que
está mais para Esquadrão da Morte do que para salvador da
Pátria.
Que o diga o ticuna
Constantino Fupeatücü. Faz algum tempo, em viagem ao Rio de Janeiro, ele aceitou
convite para dar uma aula de Etnohistória, na UERJ, no turno da noite. Falou aos
alunos sobre a situação de 30.000 ticunas, do Alto Solimões (AM). No meio da
aula, um apagão deixou a universidade nas trevas. As salas se esvaziaram, exceto
uma. Lá, Constantino continuava falando a uma platéia atenta de estudantes. Na
escuridão, era apenas uma sombra relatando, com voz sóbria e anasalada, o
episódio ocorrido em 28 de março de 1988: o massacre do igarapé do Capacete.
Contou como os índios, desarmados, reunidos
na aldeia, foram surpreendidos por pistoleiros que começaram a atirar sobre
eles. Tentaram fugir para a floresta, mas estavam cercados. As crianças lançavam
gritos de desespero. Os adultos procuraram protegê-las com seus corpos, fazendo
um escudo humano em volta delas. No meio do tiroteio, corpos começaram a cair.
No final, os índios contaram: 14 mortos, 23 feridos, 10 desaparecidos, todos
eles ticuna, o que repercutiu internacionalmente.
Constantino lembrou, com
respiração ofegante, como foi ferido por quatro balas ainda hoje encravadas em
seu corpo. Sua voz, mansa, cortava a escuridão, intercalada por pausas
dolorosamente prolongadas, que criavam um silêncio eloqüente. Os estudantes de
História escutavam estarrecidos: o documento que viam não era um desses
manuscritos do século XVI, narrando atrocidades do colonizador português em
passado longínquo, mas um relato oral que descrevia o comportamento de
brasileiros de carne e osso, "patriotas" de meia-tigela, nossos contemporâneos,
aqui e agora. O documento era o próprio Constantino, em cujo corpo a história
havia deixado o seu registro, com sangrenta caligrafia.
Os estudantes consultaram,
pela primeira vez, um documento vivo. Concluíram que era necessário incorporá-lo
para repensar a história do Brasil, que glorifica os bandeirantes como
"desbravadores do território nacional" e "heróis da pátria". Esse repensar,
aliás, é a condição epistemológica necessária para evitar que índios continuem
sendo caçados, hoje, como antas ou onças, sob o ridículo pretexto de que se está
"defendendo a Pátria".
P.S. – Agradeço meu amigo
Gilberto Moraes, engenheiro e professor da UERJ, o envio do panfleto,
acompanhado de frase irônica e provocativa:
"A mensagem fala por si mesma. Estou encaminhando para análise e reflexão e
para não deixar dividir o Brasil". Ele sabia que eu iria pular nas tamancas.
Publicado originalmente no
Taquiprati – Diário do
Amazonas em 06/04/2008