Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

O golpe de 2016 e a crise do discurso jurídico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
FABIO_DE_OLIVEIRA_RIBEIRO

O golpe de 2016 se distingue do de 1964 pela forma (fraude parlamentar x violência militar) e foi precedido por uma crise política diferente (judicialização da política x acirramento ideológico da guerra fria).

Uma análise sumária do discurso que legitima o golpe (e as privatizações e a revogação de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários impostos aos brasileiros) demonstra que, apesar de uma certa recorrência do moralismo, o discurso que emerge dominante após a queda de Dilma Rousseff (jurídico, patrimonialista, neoliberal) também é distinto daquele que dominou o Brasil depois que João Goulart foi afastado da presidência (nacionalista, tecnocrático, anti-comunismo).

A valorização do discurso jurídico ao discurso político fica evidente na medida em que a própria política, por força da judicialização das disputas partidárias e parlamentares, passou a ser decidida nos Tribunais, órgãos que também dizem que político deve ou não deve permanecer na vida pública. Os jornais, revistas e telejornais mimetizam o discurso jurídico e atacam ferozmente o discurso político, que se torna assim uma modalidade discursiva desvalorizada aos olhos do respeitável público. O círculo vicioso se fecha quando os próprios políticos passam a usar o discurso jurídico como se ele fosse a única modalidade discursiva autorizada, valorizada, politicamente admissível.

Em virtude da sua banalização permanente e utilização política cotidiana, o próprio discurso jurídico se transformou. Pouco a pouco ele foi perdendo sua autoridade e se transformando numa nova espécie de tagarelice. Isto explica os abusos evidentes cometidos por Sérgio Moro, juiz que ao proferir a sentença no caso do Triplex usou dezenas de páginas para julgar a si mesmo para poder condenar Lula e que ao fazer isto ignorou documentos oficiais, deu valor a matérias jornalísticas e nem mesmo discutiu detalhadamente as alegações da defesa.

As características desta sentença indicam que ela foi escrita para ser usada politicamente pela imprensa e não apenas para produzir efeitos jurídicos no processo. Antes disto, porém, Sérgio Moro havia utilizado o processo do Triplex para abalar profundamente o governo Dilma Rousseff: ele divulgou conversas gravadas entre a presidenta e Lula para impedir que o ex-presidente fosse nomeado Ministro.

Heidegger afirma que existem três modalidades de alienação quotidiana do Dasein . Uma delas é justamente a tagarelice, linguagem “… cuja função de comunicar e de dizer coisas novas se perdeu. Pertencem á tagarelice as conversas banais do cotidiano, os discursos políticos e os slogans, os cumprimentos cujo sentido já se esqueceu há muito tempo, as falas convencionais.” (Marcuse – Vida e Obra, Francisco Antonio Doria, José Alvaro Editor/Paz e Terra, São Paulo, 1983, p. 78).

Ao transformar o discurso jurídico em discurso político, ao praticar atos processuais com finalidades que não são processuais, os juízes que instrumentalizaram o golpe de 2016 rasgaram o Véu de Maya que protegia a atividade judiciária. A equivalência entre o discurso político e a tagarelice abalam profundamente a autoridade dos juízes (sem a qual eles não conseguirão mais se impor tranquilamente à sociedade).

Marcuse viu uma ampliação da alienação da linguagem ao estudar as sociedades que emergiram do pós guerra. A alienação teria penetrado em “…regiões até então dela bem protegidas. De que maneira funciona a linguagem alienada? Seu mecanismo é o da ‘palavra-puxa-palavra’, as idéias se conduzem umas às outras sem que seja necessária a intervenção do sujeito falante. Na verdade essa linguagem nada apresenta de novo. A palavra-puxa-palavra leva por caminhos bastante conhecidos; no jargão cotidiano, ou no jargão da administração repressora, ‘comunista’ puxa quase que mecanicamente ‘subversivo’, assim como a Rádio Pequim quando afirma qualquer coisa sobre a ‘renegada camarilha revisionista soviética’ ou o Pravda quando condena os dirigentes tchecos ‘agentes do imperialismo ianque’: o texto das condenações ou dos esclarecimentos já está totalmente implícito no jargão. Governos se irritam à toa quando a maioria dos aparelhos de rádio ou de TV são desligados na hora dos programas oficiais. É que percebe-se como ‘esse ministro não vai dizer nada’ ou ‘como já sabemos tudo o que ele vai falar’.” (Marcuse – Vida e Obra, Francisco Antonio Doria, José Alvaro Editor/Paz e Terra, São Paulo, 1983, p. 260/261).

Ao escrever o livro “Comentários a uma sentença anunciada” http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/resenha-do-livro-comentarios-a-uma-sentenca-anunciada-por-fabio-de-oliveira-ribeiro, centenas de juristas disseram algo semelhante: já sabiamos o que Sérgio Moro iria dizer e ele não tinha nada realmente jurídico a dizer. O preconceito dos juízes contra a política não conseguiu elevar a autoridade do discurso jurídico. O que ele fez foi justamente o oposto. Antes valorizado, o discurso jurídico se transformou numa linguagem ideologizada cujo conteúdo é irrelevante. A popularidade de Sérgio Moro caiu, ninguém mais quer saber o que o juiz tem a dizer, pois a modalidade discursiva que ele usa se tornou inócua.

A crise brasileira se desenvolveu dentro de uma crise muito maior. A crise do neoliberalismo começou em 2008 nos EUA, se propagou pela Europa e ainda não chegou ao fim em virtude dos países ricos se recusam a abandonar as irracionalidades neoliberais. Nesse sentido, vale a pena lembrar as palavras de Alain Touraine:

“A continuidade permite fazer a triagem entre o que deve ser suprimido e o que deve ser conservado do passado, mas ela somente pode ser feita pela eficácia de um sistema político capaz de evitar o tudo ou nada, sempre muito custoso. A ruptura tem por maior inconveniência aquela de fazer perder de vista a transformação a ser feita. Ela pode mesmo levar à criação de um poder absoluto que rompe os vínculos com o passado, mas ao preço da ditadura exercida por quem comanda a ruptura, seja um indivíduo, seja um partido.” (Após a crise, Alain Touraine, Editora Vozes, Petrópolis, 2011, p. 126)

No Brasil a crise neoliberal levou ao golpe de estado para que o neoliberalismo fosse reinstalado no Brasil com ajuda do Poder Judiciário. Nesse sentido, devemos admitir a hipótese de que o golpe de 2016 está impondo ao Brasil uma ruptura muito mais profunda do que aquela que ocorreu em 1964. Ao tomar o poder usando a força bruta os militares baniram da arena política qualquer discurso que valorizasse as Reformas de Base defendidas por João Goulart. Mas isto não afetou em nada o discurso jurídico, que continuou sendo valorizado. Portanto, em 1964 a ruptura política se deu mediante a continuidade da autoridade do campo jurídico.

Ao politizar o discurso jurídico o golpe de 2016 rebaixou sua autoridade transformando-o em tagarelice (Heidegger) ou numa linguagem alienada e inócua (Marcuse). Portanto, a ruptura que ocorreu em 2016 é terrível e transformará a crise política e econômica em crise jurídica com danos evidentes e permanentes para o Poder Judiciário, cujas decisões passarão a ser intensamente questionadas e eventualmente descumpridas.

Está absolutamente certo o juiz que disse que o Judiciário pagará caro por ter sido atraído pelos holofotes. Todavia, o que é caro para um juiz pode e deve se tornar muito mais barato para os cidadãos. Sem querer Sérgio Moro e vários de seus colegas fizeram um favor aos brasileiros. Eles perderam de vista a transformação que não deveria ser feita no discurso jurídico. “Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a Justiça se retira por alguma porta” (François Guizot), mas quando o discurso jurídico e o discurso político saem de mãos dadas do Tribunal ele fica vazio e o povo pode ficar tentado a fazer justiça com as próprias mãos.

Artigo publicado originalmente em http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-golpe-de-2016-e-a-crise-do-discurso-juridico-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

Compartilhar:

Mais lidas