O Homem dos olhos de vidro. Por Urda Alice Klueger
Foi lá na Fazenda Klabin, em 2004, que me lembro de tê-lo visto a
primeira vez: a ocupação acontecera sem incidentes, e olha que era uma baita
ocupação – 500 famílias e o maior latifúndio do Estado de Santa Catarina,
totalmente devastado dos pinheiros que tivera um dia.
Fôramos para
lá sem saber para aonde iríamos, como é de costume; soubéramos que iríamos meia
hora antes de sair de casa, e aí existe aquele ritual de botar roupas escuras
para ficar-se menos visível caso a polícia ou as milícias do patrão venham a
atirar na gente, botar na bolsa uma garrafa d’água e algo de comer, pois nunca
se sabe até onde se vai e quando se volta, e depois há que se esperar em algum
ponto combinado, para que venham instruções para o telefone celular de alguém, e
então se segue até o ponto seguinte e se aguarda novas instruções, e assim a
noite segue. Quase já na área que continuava desconhecida, silenciosos e imóveis
na escuridão de um pátio, víamos intensa movimentação de carros de polícia:
alguém desconfiara de alguma coisa, alguém dera algum alerta, e então os
cuidados tinham que ser redobrados para se evitar incidentes. No comando de toda
a operação, o Homem dos Olhos de Vidro, que eu ainda não conhecia, mas que
conhecia muito bem as rotas e os perigos, e que tinha tudo pronto para que não
houvesse erros. E entre duas passagens dos carros de polícia, saímos quase que
pé ante pé, e nos incorporamos, não muito distante, numa estradinha lateral, às
quase 500 famílias que já estavam indo, pois havia famílias para a frente e
famílias para trás, e a nós coube seguir uma kombi lotada de criancinhas que
eram como libélulas batendo as asas na sua algazarra, e éramos seguidos por um
caminhãozão carregando uma lona na sua carroceria – numa freada que houve, numa
parada que não se sabia para que (mas decerto prevista pelo homem que tinha
aqueles olhos), aquela lona se mexeu e de debaixo dela espiaram dezenas, muitas
dezenas de pares de olhos de homens que estavam dispostos a qualquer coisa para
defender aquelas criancinhas e a terra que decerto viria.
Meio
magicamente, a polícia não nos viu, e atravessamos a BR como seres invisíveis, e entramos naquele
latifúndio totalmente abandonado, creio que pelas quatro horas da manhã. Já era
grande o número de pessoas que lá estava; como num carreiro de formigas, não
paravam de chegar outras, de todas as formas possíveis, em todos os veículos
possíveis, e acho que não teve quem não engoliu um soluço ao ver o caminhão de
carregar gado, de repente, entrar pelo caminho que vinha da rodovia, e dele
saltarem as muitas dezenas de homens dispostos a tudo para garantir o pedacinho
de chão para a sua família, neste país de tantas terras
abandonadas.
E nos
dispersamos a olhar aqui e ali, a ajudar aqui e ali, e fazia frio nos campos de
alta altitude, e então, em algum momento, o sol começou a nascer por detrás do
leste, e então houve a grande reunião de todos os que ali estavam, um grande
círculo que como que recebia o sol, e numa lombadinha do campo devastado estava
o Homem dos Olhos de Vidro, e foi ali que o conheci. Muita outra gente estava
ali, gente de muitos lados, os que vieram para ficar e os que vieram para
apoiar, e neste se incluíam os representantes de bispos, e de autoridades
municipais daquela cidade que morria pelo abandono da fazenda, e tanta gente,
tanta gente unida por seríssimos sonhos que o pessoal que acredita na
Veja dificilmente um dia conseguirá entender, e
uma coisa a se pensar neste momento é se há mais gente que crê na Veja ou mais
gente que crê na idéia de que um mundo melhor é possível. Como não há estatísticas, fica difícil
definir tal coisa, mas eu cá, depois de muito andar por aí, tenho minhas dúvidas
sobre onde está a maioria…
Voltemos ao
Homem dos Olhos de Vidro, no entanto. Seus antepassados tinham sido gerados numa
Europa de muita gente de olhos claros, a mesma Europa que gerara os Sem-Terras
que haviam chegado à América sob o nome de Imigrantes – era de lá que os olhos
transparentes daquele homem tinham vindo, e naquela manhã em que o sol nascia
sobre o campo que comportaria muito mais que as 500 famílias que estavam ali,
devia fazer muitas noites que ele não dormia, pois seus olhos de vidro estavam
vermelhos de tanta falta de sono – não fora nada fácil, com certeza, organizar
para que aquela imensa ocupação do imenso latifúndio arrasado acontecesse sem
nenhum incidente, mas agora a ocupação estava feita e era o momento ritualístico
da posse da terra, e deu-se voz a cada um dos que estavam ali, a cada liderança
e a cada representação, e o Homem dos Olhos de Vidro Vermelho a tudo acompanhou
e regeu fitando diretamente o sol que subia no céu e que devia provocar muita
dor naqueles olhos tão claros – e eu admirei visceralmente a força daquele
homem, a força que se expressava na transparência vermelha daqueles olhos que
pareciam cristal.
Nunca mais
esqueci a força daquela homem, a força que se expressava tão firmemente naquele
nascer do sol, na transparência vermelha dos seus olhos de vidro. Desde então,
eu o tenho encontrado diversas vezes por aí, sempre nos melhores momentos.
Descobri, no entanto, que há outros homens, e também outras mulheres, com olhos
de outras cores, com a mesma capacidade de liderança e de organização, e a minha
esperança cresceu. Há muita coisa para acontecer, por aí tudo. Um mundo melhor é
possível, sim, e é isto que deixa apavorado de medo o pessoal que acredita na
Veja.