Aldeia Nagô
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O macaco não soube esconder o rabo por Por Fábio Konder Comparato

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura

Há algo surpreendente (para dizer o mínimo), com todo esse estardalhaço a
respeito do III Programa Nacional de Direitos Humanos, que o Governo Lula acaba
de apresentar. Quase todos os pontos acerbamente criticados por militares,
latifundiários e donos de empresas de comunicação, já constavam dos dois
Programas anteriores, elaborados e aprovados pelos sucessivos governos de
Fernando Henrique Cardoso.


         E mais: nos dois Programas precedentes,
vários desses pontos polêmicos continham propostas mais fortes e abrangentes do
que as constantes do atual Programa. Ora, os Programas de Direitos Humanos
aprovados pelo então Presidente Fernando Henrique, em 1996 e 2002, passaram
praticamente despercebidos na imprensa, no rádio e na
televisão.

         Como explicar, então, toda a bulha suscitada
pelo Programa do Governo Lula, com conflitos públicos entre Ministros e
acusações de desestabilização da ordem constitucional vigente, para desembocar
no vergonhoso acordo negociado entre o presidente e a
oposição?

         Não é preciso ter o olfato aguçado, para
sentir em tudo isso o fedor eleitoral. Afinal, já entramos, neste ano da graça
de 2010, no único período ativo da classe política.

         Mas façamos as comparações acima
enunciadas.

Conflitos no campo e reforma
agrária

         O Programa Lula não contém nenhuma proposta
de mudança legislativa e, menos ainda, constitucional, a esse respeito.
Limita-se a falar em fortalecimento da reforma agrária, e em atualização dos
índices de utilização da terra e de eficiência na exploração. Tais índices foram
fixados em 1975, e até hoje, apesar dos sucessivos protestos dos movimentos de
reforma agrária, continuam os mesmos. São eles que comprovam o fato de uma
propriedade rural ser improdutiva, requisito constitucional para a sua
expropriação. Ora, os grandes empresários rurais – perdão! os "agricultores",
como diz o ministro Stephanes – não cessam de alardear o fato de que a
agricultura capitalista aumentou brutalmente a produtividade das
terras.

         O primeiro Programa do Governo Fernando
Henrique, em 1996, continha a proposta de um projeto de lei, que tornasse
obrigatória a presença no local do juiz ou do representante do Ministério
Público, quando do cumprimento de mandados judiciais de manutenção ou
reintegração de posse de terras, que implicassem a expulsão coletiva dos seus
ocupantes. Ninguém ignora que, no cumprimento desses mandados judiciais, a ação
da Polícia Militar costuma provocar mortes e lesões corporais
graves.

         No mesmo Programa de 1996, lê-se a seguinte
proposta: "apoiar proposições legislativas que objetivem dinamizar os processos
de expropriação para fins de reforma agrária, assegurando-se, para prevenir
violências, mais cautela na concessão de liminares".

         Em 2002, sempre no Governo Fernando Henrique,
o II Programa de Direitos Humanos sugere apoiar "a aprovação de projeto de lei
que propõe que a concessão de medida liminar de reintegração de posse seja
condicionada à comprovação da função social da propriedade, tornando obrigatória
a intervenção do Ministério Público em todas as fases processuais de litígios
envolvendo a posse da terra urbana e rural".

         Pergunta-se: onde estava então a União
Democrática Ruralista (não se perca pelo nome), que não foi às ruas denunciar a
subversão comunista contida nessas proposições?

Meios de
comunicação de massa

         Nessa matéria, a "audaciosa" proposta do
Programa Lula, que suscitou a indignação dos donos de jornais, rádios e
televisões, foi a regulamentação do art. 221 da Constituição, o qual até hoje,
transcorridos 21 anos de sua promulgação, permanece letra
morta.

      E o que propuseram os
Programas de Fernando Henrique sobre o assunto? A mesma coisa, mas com um
importante acréscimo: "garantir a imparcialidade, o contraditório e direito de
resposta na veiculação de informações, de modo a assegurar a todos os cidadãos o
direito de informar e ser informado".

     Hoje, em razão de
lamentável decisão do Supremo Tribunal Federal, não existe mais lei de imprensa
no Brasil. Que eu saiba, somos o único país do mundo com esse vácuo
legislativo. 

Ora, sem regulamentação por lei do direito de resposta nos meios de comunicação
de massa, o cidadão fica inteiramente submetido ao arbítrio
deles.

Revogação da lei de anistia?
         O ministro da Defesa, acolitado pelos chefes
das três armas militares, rasgou as vestes e pôs cinza na cabeça, ao ler a
seguinte proposta do atual Programa de Direitos Humanos: "Criar Grupo de
Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso Nacional,
iniciativas de legislação propondo: revogação de leis remanescentes do período
1964-1985, que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado
sustentação a graves violações."

         "Aí está", esbravejou o ministro, "querem
revogar a lei de anistia!"

         Pelo visto, os assessores do ministro
imaginam que quem é suposto conhecedor de estratégia militar é também entendido
em estratégia política. Erro funesto. Ao imaginar que a citada proposta do III
Programa de Direitos Humanos tem em mira a lei de anistia de 1979, a corporação
militar tirou a máscara. Ela reconheceu que esse diploma legal viola os direitos
humanos, e que essa violação só pode consistir no fato de a indigitada lei haver
anistiado os agentes públicos, militares e policiais, que mataram, estupraram e
torturaram opositores ao nefasto regime político de 1964 a
1985.

         Tranquilizem-se, porém, o ministro e os
chefes militares. O que o Conselho Federal da OAB propôs no Supremo Tribunal,
por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, não foi a
revogação da lei de anistia. Aliás, em um Estado de Direito o Poder Judiciário
não tem poderes para revogar leis. Objeto daquela ação é a declaração judicial
de que a Lei nº 6.683, de 1979, não anistiou os autores de crimes de sangue e de
violência contra opositores políticos, durante o regime
militar.

         É só isso. Mas isso, uma vez admitido, será a
condenação definitiva da "ditabranda", tão louvada por um jornal de São
Paulo.

A Comissão de Verdade
         É realmente inacreditável que essa proposta
do III Programa de Direitos Humanos tenha provocado tanto escarcéu, pois nesse
ponto pode-se dizer que a montanha pariu um camundongo.

         A criação de uma comissão de alto nível, com
a participação da sociedade civil, destinada a apurar as atrocidades cometidas
durante duas décadas neste país, sob a responsabilidade final dos dirigentes
militares, foi discutida durante anos em congressos, seminários e mesas
redondas, em todo o território nacional. A Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, afinal, fixou-se na sugestão de criar tal comissão por decreto
presidencial. Mas o presidente da República, como era esperado, voltou atrás na
última hora e preferiu enviar o assunto às calendas gregas; isto é, ao Congresso
Nacional.

         Não se esqueça que estamos em ano eleitoral,
e que um eventual projeto de lei, nesse sentido, jamais será votado até o
encerramento da vigente legislatura, em dezembro de 2010.

         Como se vê, não é preciso ter muita
habilidade para capturar o ratinho, que saiu cambaleante do ventre da
montanha.

Finalmente, voltando de férias, o presidente da
República decidiu negociar um acordo com os críticos do III Programa de Direitos
Humanos. O Programa já não é por ele aprovado, mas simplesmente "tornado
público". Além disso, o presidente recomendou que os pontos polêmicos,
notadamente a Comissão de Verdade, sejam abrandados.

         Como se vê, de ambos os lados o macaco não
soube esconder o rabo.      As classes dominantes demonstraram que sua maior
arma política é a dominação empresarial dos meios de comunicação de massa. Uma
democracia autêntica só pode existir quando as diferentes camadas do povo têm
liberdade de se comunicar entre si. Entre nós, porém, os canais públicos de
comunicação foram apropriados pela classe empresarial, em seu próprio benefício,
deixando o povo completamente à margem.

         O presidente da República, por sua vez,
seguindo seus hábitos consolidados, resolveu abafar as disputas e negociar um
acordo. Esqueceu-se, porém, que nenhum acordo político decente pode ser feito à
custa da dignidade da pessoa humana.

Fábio Konder Comparato é professor Emérito da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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