O mea-culpa da elite por Cristian Klein
Pesquisa inédita realizada pela Universidade de São Paulo revela o que pessoas influentes da América Latina pensam sobre política e economia
Uma
elite comprometida com os valores democráticos, preocupada com o impacto das
desigualdades na preservação da democracia e que se sente culpada por seu
egoísmo. Esse retrato pode parecer surpreendente, mas é a imagem das elites
latino-americanas captada por estudo inédito, realizado pelo Núcleo de
Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri) da Universidade de São Paulo
(USP). Intitulada "Percepção das Elites Latino-Americanas sobre as
Desigualdades Sociais e a Democracia", a pesquisa entrevistou, no ano
passado, 829 representantes das elites de seis países do continente: Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, México e Venezuela. Como elite foram consideradas as
pessoas com capacidade de influenciar seus pares e os destinos da nação nas
áreas econômica, política, sindical, cultural, acadêmica e jornalística.
Para
uma América Latina cujos estratos mais elevados da sociedade estiveram
historicamente associados ao conservadorismo, ao descaso com a agenda social e
à tentação autoritária, o resultado chama a atenção. De acordo com os
pesquisadores, esses dados seriam reflexo de uma mudança de comportamento.
Em
primeiro lugar, todas as elites dos seis países demonstraram ter alto apreço
pela democracia. No geral, 91,1% responderam que o regime democrático é
"sempre a melhor forma de governo". Apenas na Bolívia e no Chile o
apoio a regimes autoritários encontrou respaldo maior, ainda assim marginal.
O
mais surpreendente é o mea-culpa feito pelos membros do topo da pirâmide social
desses países, segundo o coordenador do Nupri, Rafael Villa. Entre os fatores
que são considerados obstáculos à democracia no continente, o "egoísmo das
elites" foi a resposta que obteve uma das maiores pontuações – média 8 –
numa escala de 0 a 10.
"É
uma mudança importante na mentalidade dessas elites. Embora o Estado tenha
muitos deveres na solução dos problemas, a elite chama a responsabilidade para
si e admite que também tem sua parcela de culpa. É um elemento positivo",
afirma Villa, professor de ciência política da USP. "No passado, havia a
visão muito paternalista de que o Estado tinha que resolver tudo, apesar do
discurso liberal das camadas mais altas", prossegue.
Acima
do egoísmo das elites, a pobreza e a desigualdade social – que atingiram o
escore 9 – foram apontados como os fatores que mais influenciam negativamente a
democracia. Esse resultado, em princípio, carregaria um significado ambíguo.
Poderia indicar tanto uma preocupação das elites com a solução desses problemas
quanto o simples temor de que eles se transformem numa ameaça às regras do
jogo, facilitando o populismo de líderes carismáticos que alterem radicalmente
o status quo.
Mas,
ao se analisarem as respostas dadas a outras três perguntas da pesquisa, o
quadro fica mais claro. Quando postas diante da questão "a democracia formal
não basta para resolver a imensa desigualdade social na América Latina",
há uma grande variação entre as elites de cada país. As do Brasil (69,1%) e da
Venezuela (38%) foram as que mais concordaram com a frase. As do Chile (78,7%)
e da Bolívia (85,4%), as que mais discordaram. A elite brasileira, contudo, é a
única que afirma, maciçamente, que a democracia formal, minimalista – ou seja,
aquela baseada apenas no respeito ao jogo eleitoral e à formação de governos,
com eleições livres e secretas – não é suficiente para combater a desigualdade,
o que estaria a indicar sua adesão a uma democracia mais substantiva, isto é,
que garanta, de fato, alguns direitos fundamentais e a justiça social.
"Em
relação ao Brasil, esses resultados não são tão surpreendentes. Os
conservadores no país não são antissociais. São favoráveis a se dar proteção
aos pobres, à justiça social", afirma José Augusto Guillon de Albuquerque,
professor da USP e um dos quatro coordenadores da pesquisa, que também teve
apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Observatory on Inequality in
Latin America, do Center for Latin American Studies da Universidade de Miami.
Para
Albuquerque, a direita brasileira é mais ideológica e baseia seu discurso em
outros assuntos, como a menor interferência do Estado na economia. "Não
questiona tanto a necessidade de melhor distribuição de renda. Está longe de
carregar aquele neoconservadorismo de certa elite americana", diz.
Um
segundo ponto que confirmaria o autêntico interesse das elites latinas por um
mundo mais equânime diz respeito a que modelo econômico elas preferem. O
exemplo escandinavo, o mais bem acabado de Estado de bem-estar social
("welfare state"), foi o mais citado. Foi escolhido por 30,8%, à
frente do modelo da União Europeia (26%) e dos Tigres Asiáticos (14,9%). O
padrão altamente liberal americano obteve apenas 5,9% das preferências. Ficou
atrás até da Aliança Bolivariana (formada por sete países, entre os quais Venezuela,
Bolívia, Cuba e Nicarágua), com 8,1%.
Uma
terceira amostra da inclinação das elites a uma maior justiça social tem a ver
com o tema prioritário da agenda pública. Questionadas sobre qual o principal
objetivo de um governo, as elites dividiram seu maior apoio entre as opções
"melhorar os índices educacionais" (Brasil, Chile e Bolívia) e
"erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades" (Argentina,
Venezuela e México). Assuntos geralmente associados a uma pauta conservadora,
de direita, como "garantir a ordem e a segurança pública",
"integrar a economia no mercado mundial" e "garantir o
crescimento econômico" aparecem em segundo ou terceiro planos.
Paulo
Skaf, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é
um exemplo desse pensamento da elite revelado pela pesquisa. Ele lembra que a
conquista da democracia, tanto no Brasil quanto nos demais países da América
Latina, não foi acompanhada pela inclusão social. E, como "não conseguimos
vencer a pobreza, temos uma dívida social ainda a ser resgatada", diz o
empresário. "Não acredito em uma fórmula mágica para chegarmos à plena
democracia com igualdade social, mas existem vários ingredientes que nos
ajudariam, e muito, a chegar lá", comenta. Entre eles estariam: instituições
sólidas e respeitadas, educação e saúde de qualidade acessível a todos,
segurança jurídica e capacidade de promover o desenvolvimento sustentado da
economia. "O que precisamos é promover a globalização da elite, da
riqueza, e não a da fome e a da miséria", afirma Skaf, que foi um dos
entrevistados da pesquisa.
Diante
de tantos sinais, restaria alguma dúvida sobre o suposto novo pendor
democrático e equitativo das elites latino-americanas? Para o professor da
Universidade Federal do Paraná Renato Perissinotto, estudioso do tema elites
políticas, esses resultados não refletem uma "manifestação cínica". É
que prevalece hoje um consenso tão grande sobre o que é a boa sociedade – ou
seja, uma democracia liberal associada a um Estado de bem-estar social, combinação
idílica dos países escandinavos – que fica muito difícil para qualquer
indivíduo, sobretudo para os detentores de funções públicas, assumir posição
contrária a pilares desses modelos, como a competição política e as políticas
sociais.
Os
temas sociais, segundo Perissinotto, são quase inescapáveis. Não daria para
deixá-los de lado, seja por razões humanitárias ou por um realismo político
praticado pelas elites, que preferem ceder alguns anéis, num ambiente de
tranquilidade, a ver algum líder ou movimento radical defendendo cortes e
rupturas capitais.
"O
ponto a ressaltar é até onde vão, quais são os limites da disposição reformista
da elite para resolver os problemas sociais. Porque, a partir de um determinado
nível da distribuição de renda, o jogo é claramente de soma zero, ou seja, para
um ganhar, o outro tem que perder. E, nesse caso, o ambiente torna-se muito
mais competitivo"
O
caso da elite boliviana pode ilustrar até onde vai esta disposição. Sentindo-se
acuada desde que o presidente Evo Morales assumiu o governo e iniciou profundas
alterações – de caráter nacionalista e fortemente voltadas para reivindicações
das camadas mais pobres da população – ela demonstra, claramente, seu
descontentamento com as políticas sociais em curso. Nesse contexto de inflexão
histórica, a sombra de Morales parece estar presente em várias das respostas da
pesquisa.
É
a elite que mais exige a preservação do regime democrático como principal
tarefa de um governo (27,8%). Também é, ao lado da elite venezuelana – que se
vê igualmente ameaçada por Hugo Chávez -, a que mais concorda com a frase:
"As políticas de distribuição de renda prejudicam os mais
competentes" (44,4%). Aqui, há um grande contraste com as elites
brasileira e argentina, que são as que mais discordam, total ou parcialmente,
da afirmação: 87,7% e 92,8%, respectivamente.
Responsável
pela execução da pesquisa na Bolívia, o sociólogo Salvador Romero explica que o
baixo apego à democracia no país (apenas 81,1%) vem de dois grupos opostos: por
um lado, os setores muito conservadores das elites tradicionais e, por outro,
as elites "populares" (líderes de movimentos sociais, sindicais e
próximos ao governo) que aderem a uma versão de "democracia
autoritária", ou seja, ditada pela maioria, sem respeito à oposição.
Questionados
sobre que tipo de presidente resolveria melhor os problemas do seu país, os
bolivianos (27%), agora ao lado da elite chilena (26,6%), foram os que menos
optaram pela resposta "aquele que toma as decisões ouvindo a
população". No Brasil, esse índice foi de 79%, na Argentina, de 63,6%, e
no México, 63,3%.
Romero
lembra que, em muitos setores da elite, há um profundo temor de que o
autoritarismo se instale no país, em virtude de algumas medidas já tomadas pelo
governo, como o desmantelamento da maioria das instituições independentes (como
o Tribunal Constitucional, a Corte Suprema de Justiça e o Conselho da
Judicatura), além das animosidades constantes com os meios de comunicação e
declarações agressivas contra a Igreja Católica.
Renato
Boschi, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Iuperj), analisa a situação boliviana sob outro ângulo. Embora não seja adepto
do modelo de democracia participativa, que se baseia em consultas à população
por meio de plebiscitos e referendos, ele considera que há uma contestação da
legimitidade.
Do
ponto de vista metodológico, Boschi ressalta que resultados obtidos a partir de
respostas de grupos tão diferentes entre si, como ocorre na pesquisa do Nupri,
devem ser interpretados com cautela, pois pode haver grande variação entre os
países, como visto acima, e, sobretudo, entre os diferentes tipos de elite.
É
o caso das respostas dadas a determinados temas pelos distintos segmentos da
elite brasileira. Questionadas sobre a redução da interferência do governo na
atividade econômica, 59% dos empresários a consideram muito importante,
porcentual bem diferente das elites partidária (31%), governamental (24%), da
sociedade civil (18%) e sindical (13%).
A
divergência entre as opiniões dos líderes empresariais e sindicais é a mais
marcante. Enquanto 67% dos membros da elite econômica afirmam que não votariam
em políticos acusados por corrupção, 64% dos líderes sindicais responderam que
não são influenciados pelas acusações – resultado que pode estar relacionado a
uma defesa pragmática do governo Lula, envolvido em 2005 no escândalo do
mensalão.
Outro
contraste aparece nas respostas sobre que elementos são essenciais à
democracia. Entre a elite sindical não há nenhuma menção às opções
"aplicação da lei" e "garantir o direito da oposição".
Entre os empresários, por outro lado, apenas 2,2% responderam "garantir a
participação da população nas decisões do governo". Ou seja, há visões
antagônicas sobre como a democracia deve funcionar, claramente influenciadas
pelos interesses de classe. De um lado, menos importância ao império da lei e à
competição política; do outro, uma desconfiança em relação à participação
popular.
Para
Marco Marconini, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Federação
do Comércio de São Paulo (Fecomercio)
têm reclamações em relação aos capitalistas, dizendo que eles só priorizam os
lucros, os empresários também criticam as reivindicações políticas dos líderes
sindicais.
"O
empresário tem, sim, uma certa desconfiança, pois está preocupado com o nível
de assistencialismo"
brasileiros da pesquisa. "O empresário está vendo que isso tem impacto no
déficit fiscal, que, por sua vez, afeta os juros e a atividade econômica.
Agora, quem não sabe pode achar que não há problema nisso. O ideal é um
meio-termo: nem lucros absurdos nem assistencialismo demais, porque fica
difícil de viabilizar o país."
O
presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva
Santos, rebate a ideia de que programas sociais sejam assistencialistas, ao
afirmar que "as elites econômicas é que sempre dependeram e tiveram
relações promíscuas com o Estado", por meio de investimentos públicos,
subsídios e outras formas de intermediação de interesses. Segundo o líder
sindical, é uma incoerência que os empresários critiquem programas como o Bolsa
Família, pois eles tiraram 30% das pessoas da miséria absoluta, fortaleceram o
mercado interno e teriam favorecido as próprias empresas, que passaram a vender
mais. Sobre a pouca importância dada pela elite sindical à aplicação da lei e
ao direito da oposição, Santos afirma que, pessoalmente, considera esses
elementos essenciais à democracia, mas, por causa do modo como a pergunta foi
formulada na pesquisa, teve de priorizar outros aspectos.
Apesar
da discrepância nas opiniões das elites econômica e sindical, um ponto as une
surpreendentemente (bem como os demais segmentos pesquisados)
no socialismo. Entre a elite da sociedade civil e empresarial, 98% dizem que
esse modelo de sociedade não é viável. O porcentual cai entre as elites
governamental (89%) e partidária (84%). E, ao contrário das expectativas,
também é alto entre os dirigentes sindicais: a maioria, 57%, não acredita no
socialismo. O sonho de uma mudança social acabou até para os trabalhadores com
mais consciência de classe?
"Hoje
a via revolucionária está completamente descartada. O que é o socialismo? A
expropriação dos bens de produção e seu controle pelo Estado. Isso mete medo.
Nem os sindicatos, que já assimilaram as vantagens da estabilidade econômica,
querem. Até por conta da importância que os fundos de pensão adquiriram",
afirma Renato Boschi.
O
presidente da CUT diz que a maior organização sindical do país continua a
defender uma sociedade socialista. Até por ser um ponto que consta no estatuto
da entidade. Mas pondera: os modelos é que estão sendo questionados. Não há um
pronto, ideal. Nem o modelo soviético – "fechado, centralizador,
autoritário", diz – nem o socialismo de mercado da China, tampouco o atual
"socialismo do século XXI", capitaneado por Chávez.
"Temos
uma situação no mundo, e não só na América Latina, de pleno debate, de mudança
de paradigmas, não só dos anteriores à queda do Muro de Berlim como também do
neoliberalismo que veio depois. Todos eles caíram, ruíram", afirma Santos.
"Agora tudo está em xeque: a distribuição de renda, a sustentabilidade do
planeta e a responsabilidade daqueles que implementaram esta sociedade de
consumo e levaram ao aquecimento global e à desigualdade. Quem buscar apenas o
caminho da competição e do lucro a qualquer preço vai perder espaço."
A
pesquisa sobre as percepções das elites latino-americanas também aferiu quanto
o projeto de integração econômica encontra apoio no continente. Brasil e Chile
têm as elites menos entusiasmadas. Diante da afirmação "a solução para os
problemas sociais do país seria uma integração com os demais países da América
Latina", 41,6% dos entrevistados brasileiros e 40,3% dos chilenos
discordaram total ou parcialmente da frase.
Curiosamente,
a despeito desse ceticismo em relação a uma maior aproximação com os vizinhos,
Brasil e Chile são considerados os mais simpáticos, numa lista de 16 países,
obtendo, respectivamente, 77,1% e 66,4% de respostas "muito
simpático". No outro extremo, foram considerados "nada
simpáticos" Estados Unidos (para 45,8%), Venezuela (42,5%), Cuba (31,5%) e
Rússia (30,7%).
O perfil ideológico das elites foi aferido numa
pergunta que pedia a cada entrevistado que se posicionasse numa escala de 1 (o
máximo à esquerda) a 7 (o máximo à direita). Chile (35,8%), Bolívia (34,2%) e
Venezuela (25,8%) foram os países onde os representantes das elites mais se
declararam de direita (soma das opções 5, 6 e 7). México (18%), Brasil (13,5%)
e Argentina (6,1%) revelaram-se os menos direitistas.
Artigo publicado originapamente no
Jornal Valor Econômico Online