Aldeia Nagô
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O modesto cobrador que diz não à soberba. Por Franciel Cruz

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Franciel-Cruz

Não posso garantir com precisão se o placar marcava 9h27 ou 10h49 da madrugada desta quinta-cheira, até porque padeço da falta de relógio e de outras bugigangas eletrônicas. Porém, se há carência de exatidão neste tema numerológico, tentarei compensar pela total fidelidade aos acontecimentos.

Sim, apesar dos maledicentes tipo Pedro Ivo espalhar que é tudo culhuda, juro que sou tão ou mais fiel aos fatos do que aqueles devotos que comparecem à igreja todo diabólico dia.

E, já que entramos na seara religiosa, eis o primeiro milagre. Consegui pegar o glorioso Sussuarana R-2 praticamente vazio. Aos desinformados sobre o sistema de transporte de Soterópolis, asseguro: conseguir pegar o referido ônibus sem lotação máxima é proeza que nem a ciência mais avançada e moderna conseguirá explicar. Um verdadeiro assombro sobrenatural de almeida.

Pois bem. Além deste sortudo locutor, do motorista e do cobrador, havia apenas mais duas ou três almas penadas, escornadas e espalhadas (valei-me, minha santa aliteração) pelo buzu. Parecia até quinta-feira de cinzas.

Porém, confesso: o motivo da minha besta alegria não era só isso. Seguinte foi este. Assim que me recostei na confortável poltrona da frente, escutei o seguinte e inoxidável diálogo. De certa forma, escutei e participei.Caneta e papel na mão? Anotem.

Com aquele tradicional jeito baiano de quem lhe conhece desde pequeno, o motorista foi logo largando.

– Bacana (o bacana sou eu), tá vendo este cobrador aí?

(Lógico que eu tava vendo. Impossível não perceber aquela figura, digamos, excêntrica e com um bigode à la Sammy Davis Jr.).

Lacônico, como convém a um passageiro educado, digo.

– Prossiga, excelência.

– Você não dá nada por ele, mas é um miséravo. Bota pra fuder. Come tudo, não libera nada, principalmente as velhinhas.

Nosso Sammy Davis, que ouvia tudo sossegadamente, interrompe.

– Não é bem assim, não, papá. Digamos que tenho um certo apreço por pessoas maduras.

O motô, então, retorna à tribuna.

– Rapaz, este desinfeliz não libera ninguém. Outro dia mesmo comeu uma senhora de 70 anos, mãe de um colega nosso que trabalha na Vimbemza. (Eu sei, rebanho de sacanas, que a Vimbemza não existe mais e que a grafia correta é Vibemsa. Escrevi assim para tirar de tempo e não entregar nosso herói à ira santa do colega de profissão, que não ia ficar nada satisfeito ao saber que a sua (lá dele) genitora estava indo às vias de fato com o referido).

Mas, derivo. E, enquanto derivo, Sammy Davis interrompe novamente.

– Peraí, pai véi. Ela só tinha 63 anos.

A partir de então, diante da injustiça, pego afeição pelo Dom Ruan que comanda a catraca e saio em sua defesa.

– Porra, motô, você tá de sacanagem. A moça só tinha 63 anos e você dizendo que era 70.

O condutor da marinete, então, se reta e parte para o ataque covardemente.

– Vá, sacana, vá defendendo este canalha (canalha é uma forma carinhosa de tratamento entre amigos na Bahia) que uma hora desta é sua mãe que cai no plantão dele. E tem mais. Este monstrinho ainda costuma extorquir as coitadas.

Ao ouvir tal heresia, nosso herói estrila. E, em seguida, dá uma verdadeira aula sobre os fragmentos das relações amorosas, coisa de deixar Roland Barthes no chinelo. Ouçam com atenção.

– Motô, aí é que você se engana. Outro dia mesmo uma amiga (é assim que ele trata as vítimas) queria me dar seu voyage seminovo e eu recusei. E disse para ela: “Que é isso, mãe? Tudo o que faço é por amor”.

Sem deixar brecha para o contra-ataque, o galante, modesto e sincero cobrador prosseguiu.

– É óbvio que não foi por amor. Não apenas por isso. É que mulher é um bicho sacana da porra, véi. É capaz de ela me ver com outra, o que é meu direito, e querer pegar o carro de volta só por isso. Como sei que ela não vai passar a máquina para o meu nome, pois me quer de refém, então recuso tudo para não ficar amarrado. Afinal, no fundo, eu quero apenas uma casinha, que não tenho dinheiro para pagar motel, uma cervejinha gelada e um descanso. É lógico que, se ela se agradar do papai aqui e quiser dá uma ponta e eu estiver no momento de aperto, não vou recusar. Tenho muito defeitos, mas não sou orgulhoso nem arrogante.

Paraí, motô, ó meu ponto, véi.

Já fui Banda Aiyê.

Franciel Cruz é Jornalista

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