O nome da crise por Saul Leblon
O nome da crise não é Dilma; é dominância financeira: como bloquear a república dos acionistas? Em que mesa negociar com os depósitos em paraísos fiscais?
Exceto em regimes escravocratas, quando o subalterno não dispunha sequer da própria vida, a distância entre ricos e pobres nunca foi tão pronunciada na trajetória da humanidade.
Assiste-se a uma desconexão bruta, física e estrutural entre os extremos. A exploração do trabalho continua a vigorar como a ponte entre os dois mundos, porém não mais explícita no confronto entre a figura do patrão e a do assalariado.
As margens nem mesmo se enxergam mais.
Onde fica a sede da entidade ubíqua chamada fuga de capitais?
Em que rodovia é possível erguer uma barreira contra a república dos acionistas?
Em que mesa negociar a pauta de reivindicações aos depósitos em paraísos fiscais?
O poder do capital se camuflou em circuitos inefáveis e sem rosto.
A um toque de botão é capaz de desencadear ordens de compra e venda que podem esfarelar o comando de um governo; reduzir uma nação a uma montanha desordenada de impossibilidades.
A história das nações, em certa medida, foi sequestrada pela campainha dos pregões; a abertura e o fechamento dos mercados de câmbio emitem pronunciamentos diários em cadeia mundial, como uma junta militar dissimulada em cifrões.
Nunca como hoje a luta pela vida digna remeteu tão linearmente ao controle do poder de Estado.
Único interlocutor capaz de dialogar com o ectoplasma da riqueza sem rosto, o Estado, ele próprio, foi quase integralmente capturado em suas entranhas pelos mercados.
Sem um vigoroso aggiornamento da democracia participativa nem mesmo ele é páreo para os interditos dos mercados.
A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada por excedentes que ampliaram a margem de manobra do governo e amorteceram a percepção dessa polaridade extrema.
Os governos do PT souberam aproveitar o atalho para promover avanços indiscutíveis na perversão social criada pelo capitalismo brasileiro. Dobraram a aposta nessa via durante a crise deflagrada pela desordem neoliberal, em 2008.
Os dados são conhecidos. Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-los, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar aquilo que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.
Dê-se a isso o nome técnico que for. O que se mira é a regressão das conquistas sociais, salariais e políticas dos últimos doze anos.
As palavras do ministro Marco Aurélio Garcia no encontro estadual do PT, neste sábado, sintetizam as consequências deste epílogo conturbado: ‘Tenho absoluta convicção de que encerramos um ciclo importante da nossa história”, afirmou. “Vivíamos um momento de ganha-ganha. Todos podiam ganhar, os trabalhadores, os pobres, as classes médias, até os industriais e banqueiros. Havia um reordenamento da economia brasileira que permitia que todos ganhassem’.
‘Acabou’, advertiu o ministro para reverberar a gravidade do imperativo com uma assertiva não menos categórica: ‘As classes dominantes estão em clara ruptura conosco e, se não tomarmos cuidado, parte da nossa base social histórica também estará. O PT precisa urgentemente retornar a seus compromissos históricos’.
A chance dessa travessia não diz respeito apenas ao PT, no qual Marco Aurélio pontua a simbologia de todo o campo progressista.
Ela depende, na verdade –como tem insistido Carta Maior— da convergência de uma frente ampla dotada de força capaz de obter o consentimento majoritário da sociedade para um projeto que ordene o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
A falsificação dessa travessia em ligeirezas e amenidades que se satisfazem em fulanizar problemas e soluções reflete a ansiedade diante das provas cruciais.
Mas o gigantismo dos interesses a afrontar não pode ser subestimado pela boa intenção das soluções simplistas.
A muralha a vencer demanda a consciência materializada em amplo engajamento social. Não se trata de defenestrar Levy ou Cunha.
Trata-se de sobrepor uma hegemonia a outra, cuja dominância nunca foi tão entranhada e, ao mesmo tempo, dissimulada, fluida, ardilosa e, sempre que necessário, virulenta e golpista.
Um passo necessário dessa construção consiste em dar um nome ao invisível. Implica ao mesmo tempo proceder à ruptura com aquilo que na clarividente síntese de Marco Aurélio Garcia ‘acabou’.
O nome da crise é a riqueza que não reparte.
Não apenas o patrimônio acumulado.
Mas sobretudo as estruturas que a realimentam e a protegem com salvaguardas inoxidáveis.
Qualquer coisa menos que isso será insuficiente para evitar o rebote do lixo da história para o qual Marco Aurélio adverte. E o que é suficiente excede em muito a capacidade da iniciativa unilateral de qualquer força isolada.
A riqueza que não reparte é ontologicamente avessa à construção de um destino compartilhado, exceto se induzida a isso por uma força de coordenação assentada em ampla legitimidade social e democrática.
Por mais que dissimule o rosto da sabotagem, seu rastro planetário deixa as marcas da soberba autorreferente que se avoca igualmente apátrida e autorregulável.
Uma pegada sugestiva que atiça a prontidão das consciências é o consumo de luxo.
Ele atingirá US$ 3 trilhões no planeta este ano.
Os vips brasileiros são reconhecidos em Paris ou em Miami como um dos mais lucrativos braços desse nicho nababesco.
Jatinhos, iates, mansões, jóias, arte, rejuvenescimento estético, turismo de experiências únicas abastecem as gôndolas globais do supermercado seleto.
Seu tíquete de compra anual equivale ao PIB da Alemanha, a quarta maior potência econômica do mundo, informa o jornal El País.
Não é que pareça excessivo, é que estamos de fato no reino do descabido. Do socialmente nefasto.
Apenas 85 membros desse bunker, os mais ricos entre os muito ricos, segundo a respeitada Oxfam (http://www.oxfam.org.uk/ ) têm um patrimônio de US$ 1,7 trilhão.
Um pecúlio equivalente ao da metade mais pobre da humanidade formada por 3,5 bilhões de homens, mulheres, jovens, idosos e crianças.
Para quem acha que o consumo anual de U$ 3 trilhões é over, a Oxfam avisa: se abrirmos um pouco mais o foco para abranger o famoso 1% carimbado pelos ‘occupy’, vamos nos deparar com um patrimônio de US$ 110 trilhões.
Quase duas vezes o PIB anual do planeta.
Seus detentores podem queimar US$ 3 trilhões por ano sem pestanejar.
Embala-os a certeza de que aplicações financeiras em praças generosas – a do Brasil paga os juros reais mais elevados do globo—cuidarão de regenerar seus portfólios, mantendo-os mais lucrativos do que qualquer destinação produtiva do dinheiro –como mostrou Thomas Pikety.
O elo entre essa certeza e o resto da humanidade é um fosso que só faz crescer e agora abre fendas desconcertantes mesmo nas nações mais ricas.
Dados recentes da insuspeita OCDE mostram que entre seus 34 países membros a parcela dos 10% mais ricos detém hoje 50% da riqueza; os 40% mais pobres ficam com apenas a 3% dela.
A contrapartida chocante é que em apenas quatro anos da crise mundial, de 2007 a 2011, a população que subsiste abaixo da linha de pobreza aumentou de 1% para 9,4% nesse mosaico.
Uma exceção à tendência regressiva planetária , diz o relatório divulgado na semana passada, chama-se América Latina e Caribe.
A desigualdade aí, que era um elemento da natureza, deixou de sê-lo desde o final dos anos 90, quando passou a cair.
O Brasil, cujo piso salarial registrou um aumento real de 70% desde 2003, é a principal estrela dessa dissonância.
O país apostou que um esforço de distribuição de renda— conciliador em relação aos detentores da riqueza, graças ao excedente conjuntural propiciado pelo boom das commodities— permitiria desencadear um ciclo de crescimento mais rápido e sustentável.
Esse, o modelo que acabou, como adverte Marco Aurélio Garcia.
Desequilíbrios macroeconômicos reais, como o câmbio valorizado, que asfixiou a indústria pela avalanche das importações, explicam parte do colapso.
A resistência à desordem neoliberal, por sua vez, exauriu recursos públicos que se esgotaram antes que a crise iniciada em 2008 desse lugar a um novo ciclo de crescimento.
O conjunto explica em grande arte os impasses da economia e da democracia nos dias que correm.
Mas não explica tudo.
Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca à encarnação financeira atual, subestima aspectos cruciais da encruzilhada brasileira.
Corre o risco de subestimar, também, a contagem regressiva alertada no apelo de Marco Aurélio Garcia ao retorno às raízes históricas do PT.
Ademais dos percalços macroeconômicos, a verdade é que foi a incipiente tentativa petista de deslocar o capital parasitário para a produção que acendeu o estopim do confronto em marcha.
A espoleta acendeu a ira de interesses que tomaram gosto pelo vício de ganhar sem agregar riqueza à nação, nem se submeter aos compromissos com o bem comum da sociedade.
Disso não abdicarão facilmente, como tampouco renunciarão ao fastígio do luxo em favor da parcimônia.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, o Brasil atingiu o estado das artes nessa matéria.
A coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada aos circuitos da alta finança, amesquinhou a democracia brasileira, privando-a de instrumentos para dar à riqueza a sua finalidade social.
A regressividade inerente a esse processo está promovendo uma mutação individualista acelerada nas relações sociais, a exemplo do que se passa no resto mundo.
O locaute do capital na frente do investimentos –repita-se, ademais dos gargalos macroeconômicos– é o sintoma desse esgarçamento profundo entre um pedaço da riqueza e o destino coletivo da sociedade.
A greve do capital contra a ‘Dilma intervencionista’ começou aí quando a taxa de juro real foi comprimida a um piso histórico de 3,3% (no segundo governo FHC ela ficou em 18,5%,por exemplo; foi de 11,7% no segundo Lula).
O governo pode ter cometido tropeços nessa ousada operação de desbloquear a avenida do investimento removendo a barreira do juro alto, para induzir o fluxo à atividade produtiva.
Mas talvez o maior deles tenha sido subestimar a musculatura política necessária para deslocar interesses descomunais situados do outro lado da pista.
Sem o discernimento engajado da sociedade para enfrentar a riqueza que não reparte, a façanha estava fadada a tropeçar na assimetria das forças em confronto.
A fixação da Selic, a taxa básica de juro da economia, é a ordem unida da coalizão rentista
É daí que o mercado parte para colonizar o cálculo econômico de todos os demais setores, alinhando-os aos padrões de retorno da ganância sem termo.
Vale a pena conhecer um pouco a amplitude dessa contaminação.
Em entrevista ao jornal Valor, o economista francês Pierre Salama apontou um desdobramento dessa irradiação: a explosão dos dividendos que se transformou, ela também, em um obstáculo ao investimento produtivo.
Pressionados a entregar fatias crescentes do lucro aos acionistas, os ‘managers’ corporativos o fazem em detrimento da retenção de lucro para investimento.
A observação de Salama desvela uma dimensão pouco discutida da desindustrialização brasileira.
Ela explicaria, em parte também, segundo ele, ‘os efeitos indiretos sobre a primarização da economia’.
Outra consequência igualmente corrosiva destacada pelo economista: ‘Se você não tem uma melhora no nível da produtividade porque não tem uma taxa de investimento importante, a única maneira de ser mais competitivo é forçando a queda do salário direto e indireto’, diz .
Como?
Desmontando direitos sociais dos trabalhadores –‘o custo Brasil’, ora sob fogo cerrado.
Salama encerrou a entrevista como se desse uma aula de alternativas consequentes ao receituário ortodoxo agora vendido como fatalidade.
É forçoso coibir a ‘financeirização’, sentenciou para indicar duas vias matriciais: a) adotar um desassombrado controle de capitais e b) prmover uma reforma tributária que faça o rentista pagar mais impostos –inclusive os acionistas, isentos num Brasil que corta recursos da educação para equilibrar o orçamento fiscal.
O mesmo se dá na esfera global.
A desregulação dos mercados financeiros delegou ao sistema bancário internacional o poder supranacional de mobilizar e transferir riquezas, manipular e sabotar moedas.
Tudo blindado pela cumplicidade nem sempre passiva das agências de risco e dos organismos multilaterais.
É dessa usina que se originam os números obscenos do consumo de luxo, as cifras estonteantes dos depósitos em paraísos fiscais –onde a clientela brasileira detém a quarta maior riqueza depositada– e os valores desconcertantes de capitais ociosos, num mundo carente de investimento e empregos.
Uma das maiores fontes de pressão pela elevação da taxa de juro nos EUA parte dos detentores da riqueza sedentária.
Desde a crise de 2008 ela se debate confinada entre o baixo retorno e a elevada liquidez (o juro norte-americano oscila entre zero e negativa desde 2008 e o Fed injetou US$ 1,5 trilhão no mercado para salvar o capitalismo dele mesmo).
O cavalo financeiro escoiceia a estrebaria acanhada exigindo de volta o pasto gordo e indiviso.
Bancos e por consequência seus acionistas veem suas margens naufragarem, afogados em depósitos sem alternativa de aplicação lucrativa.
No primeiro trimestre deste ano os depósitos totais no Morgan, por exemplo, subiram para US$ 1,3 trilhão nos EUA (aumento de US$ 4,5 bilhões em relação a dezembro de 2014); os do Wells Fargo somaram US$ 1,2 trilhão; aumento de US$ 28 bilhões no mesmo período. No circuito dos bancos sombra, onde impera o vale tudo em busca de retornos graúdos, há um tsunami de US$ 75 trilhões em ativos, segundo o Financial Stability Board.
A pergunta é: se a roleta do cassino travou, por que o aluvião não migra então para o investimento produtivo?
Pela simples e dura razão de que a superprodução de capitais é a contraface indissociável da escassez de demanda gerada pela precarização do trabalho no bojo da financeirização de toda a economia.
São realidades univitelinas, e se devoram no ventre do capitalismo desregulado.
Desse xeque-mate intrínseco à própria dominância financeira da época a sociedade não se livrará pela lógica de mercado.
O PT tentou um caminho intermediário.
Ao incentivar keynesianamente a demanda — e ensaiar uma fugaz redução da taxa de juro em 2013– impôs uma coordenação light, confiante na regeneração do capital rentista em alavanca produtiva.
Enquanto o lubrificante da alta das commodities amaciou o conflito, a tentativa foi tolerada.
Mas a verdade é que a resposta esperada nunca aconteceu.
Pelo menos não na escala necessária –nem na indústria (culpa do câmbio, em parte), nem na infraestrutura (culpa do intervencionismo da Dilma, alega-se).
O fato de não ter acontecido impõe uma revisão do keynesianismo que descuidou do câmbio como o padeiro descuida do fermento e da lenha no forno.
Mas não basta.
E dificilmente teria bastado sem que se tivesse providenciado –até para tornar viável a maxidesvalorização competitiva— aquilo que continua a faltar.
Falta a ferramenta política dotada de discernimento claro sobre a engrenagem a afrontar.
O capitalismo quanto mais dá certo, mais dá errado.
Seu próprio movimento de expansão espreme e estreita o alicerce social do qual, paradoxalmente, extrai sua valorização. Por isso sobra capital e o consumo de luxo explode, enquanto a sociedade carece de investimento e a demanda patina.
O nome da crise, portanto, não é Dilma, ou voluntarismo ‘lulopetista’, como quer o sociólogo da dependência desfrutável.
O nome da crise é a dominância financeira que exacerbou mecânica da riqueza que não reparte.
Não existe mágica: o antídoto é a coordenação política da economia pela democracia social.
Isso não exime o PT da delicada travessia de autocrítica.
Ou como exortou Marco Aurélio Garcia: ‘é preciso, urgentemente, retornar às raízes históricas’.
Acrescente-se, porém: o retorno só terá sucesso ao lado de outras forças e movimentos, sem os quais será muito improvável reunir o fôlego necessário para chegar onde é preciso. No tempo curto tempo que resta.
Artigo publicado originalamente em http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-nome-da-crise/33562#