O poder permanente de derrubar governos por Maria Inês Nassif
As ondas de pânico criadas em torno de casos de corrupção, desde Collor,
têm servido mais a desqualificar a política do que propriamente
moralizar a nossa democracia. Apesar da imensa caça às bruxas movida
pela mídia contra os governos, em nenhum momento essa sucessão de
escândalos, reais ou não, incluíram seriamente a opinião pública num
debate sobre a razão pela qual um sistema inteiro é apropriado pelo
poder privado, e, principalmente, porque não se questiona essa
apropriação.
A
corrupção do sistema político merece uma reflexão para além das manchetes dos
jornais tradicionais. Em especial neste momento que o país vive, quando a nova
democracia completou 26 anos e a política, que é a sua base de representação,
se desgasta perante a opinião pública. Este é o exato momento em que os valores
democráticos devem prevalecer sobre todas as discordâncias partidárias, pois
chegou no limite de uma escolha: ou diagnostica e aperfeiçoa o sistema
político, ou verá sucumbi-lo perante o descrédito dos cidadãos.
O país pós-redemocratização passou por um governo que foi um fracasso no
combate à inflação, um primeiro presidente eleito pelo voto direto pós-ditadura
apeado do poder por denúncias de corrupção, dois governos tucanos que, com uma
política antiinflacionária exitosa, conseguiram colocar o país no trilho do
neoliberalismo que já havia grassado o mundo, e por fim dois governos do PT, um
partido de difícil assimilação por parcela da população. Nesse período, a mídia
incorporou como poder próprio o julgamento e o sentenciamento moral, numa
magnitude tal que vai contra qualquer bom senso.
Este é um assunto difícil porque pode ser facilmente interpretado como uma
defesa da corrupção, e não é. Ou como questionamento à liberdade de imprensa, e
está longe disso. O que se deve colocar na mesa, para discussão, é até onde vai
legitimidade da mídia tradicional brasileira para exercer uma função
fiscalizadora que invade áreas que não lhes são próprias. Existe um limite
tênue entre o exercício da liberdade de imprensa na fiscalização da política e
a usurpação do poder de outras instituições da República.
Outra questão que preocupa muito é que a discussão emocional, fulanizada,
mantida pelos jornais e revistas também como um recurso de marketing, têm como
maior saldo manter o sistema político tal como é. É impossível uma discussão
mais profunda nesses termos: a escandalização da política e a demonização de
políticos trata-os como intrinsicamente corruptos, como pessoas de baixa moral
que procuram na atividade política uma forma de enriquecimento privado. Ninguém
se pergunta como os partidos sobrevivem mantidos por dinheiro privado e que
tipo de concessão têm que fazer ao sistema.
Desde Antonio Gramsci, o pensador comunista italiano que morreu na masmorra de
Mussolini, a expressão "nenhuma informação é inocente" tem pontuado
os estudos sobre o papel da imprensa na formulação de sensos comuns que ganham
a hegemonia na sociedade. Gramsci já usava o termo "jornalismo
marrom" para designar os surtos de pânico promovidos pela mídia, de forma
a ganhar a guerra da opinião pública pelo medo.
No Brasil atual, duas grandes crises de pânico foram alimentadas pela mídia
tradicional brasileira no passado recente. Em 2002, nas eleições em que o PT
seria vitorioso contra o candidato do governo FHC, a mídia claramente mediou a
pressão dos mercados financeiros contra o candidato favorito, Luiz Inácio Lula
da Silva. Tratava-se, no início, de fixar como senso comum a referência
"ou José Serra [o candidato tucano] ou o caos".
Depois, a meta era obrigar Lula e o PT ao recuo programático, garantindo assim
a abertura do mercado financeiro, recém-completada, para os capitais
internacionais. Em 2005, na época do chamado "mensalão", o discurso
do caos foi redirecionado para a corrupção. Politicamente, era uma chance
fantástica para a oposição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: a única
alternativa para se contrapor a um líder carismático em popularidade crescente era
tirar de seu partido, o PT, a bandeira da moralidade. A ofensiva da imprensa,
nesse caso, não foi apenas mediadora de interesses. A mídia não apenas mediava,
mas pautava a oposição e era pautada por ela, num processo de retroalimentação
em que ela própria [a mídia] passou a suprir a fragilidade dos partidos
oposicionistas. Ao longo desse período, tornou-se uma referência de poder
político, paralelo ao instituído pelo voto.
Eleita Dilma Rousseff, a oposição institucional declinou mais ainda, num país
que historicamente voto e poder caminham juntos, e ao que tudo indica a mídia
assumiu com mais vigor não apenas o papel de poder político, mas de bancada
paralela. Dilma está se tornando uma máquina de demitir ministros. Nas
primeiras demissões, a ofensiva da mídia deu a ela um pretexto para se livrar
de aliados incômodos, nas complicadas negociações a que o Poder Executivo se vê
obrigado em governos de coalizão num sistema partidário como o brasileiro.
Caiu, todavia, numa armadilha: ao ceder ministros, está reforçando o poder
paralelo da mídia; em vez de virar refém de partidos políticos que, de fato,
têm deficiências orgânicas sérias, tornou-se refém da própria mídia.
As ondas de pânico criadas em torno de casos de corrupção, desde Collor, têm
servido mais a desqualificar a política do que propriamente moralizar a nossa
democracia. Mais uma vez, volto à frase de Gramsci: não existe notícia
inocente. O Brasil saído da ditadura já trazia, como herança, um sistema
político com problemas que remontam à Colônia. O compadrio, o mandonismo e o
coronelismo são a expressão clássica do que hoje se conhece por nepotismo,
privatização da máquina pública e falha separação entre o público e o privado.
A política tem sido constituída sobre essas bases e, depois de cada momento
autoritário e a cada período de redemocratização no país, seus problemas se
desnudam, soluções paliativas são dadas e a cultura fica. Por que fica? Porque
é a fonte de poderes – poderes privados que podem se sobrepor ao poder público
legitimamente constituído.
O sistema político é mantido por interesses privados, e é de interesse de
gregos e troianos que assim permaneça. Segundo levantamento feito pela Comissão
Especial da Câmara que analisa a reforma política, cerca de 360 deputados, em
513, foram eleitos porque fizeram as mais caras campanhas eleitorais de seus
Estados. Com dinheiro privado. Em sã consciência, com quem eles têm
compromissos? Eles apenas tiveram acesso aos instrumentos midiáticos e de
marketing político cada vez mais sofisticados porque foram financiados pelo
poder econômico. É o interesse privado quem define se o dinheiro doado aos
candidatos e partidos é lícito ou ilícito.
O dinheiro do caixa dois passou a fazer parte desse sistema. Não existe nenhum
partido, hoje, que consiga se financiar privadamente – como define a legislação
brasileira – sem se envolver com o dinheiro das empresas; e são remotíssimas as
chances de um político financiado pelo poder privado escapar de um caixa dois,
porque normalmente é o caixa dois das empresas que está disponível. Num sistema
eleitoral onde o dinheiro privado, lícito e ilícito, é o principal financiador
das eleições, ocorre a primeira captura do sistema político pelo poder privado.
E isso não acaba mais.
Esse é o âmago de nosso sistema político. A democratização trouxe coisas
fantásticas para a política brasileira, como o voto do analfabeto, a ampla
liberdade de organização partidária e a garantia do voto. Mas falhou no
aperfeiçoamento de um sistema que obrigatoriamente teria de ser revisto, no momento
em que o poder do voto foi restabelecido pela Constituição de 1988.
Num sistema como esse, por qualquer lado que se mexa é possível desenrolar
histórias da promiscuidade entre o poder público e o dinheiro privado. Por que
isso não entra, pelo menos, em discussão? Acredito que a situação permaneça
porque, ao fim e ao cabo, ela mantém o poder político sob o permanente poder de
chantagem privado. De um lado, os financiadores de campanhas se apoderam de
parcela de poder. De outro, um sistema imperfeito torna facilmente capturável o
poder do voto também por aparelhos privados de ideologia, como a mídia. Como
nenhuma notícia é inocente, a própria pauta leva a relações particulares entre
políticos e o poder econômico, ou entre a máquina pública e o partido político.
A guerra permanente entre um governo eleito que tem a oposição de uma mídia
dominante é alimentada pelo sistema.
O apoderamento da imprensa é ainda maior. Se, de um lado, a pauta expressa seu
imenso poder sobre a política brasileira, ela não cumpre o papel de apontar
soluções para o problema. Não existe intenção de melhorá-lo, de atacar as
verdadeiras causas da corrupção. Apesar da imensa caça às bruxas movida pela
mídia contra os governos, em nenhum momento essa sucessão de escândalos, reais
ou não, incluíram seriamente a opinião pública num debate sobre a razão pela
qual um sistema inteiro é apropriado pelo poder privado, inclusive e
principalmente porque não se questiona o direito de apropriação do poder
público pelo poder privado. A mídia tradicional não fez um debate sério sobre
financiamento de campanha; não dá a importância devida à lei do colarinho
branco; colocou a CPMF, que poderia ser um importante instrumento contra o
dinheiro ilícito que inclusive financia campanhas eleitorais, no rol da
campanha contra uma pretensa carga insuportável de impostos que o brasileiro
paga.
Pode fazer isso por superficialidade no trato das informações, por falta de
entendimento das causas da corrupção – mas qualquer boa intenção que porventura
exista é anulada pelo fato de que é este o sistema que permite à imprensa
capturar, para ela, parte do poder de instituições democráticas devidamente
constituídas para isso.
Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br