Aldeia Nagô
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O projeto de João Henrique para a cidede Baixa por Lysie Reis

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo e
com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo”. Pois é, acho que todo mundo
se lembra da singela música que ouvíamos na década de 80 na voz de um Toquinho
já sem o seu Vinícius.





O desenho que arranca suspiros agora tem três dimensões
e não é feito por qualquer um, mas sim por um ser humano que domina a chamada
modelagem gráfica em 3D (três dimensoes), possível graças aos aplicativos do
“Computer Aided Design”, o CAD. O esquema fica assim: de um lado, quem define o
planejamento, seja de uma casa ou de uma cidade, e do outro, quem receberá e
conviverá como  o objeto representado.  Se aquilo for construído, é
claro. Ah, tem o desenhista-cadista também, profissional da nova era, que no
caso em questão, não apita nada.

Não vou dar mais voltas porque o que eu quero falar é sobre o
desenho proposto pelo João Henrique para a península Itapagipana da cidade de
Salvador. Exatamente, aquele lugar que a gente vai tomar o sorvete na Ribeira,
onde passa a procissão do Nosso Senhor do Bonfim em direção à igreja do
mesmo nome, onde está o Forte do Mont Serrat. Mas é lá também que ocorrem
outras diversas práticas sociais se movimentam, se impõem na paisagem que não
fica estática e que obedece a diversas ordens e desordens do cotidiano da
cidade real.

Não defendo aqui que não haja um desenho para este espaço que, tal
como a cidade quase toda, clama por proposições técnicas, adequações para a
circulação de todas as pessoas, áreas verdes, utilização dos imóveis
abandonados para fins sociais, especialmente moradia digna para baixa renda.
Enfim, é notória a necessidade de (re)arrumar a casa-cidade e de nos educarmos
para vivermos em territórios múltiplos e democráticos. Mas de quem é esta casa?
Ao ver o filminho que vem nos seduzir no Yotube, me instiga saber: para quem é
esta reforma? Quem foi ouvido, quem opinou, quem pôde desenhar, desejar,
intentar e sonhar junto com estes planejadores. Você conhece algum morador
local que foi chamado para alguma assembléia pública sobre  o assunto?

O planejamento territorial foi intensamente renovado no Brasil nos
últimos anos: a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade estabeleceram novas
regras e instrumentos que devem ser implementados. Em 2003, foi criado o
Ministério das Cidades, significando o fortalecimento da idéia de que os
assuntos de política urbana e territorial local devem ser tratados de forma
prioritária no país. Também em 2003, a Conferência das Cidades instituiu o
Conselho Nacional das Cidades, instância de participação que faz parte das
principais ações do Ministério. A partir dessa estrutura, incentiva-se a
criação de espaços de participação para o planejamento territorial nos níveis
estadual e municipal.

Nessa perspectiva, o dispositivo legal regulamenta aquilo que, no
âmbito do urbanismo contemporâneo, já é conhecido: a ineficácia das ações
que excluem das discussões aquele que distintivamente vive o lugar nas suas
dimensões cotidianas. Vale destacar que o ápice da concordância sobre a
gestão participativa ocorreu em 1996 no Habitat II. Nesse fórum, foram
destacadas as vantagens gerenciais e sociais da participação popular, sendo
esta, ao final, uma prática amplamente recomendada. Houve um alerta sobre a
manipulação política das metodologias implementadas que levam as populações excluídas
a interiorizarem o estigma da incapacidade e dependência, o que as faz
apresentar, diante dos métodos tradicionais de elaboração técnica de
planejamento, dificuldade de cognição e inexperiência nas ações democráticas.

O desenho proposto pelo atual Prefeito vem do futuro, mas é um
ATRASO. Traz linhas arrojadas, edificações no estilo “Dubai” e muitas, muitas
árvores, barcos ancorados nas diversas marinhas mas, ninguém anda pelas
ruas…..não há gente, mesmo nas panorâmicas que se aproximam ou nas vistas
verticais. São criados signos agressivos, inertes, que não me disseram
absolutamente nada sobre o local, que eu conheço e amo desde que cheguei nesta
cidade. Repito: há desenhos a serem feitos para esta fatia de urbano, e que
podem sim utilizar todos os programas que a Microsoft já inventa para este fim.
A tecnologia não é algo que o planejamento deva descartar, ao contrário. O que
é assustador é impor este desenho a um morador remanescente de uma palafita, ou
de um dos barracos desta área, que pode se sentir seduzido e aplaudir de pé
esta estratégia de convencimento, onde a política urbana age mascarando seu
principal objetivo: vender o espaço desta cidade para grupos que nos empurram
para fora da cidade “deles”. Quem pode hoje pagar para apreciar a vista que tem
os freqüentadores do Trapiche Adelaide? Quem pode entrar nas 25 pousadas que se
amontoam no lado que oferece vista ao mar no bairro do Santo Antônio Além do
Carmo?

Não há utopia, é possível que a prefeitura contribua para a
organização das diversas vozes, a participação deve ocorrer de forma ampla,
seja no acompanhamento das obras em andamento, bem como na discussão sobre um
desenho integrado de urbanização, com a locação de equipamentos urbanos
(abastecimento de água, serviços de esgotos, energia elétrica, coletas de águas
pluviais, rede telefônica) e comunitários (educação, saúde, lazer e similares e
as áreas verdes). Tudo isto está previsto na Lei do Parcelamento do Solo, Lei
6.766/79. Mas é só uma lei… você pensou agora. A falta desses equipamentos
causa um impacto sem precedentes para as pessoas que habitam um determinado
espaço da cidade, visto serem fundamentais à fixação das pessoas dentro da
malha urbana.

Se os arquitetos e urbanistas são os profissionais qualificados a
propor, com suas réguas, compassos e programas de computação, a modificação do
espaço, então que eles passem a encarar a sociedade local como seus clientes. É
a hora e a vez de dar sentido, não só às leis, mas aos montes de teoria que
lemos sobre a participação da comunidade na sonhada “cidade para todos”.

Lysie Reis

Arquiteta e Urbanista

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