Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

O que disse ‘o político mais popular da Terra’, na Newsweek?

11 - 15 minutos de leituraModo Leitura

A mídia brasileira deu grande repercussão à reportagem da revista americana Newsweek sobre o presidente Lula, sob o título O político mais popular da Terra. O Google Notícias, na noite desta quarta-feira (23), indicava 540 conteúdos sobre o tema. Mas por que ninguém mostrou o longo duelo que foi a entrevista de Lula à Newsweek? Veja aqui a entrevista e tire suas conclusões.







A revista, que publicou a entrevista no seu site, desmancha-se em elogios ao
"espetacular trabalho" do presidente do Brasil. Não faltam as
referências de costume ao pobre menino nordestino que até os sete anos não
sabia o que era um pão.

O título é tirado da hoje famosa tirada do presidente Barack Obama numa reunião
do G20 em abril, em que o chefe da Casa Branca chamou Lula de "o
cara". O "gancho" foi a presença do governante brasileiro em
Nova York, onde ele abriu a Assembléia Geral da ONU.

Porém a revista, que serviu de modelo para Victor Civita criar a Veja no
Brasil, não está mudando de "lado", para usar uma expressão cara a
Lula. Basta ler a entrevista, a cargo do premiado jornalista Mac Margolis,
correpondente da Newsweek no Rio de Janeiro, escalado para espremer
"o cara" com perguntas espinhosas, em busca de respostas de cedência
ou pelo menos de contemporizaçã o.

Lula foi inquirido sobre os méritos do mercado na crise econômica, as
excelências das privatizações do governo Fernando Henrique, o "controle
estatal" sobre o pré-sal, os compromissos do Brasil na cúpula climática em
Copenhague e, no fim, claro, o "estridente" presidente venezuelano
Hugo Chávez, acusado de inimigo da democracia ligado a gangs de vândalos.

Veja a íntegra da entrevista publicada. Julgue as perguntas. E confira como foi
que Lula se saiu.

Newsweek:Quando o senhor tomou posse, o Brasil era enxergado como
uma promessa não realizada, e a última das nações do Bric. Agora o Brasil é
considerado uma estrela entre os mercados emergentes. O que aconteceu?

Luiz Inácio Lula da Silva: Ninguém respeita ninguém que não respeita a
si mesmo. E o Brasil sempre se comportou como um país de segunda classe. Nós
sempre dissemos a nós mesmos que éramos o país do futuro e o celeiro do mundo.
Mas nós nunca transformamos essas qualidades em algo concreto. Em um mundo
globalizado você não pode ficar parado. Tem que pegar a estrada e vender o seu
país.

Então nós decidimos fazer do fortalecimento do Mercosul (o bloco comercial
sul-americano) uma prioridade, e aprofundamos nossas relações com a América
Latina em geral. Priorizamos o comércio com a África e entramos agressivamente
no Oriente Médio. Hoje nossa balança comercial é altamente diversificada.

Isso nos ajudou a amortecer o impacto da crise econômica. Sofremos bem menos
que todos esses países que concentraram todo o seu comércio em um ou outro
bloco econômico. Tudo isso criou um laço entre o Brasil e outros países e hoje
estamos em pé de iigualdade nas relações internacionais. Ao mesmo tempo eu
acredito que as nações desenvolvidas começaram a entender que a situação
mundial era tão séria que elas não seriam capazes de resolver todos os
problemas sozinhas. O Brasil foi convidado pela primeira vez para o G8 (o grupo
dos países ricos) em 2003. Agora estas são relações instituídas. Estamos
pedindo uma reforma do Conselho de Segurança da ONU. Isto nós ainda não
conseguimos, mas vamos conseguir.

Newsweek:O sucesso do Brasil em pilotar a crise econômica mudou o
enfoque dos investidores?

Lula: Eu vou lhe dar um exemplo. No início da crise, as matrizes da
indústria automobilística mandaram todo mundo reduzir a produção, reduzir os
estoques e remeter recursos. Mais tarde eles chamaram os brasileiros para que
explicassem que milagre eles haviam realizado, ao recuperar tão depressa os
seus mercados.

Não houve milagre. Tínhamos um mercado interno forte. Tínhamos consumidores que
queriam comprar carros. Reduzimos parte dos impostos sobre as vendas e pedimos
Pas empresas que oferecessem crédito em condições favoráveis. O resultado é que
estamos batendo recorde atrás de recorde em vendas de carros no Brasil.

O mesmo acontece com geladeiras, fogões, máquinas de lavar, e com computadores
e a construção de moradia. Se todos os países tivessem feito isso tão rápido
como o Brasil e a China fizeram, certamente o mundo poderia emergir da crise
mais depressa. Já estamos começando a ver sinais de recuperação. Se eu lhe
disser que este ano vamos gerar um milhão de empregos você provavelmente não
vai acreditar. Mas espere só os números em dezembro sobre quantos empregos
vamos criar no setor formal.

Newsweek:Quais são as lições para outros países?

Lula: A grande lição para todos é que o Estado tem um importante papel a
jogar, e tem grande responsabilidade. Não queremos o Estado para gerir
negócios. Mas ele pode ser um indutor do crescimento e pode trabalhar em
harmonia com a sociedade. No Brasil, graças a Deus, temos um sistema financeiro
sólido e bancos públicos com um importante papel na oferta de crédito. Estes
foram os bancos que garantiram que a crise não fosse tão ruim quanto foi em
outros países.

Newsweek:Não foi também porque o mercado brasileiro era forte?

Lula: Foi um mérito do trabalho duro, por parte do setor privado e do
governo. Eu não aceito a ideia de que quando as coisas vão bem o mérito vai
para o setor privado e quando as coisas vão mal a culpa é do governo. Ninguém
neste país teve um papel mais ativo que eu tive em vender produtos prasileiros.
Ninguém impulsionou as empresas brasileiras mais do que eu impulsionei. É assim
que construimos uma grande nação.

Newsweek:O senhor frequentemente critica o processo de
privatização. Porém graças à venda das empresas estatais até os brasileiros mais
pobres têm celulares, e as ex-estatais como a Vale se tornaram vencedoras sob
propriedade privada.

Lula: Mas o Estado poderia ter feito a mesma coisa.

Newsweek: Só que não fez.

Lula: Não fez porque a elite brasileira usava as empresas públicas para seus
próprios fins. Quando você faz assim, qualquer companhia quebra, em qualquer
lugar do mundo. Eu penso que as privatizações foram um erro. Antes de eu tomar
posse, a Petrobras estava investindo R$ 250 milhões (US$ 139 milhões) em
prospecção. Hoje estamos investindo cerca de US$ 560 bilhões. A descoberta de
petróleo na camada do pré-sal , nas águas profundas do oceano, não foi um golpe
de sorte. Foi o resultado de investimento. Só foi preciso investir
corretamente.

Mas eu não sou de ficar remoendo o passado. Você nunca vai me ouvir falar em
reestatizar uma empresa. O que está feito está feito e vamos seguir adiante.

Newsweek:O Brasil consegue manter seu compromisso com uma energia
limpa, com todos os pesados investimentos necessários para extrair o petróleo
do pré-sal?

Lula: Iremos usar o dinheiro do petróleo para ajudar a explorar energia
limpa. As duas (a petrolífera e a renovável) não são incompatíveis.

O Brasil é um dos poucos países com um enorme potencial de energia limpa,
renovável. A Petrobras no ano passado criou uma empresa de biodiesel. Estamos
trabalhando no desenvolvimento de plataformas hidreléticas que irão
simplesmente usar o fluxo do rio para gerar energia. Os trabalhadores irão de
helicóptero para a estação geradora, como vão para uma plataforma petrolífera
no mar. As plataformas serão rodeadas pela floresta, para reduzir o impacto
ambiental. O Brasil tem a responsabilidade de mostrar ao mundo que é cada vez
mais viável usar uma energia que não polui o mundo. Nossa matriz energética vai
se tornar firmemente mais limpa.

Newsweek:O Brasil concorda com reduções na emissão de gases do
efeito estufa na próxima rodada da mudança climática, em Copenhague?

Lula: Queremos construir com outros países uma proposta que seja
compatível com a capacidade de cada um, encontrar compromissos apropriados a
cada país. O Brasil apoiará a criação de um fundo para estimular o sequestro de
carbono pelas nações mais pobres, mas o Brasil também vai querer que o mundo
rico reduza suas emissões de gases do feito estufa. Precisamos medir as
emissões históricas de cada nação, para que cada um de nós pague de acordo com
sua própria responsabilidade.

Newsweek:Mas o Brasil vai se comprometer com metas de redução?

Lula: O Brasil vai se comprometer a alcançar um amplo acordo, e se esse
acordo contiver metas de emissão o Brasil deseja cumprir. Mas quer ver se as
outras nações vão também encontrar as suas metas de redução.

Newsweek:Por que o senhor deseja aumentar o controle estatal na
indústria petrolífera, quando o atual sistema de concessões ao setor privado
está funcionando?

Lula: Este novo modelo de partilha de produção que estamos propondo ao
Congresso é o sistema dominante no mundo de hoje. A única razão para manter o
sistema de concessões, que é um tipo de contrato de risco, é quando um país não
tem certeza de que vai se achar petróleo e quer partilhar o risco (da
prospecção). Mas quando sabemos que o petróleo está ali, e esse óleo é um
recurso estatal, por que iríamos entregar concessões (às empresas estrangeiras)
? Mas pode apostar que as maiores empresas petrolíferas do mundo vão se
interessar em investir nos projetos do pré-sal no Brasil, sob estas novas
normas.

Newsweek:O bloco comercial do Mercosul, que o Brasil lidera, só
admite como membros democracias plenas, que respeitem os desejos humanos. A
Venezuela está qualificada?

Lula: Dê-me um exemplo em que a Venezuela seja antidemocrática.

Newsweek:Trinta e quatro estações de rádio fechadas pelo governo
em um fim de semana. Repressão a sindicatos independentes e perseguição do
governo a rivais políticos. Gangs ligadas ao governo de Hugo Chávez
vandalizando a única rede de TV independente.

Lula: Esta não é a versão do governo.

Newsweek: Existe alguma dúvida?

Lula:Vamos ser francos sobre uma questão. Primeiro, cada país estabelece
o regime democrático que convém a seu povo. Isto é uma decisão soberana de
qualquer nação. Eu nunca questionei o fato de que, num sistema parlamentarista,
o primeiro ministro pode ficar no poder por 15 ou 18 anos. Agora [Álvaro] Uribe
está apoiando [uma emenda constitucional para permitir] um terceiro mandato. Eu
não ouvi ninguém criticar a Colômbia por isso.

Por que eu não quero um terceiro mandato? Porque o que vale para mim vale para
meus opositores. Se agora eu quero três mandatos, amanhã eles vão querer
quatro. Por isso eu digo que você não pode brincar com a democracia. Dois
mandatos e oito anos é um tempo razoável para se governar um país.

E vamos ser honestos: a elite venezuelana não era exatamente um jardim de
flores. Lembre que Chávez foi vítima de um golpe. Você não pode esperar que ele
esqueça disso tão cedo. Eles sequestraram o homem exatamente como sequestraram
[o presidente hondurenho, Manuel] Zelaya. Não podemos deixar que isso continue
a acontecer na América Latina. Chávez terá de se submeter às regras do
Mercosul. O Mercosul tem normas definidas.

Newsweek: Sim, mas as normas do Mercosul dizem que para um país
ingressar no mercado comum precisa respeitar as regras da democracia e dos
direitos humanos.

Lula: Chávez foi testado em quatro eleições nos dez últimos anos, e o
povo venezuelano está aprendendo. Nós somos um continente colonizado. A maioria
dos países da região passaram o século 20 na pobreza. O petróleo da Venezuela
enriqueceu meia dúzia de pessoas enquanto o resto do povo continuava pobre.
Esta é a primeira vez que este [dinheiro do] petróleo está sendo usado para
aumentar a participação do povo. Se está certo ou errado, o povo venezuelano
vai julgar.

Newsweek: A democracia é só eleições?

Lula: Eleições são um grande indicativo de democracia. A democracia na
prática significa instituições que funcionam devidamente, e estou trabalhando
para defender a democracia brasileira. Cada país tem de construir a democracia
que quer. Eu não tenho dúvida de que os latino-americanos estão em um dos mais
ricos momentos da gestão democrática em nossa história.

Newsweek: Com o Brasil assumindo um maior papel internacional,
muita gente se pergunta por que o país permanece tão silencioso em relação a
países cujos regimes não são democráticos. ..

Lula: Se oilharmos para os direitos humanos literalmente, então todas as
nações cometem erros, inclusive os Estados Unidos. Onde estão os direitos
humanos em Guantânamo? Todos os países têm problemas. Só a paz e a democracia
serão capazes de garantir o crescimento econômico necessário a uma vida melhor
para a maioria.

De vez em quando as pessoas me perguntam: Lula, você é o líder da América
Latina? Eu digo que não. Ninguém me escolheu para ser líder. Mas estou
absolutamente convencido de que as relações do Brasil com a América Latina
nunca foram tão claras, transparentes e honestas como hoje. Quando o Paraguai
fica nervoso com o Brasil, eu tenho que compreender o Paraguai. Não posso ser
agressivo se o Paraguai grita comigo. O Brasil tem muito mais poder e recursos.
É como a relação entre pai e filho. Um pai não bate no seu filho toda vez que o
menino grita. Ele tenta argumentar. É assim que os países grandes devem agir.

Fonte: Newsweek

Compartilhar:

Mais lidas