Aldeia Nagô
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O que é afinal, a autonomia? Por Elaine Tavares

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

A Bolívia está de novo a arder. Há dias de um referendo histórico, a direita e a
ultra esquerda se unem em uma série de protestos, o que mostra quão difícil é
fazer mudanças radicais na vida das gentes. A grande questão que divide os
bolivianos hoje é a da autonomia. Com a decisão da nova Constituição de
estabelecer a autonomia para as comunidades indígenas, a elite branca das
regiões mais ricas do país decidiu que também quer autonomia. Mas, afinal, o que
diferencia uma autonomia (a dos povos originários) da que quer a elite branca?
Talvez esse seja o nó que precisa ser compreendido e que quase ninguém
explica.


Sem qualquer sombra de dúvida, o pano de fundo de toda
essa guerra passa pela questão étnica, mas não só no que diz respeito ao aspecto
cultural, folclórico. O problema é, fundamentalmente, político e econômico. Pois
então vamos trilhar os caminhos da história para chegarmos até os conflitos de
hoje.


Desde a invasão espanhola que os povos originários,
vencidos, foram relegados a condição de gente de segunda classe. Por terem uma
organização da vida completamente diferente da que foi trazida e imposta pelos
invasores, sempre foram tachados de preguiçosos, inúteis, sub-raça, etc… Mesmo
entre parte daqueles que se dizem seus defensores este mito subsiste e não é à
toa que as idéias que hegemonizam as políticas indigenistas ou são
integracionistas ou de isolamento tutelado.


O mexicano Hector Diaz-Polanco, num livro bastante
revelador chamado "La cuestión étnico-nacional" dá uma visão clara destas
correntes que hoje disputam as mentes e os corações das nações. A primeira delas
é a da integração. Nesta, a idéia que vigora é a da completa irrelevância do
modo de vida dos povos originários. Sua organização política, econômica e
produtiva é considerada primitiva, atrasada, sem chance de vingar no mundo
capitalista. Então, a melhor saída é a integração. Os originários adentram ao
mundo branco, capitalista, e podem disputar um lugar ao sol na senda do
progresso. Nada mais que a mesma lógica colonial na qual o que é diferente
precisa ser eliminado. Já a outra corrente busca o isolamento dos povos em
mundos idealizados e tutelados. O modo de vida dos povos autóctones é visto como
algo a ser preservado e a ênfase fica calcada na questão cultural. Garante-se
reservas protegidas pelo Estado e ali, os povos originários podem ser o que são,
sem se contaminar pelo mundo capitalista.


Na verdade, tanto uma como a outra desconsidera e reduz o
mundo originário. Uma como negação e a outra como idealização. As gentes
autóctones, por mais segregadas que estejam em reservas protegidas, estão
definitivamente mergulhados no mundo real, multi-étnico e multi-cultural do
agora. A América Latina é hoje um espaço mestiço, misturado, de brancos, negros,
originários, amarelos e azuis, regidos pelo sistema capitalista. Todas estas
etnias reivindicam o direito de serem livres e autônomas, de construírem por si
mesmas, neste espaço geográfico comum, em comunhão, a vida mesma. Pois é aí que
entra o debate sobre autonomia.


A autonomia dos povos
autóctones

Desde os anos 70 que a América Latina vem apresentando um
movimento profundo das etnias subjugadas ao longo destes 500 anos. Encontros,
congresso, debates e rodas de conversas foram se produzindo nas entranhas do
continente envolvendo os povos originários e suas demandas. Eles saiam das
sombras e passavam a reivindicar autonomia. O grande divisor de águas, foi, sem
dúvida, o levante zapatista no México em 1994, fato que impulsionou toda uma
retomada das lutas autóctones. Quando alguns autores vaticinavam o fim de todas
as utopias, os chiapanecos, armados, tomavam cidades e lançavam seu grito: "Ya
basta!"


Mas, então, o que é essa autonomia reivindicada pelos
povos originários? Até onde ela ameaça realmente a idéia de Estado-nação? Até
que ponto significa a balcanização do continente? Bom, no que diz respeito à
maioria destes povos em luta, em nenhum sentido. A proposta dos zapatistas não é
de destruir o México, ou separar-se do estado. É garantir ao seu povo, que
conspira de uma outra forma de organizar a vida, o direito de fazê-la. É, na
verdade, uma proposta que se contrapõe ao modo de produção capitalista e que
busca a construção de outras experiências. É, principalmente, a tentativa de
destruição desta forma de vida – o capitalismo – em que para que um viva outro
precise morrer. A autonomia reivindicada pelos povos originários é a que lhes
garanta o direito de organizar a vida do jeito que acreditam ser melhor, o que
não significa retomar de forma acrítica o passado, mas de preservar aquilo que
do passado pode ser preservado e avançar ainda mais no processo de construção de
um mundo bom de viver, no qual possam estar em harmonia e igualdade de direitos
com as demais etnias.


Por que então, esta proposta de autonomia é diferente da
que quer a elite branca de Santa Cruz? Por que esta não reivindica separação.
Esta quer o direito de autodeterminação que está em todos os documentos
internacionais, que é o centro da doutrina Truman, que é o que cada nação
reivindica para si. Porque os povos originários são aquilo que Lênin chamaria de
"nações oprimidas", ou seja, não têm direito a vida política e econômica dos
seus países, são tutelados. E os ricos de Santa Cruz, desde quando não têm
direitos? Desde quando são oprimidos? Pois nunca passaram por isso. Sempre foram
os que mandaram na Bolívia e agora não querem saber de dividir o poder num
espaço pluri-nacional. 


É aí que parte da esquerda também se equivoca, ao unir
suas forças contra a idéia do estado pluri-nacional, contra a autonomia dos
povos originários. É quando mostra sua faceta racista, incapaz de perceber que
as gentes autóctones também estão colocadas na condição de classe oprimida,
portanto, parceiras na luta contra o capital. Este deveria ser o trabalho da
verdadeira esquerda: juntar forças, estabelecer parcerias, unificar as lutas. Ao
atuar na direção da garantia da autodeterminação e autonomia dos povos
originários os trabalhadores organizados poderiam aumentar suas fileiras com
aqueles que hoje estão fazendo as lutas mais esganiçadas na defesa dos recursos
naturais e pela soberania dos povos. Exceto alguns grupos absolutamente
minoritários, os povos originários de todo o continente não têm entre suas
consignas a idéia de separação. O que querem é o direito de atuar politicamente
no país e de garantir sua especificidade no jeito de organizar a
vida.


É mais do que óbvio que isso constitui um problema para
os governantes e para a maioria da população que está incluída no modo de
produção capitalista. Mas este é o desafio a vencer. Estas são as batalhas para
serem travadas agora. As de construção de um outro tipo de nação, capaz de
garantir verdadeiramente direitos iguais a todos e não apenas a alguns, como tem
sido. Conviver com a diferença, respeitar o outro e fundamentalmente fundar um
novo modo de viver, esta é a proposta. Um modo de viver construído "desde
abajo", por aqueles que sempre estiveram à margem, excluídos da vida digna. Um
modo de viver que não seja a inclusão no sistema que aí está, mas que permita o
desalojamento de todas estas verdades cristalizadas de que o capitalismo é o
melhor dos mundos. Neste mundo novo, anti-capitalista e anti-sistêmicos os
autonomistas de Santa Cruz não querem viver. Por isso querem outra nação, por
isso querem se separar. Eles não cabem no mundo novo. Mas a Bolívia é mais do
que a elite predadora e vai ter de superar seus
desafios.


É certo também que o governo de Evo Morales tem lá seus
problemas e muitos são seus erros e equívocos, mas o que não dá para negar é que
se está tentando revolver a velha forma de vida. E na comunhão com a maioria
oprimida. Esse é um bônus que não dá para descartar. Os trabalhadores
explorados, os informais, os mineiros, os brancos pobres, os amarelos, os azuis,
todos aqueles que conformam a classe trabalhadora da Bolívia deveriam aceitar
esse desafio. E fazer história, construindo um jeito novo de viver. 

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