Aldeia Nagô
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O que vemos e o que nos olha. Por Ivana Bentes

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
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Diante da imagem! E 2018 já começou com teste cognitivo/afetivo de interpretação de imagem! A fotografia de Lucas Landau, do menino diante dos fogos no Réveillon de Copacabana, produziu uma onda de sentimentos, indignações e mil interpretações. A fotografia poderia ser apenas uma imagem incrível de um menino siderado pelos fogos em um momento de catarse, isolado da multidão de branco.

O fotógrafo, pelo que vi, trabalha nesse campo em que o fotojornalismo cruza com o ensaio e ultrapassa e/ou reforça clichês.

A composição, de cara, se abre e se fecha para um jogo de opostos e interpretações que nos aflige: como tirar as imagens dos clichês (sociais, psíquicos) e libertá-las? Cada um vê o que quer ou o que pode ver? O olhar sempre foi condicionado pelos clichês.

A primeira coisa que vi foi simplesmente um menino “sem pose”, o que, digamos, é chocante! Mais chocante ainda porque vemos um menino consigo mesmo, apartado da multidão festejante, apartado de uma euforia multitudinária com alegria contada no relógio. Frágil, encolhido, mas siderado à sua maneira, em um instante singular e intenso, pleno.

Bem, mas estamos no Brasil e um menino negro, sem camisa, apartado da multidão festejante e se protegendo do frio é lido como: desigualdade, racismo e abandono. De novo a “literalidade” da imagem se fechando e reafirmando os nossos próprios clichês sociais e psíquicos.

Nem todo menino negro é um “menino de rua”. Nem todo menino negro sem camisa sozinho não tem família ou está abandonado. O racismo também está nos olhos de quem olha. Colocar os meninos negros do Brasil nesse lugar despotencializado e vitimizante é uma das formas de assujeitá-los também – de maneira mais soft e bem intencionada, diga-se!

Diga-se também que a postura do menino invoca (inconsciente ótico e iconografia da história do Brasil) alguém “submetido” a uma força que o domina, o que por si só dispara todo um inconsciente colonial, terrível.

Os clichês apontam para um incômodo real! Não nascem do nada! Os clichês são clichês porque aprisionam um estado de coisas. São a repetição do já sabido e reforçam o que todos sabem: o racismo e desigualdades brutais que, entre tantas horrores, nos impedem de ver.

Mas o que é um clichê?  É algo que  nos “protege” do incômodo e da violência do pensamento, diz Gilles Deleuze: “Temos esquemas para nos esquivarmos quando e? desagrada?vel demais, para nos inspirar resignac?a?o quando nos e? horri?vel, nos fazer assimilar quando e? belo demais. Notemos a este respeito que mesmo as meta?foras sa?o esquivas senso?rio-motoras, e nos inspiram algo a dizer quando ja? na?o se sabe o que fazer: sa?o esquemas particulares, de natureza afetiva. Ora, isso e? um cliche?. Um cliche? e? uma imagem senso?rio-motora da coisa”, escreve em A imagem-tempo.

Libertar os meninos negros dos clichês nunca será apenas uma tarefa estética ou de descondicionamento do olhar. O fotógrafo pode ter visto só os contrastes estéticos e de sensações: preto/branco, multidão/indivíduo, adultos/criança, caloroso/frio, esperado/inesperado (o que deixou em foco no primeiro plano), e as imagens fluídas e desfocadas no fundo.

Originalmente colorida, a foto foi publicada pela Reuters em preto e branco, produzindo drama e força adicionais. Fosse o registro de um menino branco, talvez observássemos apenas uma imagem “poética” e sem indignações prêt-à-porter(prontas para usar).

Para além das imagens, hoje pode-se fazer uma etnografia das redes e das recepções em tempo real diante da imagem que passa, trazendo embarcada nela as mil narrativas, o que é incrível. Vi a foto pela Mídia Ninja e estou viciada e muito atenta aos comentários, o novo lugar da “pesquisa de campo” na cultura pós-digital, e o lugar em que se pode hoje fazer mais do que “teoria da recepção”, realmente interagindo com os muitos. É aí que encontramos a expressão de todas as inquietações, que vão do campo da estética até a ética e o jurídico.

Quem é o menino? A indignação vem em parte de não se supor que já existe uma classe média negra no Brasil. Esses piedosos são racistas também? Existe um racismo embalado em piedade? Fotografados não têm biografias e são apenas imagens abertas ao infinito das narrativas? Defender a autonomia da arte exige cada vez mais jogo de cintura e habilidades e está cada vez mais difícil.

Judicialização da vida e de todos os campos. O menino está sendo “exposto”? Qual é o limite do direito de imagens e quando se ultrapassa esse limite? Uma foto artística está submetida a que limites?

Também questiona-se cada vez mais a monetização da dor do outro, ou simplesmente a monetização das imagens dos outros (principalmente de minorias e de grupos cujos direitos são violados, inclusive no campo das imagens) – o que não é novo, mas a velocidade da circulação e difusão das imagens nas redes sociais traz novas questões e limites ao tema. Sem controle, a economia dos likes e a velocidade com que imagens viralizam em tempo real, produzem um “só depois”, um questionamento pós-fatos, quando o que nos resta é o infinito dos discursos.

É que estamos experimentando uma mutação antropológica na qual tempo, espaço, sensibilidade e limites éticos terão que ser acordados e renovados.

Vamos passar por muitos testes em 2018. É bom saber que as narrativas dizem muito de quem vê, e que não vai ser fácil para ninguém em um ano no qual o poder das imagens as tornam sujeitos. As imagens são vivas. Vivemos entre elas e convivemos com imagens que nos ensinam e nos sensibilizam para viver e amar a alteridade, o outro. Precisamos amar as imagens  como os sujeitos e coisas, pois o que acontece com elas, acontece conosco. Trata-se de um só circuito, estético, ético, afetivo, cognitivo.

As desigualdades, o racismo, o ódio, passam pela gestão de imagens tanto quanto pela gestão dos corpos. Menos juízes e mais analistas simbólicos! Ao mesmo tempo ninguém mais está protegido na sua “zona de conforto”, nem fotógrafos, nem juízes, nem artistas e nem analistas.

“Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. Como diz Bérgson, nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas”, escreve Deleuze em A imagem-tempo.

“Olhar é um ato violento”, diz Arthur Omar, fotógrafo e artista. O olhar fere. E as imagens nos olham de volta e nos atravessam e nos constituem.

Libertem os meninos dos clichês! É um demanda acertadíssima e justíssima, mas não podemos nos contentar só com isso: imagens livres, enquanto os meninos negros continuarem sendo mortos.

O que vemos e o que nos olha
Menino observa fogos no Réveillon de Copacabana; foto provocou debates nas redes sociais (Lucas Landau/Reuters)

Artigo publicado originalmente em https://revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-que-vemos-e-o-que-nos-olha/

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