Aldeia Nagô
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O Superpoder e a nova realidade por Elizabeth Carvalho(*)

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura

"SuperShannon"
desembarcou em Tegucigalpa porque Zelaya não se encontrava mais exilado
num país vizinho: estava em seu próprio país, abrigado na sede da
Embaixada brasileira na capital hondurenha, que, apesar de cercada,
ameaçada e submetida a todo tipo de constrangimentos, nunca mereceu da
grande mídia brasileira ao longo destas semanas tensas a mesma
indignação tão enérgicamente manifestada pelos governos da América do
Sul e seus representantes na Organização dos Estados Americanos. O
artigo é de Elizabeth Carvalho.


De repente, como num passe de mágica, o Superhomem
se materializou na pequena e pobre Honduras, um país à deriva, atolado
numa convulsão política de quatro meses. Munido de seus superpoderes, o
novo herói decretou o final da mais grave e perigosa crise vivida pela
a América Latina nos últimos anos. O Superhomem atende pelo
nome Thomas Shannon, secretário adjunto de Estado para o hemisfério
ocidental dos Estados Unidos da América, definido como um diplomata “de
perfil moderado, que aposta no diálogo e na conciliação”, em vias de se
tornar embaixador no Brasil.

Esta é a conclusão que se pode
tirar do extenso noticiário na grande mídia que celebra a aparente
solução de um conflito que fez acender um sinal vermelho na
estabilidade das democracias recentemente sedimentadas no continente.
Não há, por enquanto, um sinal verde para substituí-lo, porque a única
solução definitiva depende ainda do comportamento do Congresso
hondurenho na recondução do presidente legítimo, Manoel Zelaya, ao
governo que lhe foi usurpado através de um golpe de Estado. Mas o tom
eufórico que associa a chegada de Shannon a Tegucigalpa ao fechamento
de um acordo satisfatório entre o presidente golpista e o presidente de
facto induz à idéia de que se confirma a velha teoria de que o destino
dos latino-americanos está, inexoravelmente, atrelado à “liderança” da
nação mais poderosa do mundo.

Seria ingenuidade negar a
evidência de que a solução da crise dependia, de fato, da vontade
política da “nova e vitoriosa diplomacia” de Barack Obama que a mídia
aplaude com fervor. Ao longo dos quatro últimos meses em que a
população hondurenha foi submetida à violência e à privação de seus
mais elementares direitos de liberdade, esta responsabilidade dos
Estados Unidos foi reiteradamente cobrada pelos governos
latino-americanos que, desde o primeiro momento, assumiram uma posição
firme e coesa no rechaço ao golpe que alçou ao poder o ex-companheiro
de partido de Zelaya, Roberto Micheletti.

O mesmo não se pode
dizer da posição “hesitante” americana durante todo este tempo – ao
concluir que um presidente deportado para Costa Rica depois de ter a
residência invadida por soldados do exército e ser arrancado da cama
com uma arma apontada na cabeça não “configurava” um golpe militar; ao
tomar medidas homeopáticas de bloqueio econômico a Honduras, na
contramão do que fizeram os vizinhos do continente; ao divulgar, diante
de um governo que mantinha o país sob estado de sítio, que “no momento”
os Estados Unidos não sabiam se apoiariam ou não as eleições convocadas
pelos golpistas; e ao manter em Honduras seu embaixador, Hugo Llorens,
ao contrário dos países latino-americanos, que chamaram de volta seus
representantes. Llorens, segundo informações publicadas na época em
diversos jornais do continente, chegou a admitir, para depois negar,
sua presença “como observador” nas reuniões do bloco de Micheletti nos
dias que antecederam o sequestro de Zelaya. Não era preciso nenhum
esforço de análise para se concluir que a intenção era “empurrar” pela
via da ambiguidade a questão hondurenha até as eleições de 29 de
novembro anunciadas pelo governo golpista, na crença de que até lá as
coisas se acomodariam diante de um fato consumado.

A biografia
do embaixador americano em Honduras levantada pelo jornalista francês
Jean-Guy Allard revela fatos curiosos que a mídia local aparentemente
não se interessou em investigar. Em 2002, quando se deu o golpe de
estado contra o presidente da Venezuela Hugo Chávez, Llorens, um
cubanoamericano, era diretor para assuntos andinos do Conselho de
Segurança em Washington e ocupava na Casa Branca o cargo de principal
assessor para assuntos da Venezuela do governo de George W.Bush,
subordinado ao então subsecretário de Estado para o hemisfério
ocidental Otto Reich, também cubanoamericano, de conhecidas ligações
com grupos anticastristas de Miami.

Em 2008, Llorens foi
nomeado embaixador em Honduras em substituição a Charles Ford, a quem
coube a tarefa de consultar Zelaya sobre um possível abrigo em Honduras
ao terrorista venezuelano Luis Posada Carilles, ex-agente da CIA, com
uma extensa ficha de envolvimento em conspirações e atentados no
território de Cuba e principal acusado da explosão de um avião da
companhia aérea cubana que matou 73 pessoas em 1976, quando voava sobre
Barbados. Carilles, como se sabe, fugiu da prisão na Venezuela em 1980,
viveu clandestino durante 25 anos e solicitou oficialmente asilo nos
Estados Unidos em 2005. Foi detido em Miami e, em janeiro de 2007,
acusado de “fraude e declarações falsas no processo de solicitação da
nacionalidade americana” e levado à prisão de Otero, no Novo México.
Cumpriu, ao que consta, apenas quatro meses de prisão. Sua liberdade
foi concedida mediante o pagamento de fiança. Durante todos esses anos,
Caracas tenta sem sucesso a extradição de Carilles para concluir seu
julgamento em solo venezuelano: o caso Carilles é ainda hoje um dos
elementos de grande tensão das relações entre Venezuela e Estados
Unidos.

Llorens apresentou suas credenciais a um presidente
ainda indignado com a consulta do colega que agora substituía, e
mobilizado pela decisão do governo boliviano de Evo Morales de expulsar
o embaixador americano Philip Goldberg, acusado de envolvimento nas
conspirações com os grupos separatistas que levaram o país ao caos em
setembro do ano passado. Zelaya fez questão de expressar ao novo
embaixador sua perplexidade com os acontecimentos “no país mais pobre
da América do Sul”. Saudar um diplomata americano com um protesto era
um comportamento inusitado para um presidente de Honduras, uma nação
umbilicalmente ligada aos Estados Unidos não apenas pela quase absoluta
dependência econômica, mas por ter servido sempre de base de apoio para
as operações militares americanas e de mercenários na guerra contra os
sandinistas da Nicarágua e a guerrilha em El Salvador, num dos mais
dramáticos e sangrentos períodos da história da América Central.
Inclusive para as operações de Carilles.

Na noite de 22 de
junho de 2009, portanto, quando Zelaya foi apeado do poder, havia muito
mais em jogo em Tegucigalpa do que a “insistência” do presidente em
realizar uma consulta popular simultânea às eleições presidenciais
sobre o interesse do povo hondurenho na convocação de uma nova
Constituinte. Apostava-se num jogo de vitória fácil: Honduras, afinal,
não seria a Venezuela, e Zelaya, um representante da oligarquia
fundiária do Partido Liberal direitista que foi aos poucos se
acomodando aos ventos progressistas que sopram à esquerda no
continente, não contaria com a força de um respaldo popular organizado
e feroz, como o que reverteu o quadro na tentativa de derrubar Hugo
Chávez em 2002.

A surpreendente tenacidade de uma resistência
hondurenha (estimulada inclusive pela violência dos próprios golpistas)
ajudou certamente a virada do jogo. Mas o desfecho certamente seria
outro, não fosse a tenacidade dos governos de um continente que nos
últimos anos vem caminhando a passos largos na direção de uma unidade
na defesa de seus próprios interesses, dos princípios de soberania,
independência, cooperação e solidariedade entre os países que integram
a região, inimaginável há apenas 10 anos. SuperShannon
desembarcou em Tegucigalpa porque Zelaya não se encontrava mais exilado
num país vizinho: estava em seu próprio país, abrigado na sede da
Embaixada brasileira na capital hondurenha, que, apesar de cercada,
ameaçada e submetida a todo tipo de constrangimentos, nunca mereceu da
grande mídia brasileira ao longo destas semanas tensas a mesma
indignação tão enérgicamente manifestada pelos governos da América do
Sul e seus representantes na Organização dos Estados Americanos.

O
que venceu o impasse foi a firmeza e a serenidade com que a política
externa do governo Lula desempenhou seu papel no epicentro da crise
hondurenha, com o apoio de seus vizinhos do sul. Não deixa de ser
curioso observar que no mesmo dia das odes à doutrina do soft powerSuperpower: apesar dele.

(*)
Elizabeth Carvalho é jornalista e mestranda em Economia Política
Internacional do Instituto de Economia Do Núcleo de Estudos
Internacionais, NEI/UFRJ.

americano os presidentes Lula e Chávez comemoravam, numa plantação de
soja em El Tigre, a aprovação, pela comissão das Relações Exteriores do
Senado brasileiro, do ingresso da Venezuela no Mercosul. Uma quebra de
preconceito que levou dois anos e meio para se efetivar, ainda que
todos, não apenas na esquerda, mas sobretudo na direita, soubessem que
este passo representa de fato um sopro de vida no PIB global do mercado
comum sul-americano e na formidável contribuição venezuelana com
insumos energéticos e recursos financeiros para projetos de integração
econômica e de infra-estrutura no continente. Projetos, enfim,
construídos lenta e duramente, tijolo a tijolo. Não por causa do

Artigo publicado originalmente em http://www.cartamaior.com.br

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