O triste fim de FHC por Mino Carta
Promotor e intérprete de uma ambição exagerada para um pássaro que não voa. Quem já leu um livro de Fernando Henrique Cardoso? É a pergunta que
às vezes dirijo à plateia que, generosa além da conta, acompanha uma
palestra minha.
Que levante o braço quem leu. De quando em quando,
alguém acena ao longe, por sobre e em meio a uma fuga de cabeças
imóveis. Trata-se, obviamente, de uma pesquisa rudimentar. Tendo a crer,
porém, que o príncipe dos sociólogos e ex-presidente não é tão lido
quanto os jornalistas tucanos supõem.
É grande, isto sim, o número daqueles que lhe atribuem acertadamente a
chamada “teoria da dependência”, objeto do ensaio escrito no Chile em
parceria com o professor Enzo Falletto. Ali está uma crítica inexorável
da burguesia nativa, incapaz, segundo a dupla de ensaístas, de agir
por conta própria para tornar o Brasil um país contemporâneo do mundo.
Muitos anos após a publicação do livro, quando FHC ocupava a
Presidência do País, eu me atrevi a perguntar aos meus botões se ele não
estaria a provar a célebre teoria. Teria a oportunidade de demonstrar
na prática seu teorema, pelo qual o Brasil é inescapavelmente destinado
ao papel de dependente. Dos Estados Unidos, está claro. Ninguém como o
presidente Fernando Henrique entendeu ser inevitável, ineludível,
imperioso, cair nos braços do colega americano, no caso Bill Clinton.
Não me permito aventar a hipótese de que o nosso herói agiu em
benefício próprio. Atendeu, legitimamente, isto sim, às suas convicções.
A operação revela uma extraordinária habilidade política, a refletir
seu incomum poder de sedução. A burguesia nativa encantou-se com aquele
que recomendava o esquecimento de seu próprio passado, incapacitada,
talvez, à comparação entre a teoria da dependência e a ação do
presidente tucano, enquanto Bill escancarava os braços e oferecia o
abrigo do ombro possante. Nem se fale do deleite da mídia: eis o
presidente intelectual que o mundo nos inveja.
FHC é um encantador de serpentes. Plantou-se sobre o pedestal da
estabilidade, obtida de início com a URV, enfim com o real, mérito
indiscutível, premissa de progressos em espiral, que se renovam em uma
espécie de estação de colheitas cada vez mais apressadas.
Trunfo notável, traído com a reeleição alcançada pela via da compra
de votos para concretizar a emenda constitucional, e conduzida na
campanha de 1998 à sombra da bandeira da estabilidade rasgada exatos 12
dias após a posse. Tanto em 94 quanto em 98, o obstinado Sapo Barbudo
foi o adversário fadado à derrota, graças, inclusive, ao apoio maciço da
mídia dos ainda influentes barões de longa vida e dos seus obedientes
sabujos. Dá-se, inclusive, naquele 1998 vincado pela crise russa, um
fenômeno peculiar: os patrões da mídia nativa passam a acreditar não
somente nas promessas do seu candidato à reeleição, mas também nos seus
colunistas que tão sofregamente o sustentam. Uma vez reeleito, FHC
desvaloriza o real e deixa os senhores de tanga.
A Lula, vencedor em 2002, FHC entrega um país economicamente à
deriva. O tucanato chegara ao poder oito anos antes com o propósito de
ficar ali por duas décadas. Muita ambição, talvez, para um pássaro que
não voa. Tenho uma lembrança pré-tucana que me vem à mente, remonta a 28
anos atrás. Acompanho André Franco Montoro na sua campanha à
governança de São Paulo, na ocasião pela zona canavieira do estado.
Chegamos a Rafard quando já caía a noite e a caçamba de um caminhão se
dispôs a ser palanque nas bordas da cidadezinha.
Eu estava a bordo, do alto via aquela plateia de rostos iluminados
obliquamente e ouvia a brisa ciciar em meio ao canavial que nos cercava.
A sequência dos oradores previa também a fala de FHC e, ao cabo,
aquela de Montoro. Quando o então suplente de senador tomou a palavra,
Mário Covas veio sentar-se ao meu lado na amurada do convés. A cada
período do discurso, olhava-me com cumplicidade e meneava a cabeça em
desalento. Nunca esqueci aquele momento e quando o senador em lugar de
Montoro, líder da cisão peemedebista criadora do tucanato, deixou-se
encantar pelo convite de Fernando Collor e por sua própria,
incomensurável vaidade, melhor entendi o comportamento de Covas na
noite de Rafard.
Sua confiança no companheiro valia zero. E foi como se saísse da
amurada e se chegasse ao orador garboso ao dizer com todas as letras,
oito anos depois: “Se você for para o governo de Collor, eu saio do
partido e trato de mandá-lo a pique”. FHC tirou o time de campo. Covas
sabia ser persuasivo, e teve a ventura de não assistir ao desastre de
2002, a primeira derrota de José Serra.
Outro episódio para mim marcante tem 30 anos e alguns meses. Estamos a
viver a última grande greve dos operários de São Bernardo e Diadema,
comandada pelo presidente do sindicato, Luiz Inácio, melhor conhecido
como Lula. Vou frequentemente ao estádio da Vila Euclydes para viver de
perto aquela situação, e um dia Raymundo Faoro, o amigo que hoje me faz
falta, liga e diz: “Quero ver também”. Veio a São Paulo e no
aeroporto, quando fui buscá-lo, fomos interceptados por um emissário de
FHC. O senador gostaria muito de se encontrar conosco a caminho do
estádio. Faoro disse está bem.
Houve um café servido em xícaras de porcelana, e então o príncipe dos
sociólogos iniciou a sua peroração a favor do nosso distanciamento
daquela imponente manifestação dos grevistas. O segundo ato foi encenado
no salão nobre do Paço Municipal de São Bernardo, precipitado pelo
mesmo motivo. “Sou um jornalista – disse eu – esta conversa para mim é
tempo perdido.” Faoro não disse nada. Levantamos e fomos ao palanque de
Lula. Foi quando o autor de Os Donos do Poder e o líder sindical se
conheceram. Refleti sobre as razões de FHC: por que pretendia impedir
que Faoro fosse ter com Lula? Permito-me a seguinte conclusão: pelo
jurista e historiador nutria turvos ciúmes intelectuais, pelo líder
operário algo mais que a premonição de uma inevitável rivalidade.
Tratava-se de um confronto já latente.
Como amiúde acontece com fanáticos da ambição, o instinto da
rivalidade está sempre preparado para o bote. Qual seria, exatamente, a
primeira corda da relação Fernando Henrique-José Serra? Digo, do ângulo
daquele. De grande ami zade, é a resposta oficial. E nos bastidores
das intimidades mais recônditas, até mesmo inconfessáveis? Não duvido
que a amizade de FHC por Serjão Motta fosse autêntica, totalmente
sincera. Pois Serjão era um ser amoitado por natureza, provavelmente o
mais sábio do terceto. Não tinha o menor interesse em sair à luz do sol
para se exibir. Com Serra, parece-me fácil imaginar que a amizade de
FHC seja agulhada pela rivalidade. Latejante.
Eis dois modelos de ambição diferentes, de certa forma opostos, pelo
menos sob certos aspectos. Por exemplo. Ambos são hábeis em trabalhar à
sombra, em manobrar por baixo dos panos. FHC, contudo, sabe como
manter intacto este fluxo subterrâneo. Serra, talvez por causa da
origem calabresa, às vezes não se contém e mostra a cara. FHC faz
questão de aparentar tolerância e bonomia, mesmo em relação a quem
abomina, como convém ao político matreiro a explorar os sentimentos
alheios ao montar o ardil que irá engolir quem confiou em excesso.
Serra é, para o mal de seus desenhos, de cultivar ressentimentos e
rancores. Ódios precipitados, quando não daninhos para ele mesmo.
Nesta rivalidade se esvai o PSDB. A ambição transbordante, evidente
demais, afastou ambos de uma liderança sábia e até arguta como a de
Ulysses Guimarães. Depois de ter assustado fatalmente Tancredo Neves,
que os quis longe do governo destinado a sobrar para José Sarney.
Cogitado para o Planejamento, Serra só teve espaço em São Paulo. FHC,
que Tancredo definia como “o maior goela da política brasileira”, não
foi além de um cargo inútil no Congresso.
Vanitas, vanitatum, diziam os latinos ao se referir à vaidade. Não é
por acaso que o PSDB, nascido do inconformismo em relação à linha
peemedebista que a tigrada tinha como muito branda, acaba por assumir,
tardia e desastradamente, e empurrado pela presença de Lula, o papel da
UDN velha de guerra. O enredo é impecável na moldura da deplorável
trajetória da esquerda brasileira. É uma história escrita por um punhado
de verdadeiros, digníssimos heróis, crentes alguns até as últimas
consequências, e por uma armada de cidadãos inconsequentes, quando não
oportunistas. Tal é a minoria branca, como diz Cláudio Lembo. Descrentes
de tudo, muitos até sem se darem conta de sua descrença porque
incapazes de perceber seus impulsos mais fundos.
Magistral a entrevista de FHC ao Financial Times publicada às
vésperas do primeiro turno. Dizia ele que, em caso de vitória de Dilma
Rousseff, o desenvolvimento do Brasil seria “mais lento”. Confrontado
com aquele do governo Lula ou do seu? Se for com este, podemos vaticinar
um futuro terrificante. No tempo de FHC, o índice anual de crescimento
não passou de 2,5%. Em matéria de desfaçatez, a entrevista é digna do
Guiness. “Eu fiz as reformas – afirma o rei da cocada preta –, Lula
surfou na onda.” Então, por que é o presidente mais popular da história?
Culpa do próprio PSDB, dos companheiros incompetentes, “entenderam
errado”, permitiram “a mitificação de Lula”, o qual, embora nascido da
classe trabalhadora “portou-se como se fizesse parte da velha elite
conservadora”.
Quem serviu à velha elite conservadora, foi o presidente FHC, que
confirmou o Brasil como quintal dos EUA e o atrelou ao neoliberalismo. O
confronto entre os dois governos é inevitável, bem como entre a
repercussão internacional de um e de outro. Ocorre-me imaginar como há
de roer as entranhas do príncipe dos sociólogos constatar que o
metalúrgico teve mundo afora, com sua política independente, o
reconhecimento que lhe faltou, a despeito de sua política dependente.
E nas suas últimas falas, FHC age no seu melhor estilo, é o náufrago que
exige lugar no bote salva-vidas em lugar de crianças, mulheres e
velhos. São estes, aliás, os culpados pelo naufrágio, donde o privilégio
lhe cabe. Quanto a José Serra, que afogue.
Mino Carta
Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital.
Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de
Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do
jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde.
redacao@cartacapital.com.br