Aldeia Nagô
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O visível e o invisível no debate sobre a cultura por Rodrigo Guimarães Nunes

14 - 20 minutos de leituraModo Leitura
Deve-se pensar a política de cultura segundo um modelo ultrapassado que funcionava para poucos, ou um novo modelo que cria possibilidades para muitos? Deve-se pensar a partir dos “grandes” consagrados pelas antigas regras do jogo, ou dos “pequenos” e “médios” que jamais “chegarão lá” nos mesmos termos? Da perspectiva de reforçar um sistema que necessariamente cria exclusão e escassez, ou da expansão do número de produtores de cultura que conseguem viver de seu trabalho? A partir da base ou da ponta? O que incomoda é que o novo MinC, que deveria estar puxando esses debates, ou não os compreende, ou cria, sobre eles, uma confusão deliberada.



Cientes da
amplitude do apoio às políticas da gestão anterior, os novos ocupantes do MinC
têm se apressado em negar qualquer ruptura entre as gestões. Segundo a ministra Ana de Hollanda, "um governo de continuidade pode
ter outros focos, o que não significa anular ou inverter o que foi feito." O
que é curioso – e preocupante – nessa tentativa de apresentar os novos rumos
como continuação dos antigos é que, sempre que se fala destes, parece ser ou
para criticá-los de forma velada, ou para elogiá-los por ser aquilo que não
eram. Em outras palavras, talvez na ausência de uma nova agenda ou no temor de
publicamente assumi-la, busca-se afirmar uma continuidade com algo que se
demonstra desconhecer ou desaprovar.

É uma negação que, pelo jeito de negar, parece confirmar o que nega: "a dama
protesta demais", como disse a mãe de Hamlet, vendo-se representar numa peça de
teatro. Justamente por isso convém, à maneira dos psicanalistas, escutar este
discurso, para ouvir, naquilo que diz, o que deixa de dizer: o modo como
organiza sua luz e suas sombras, como distribui o visível e o invisível.

Até aqui, a maior celeuma envolvendo a nova gestão é a do passo atrás na reforma
do direito autoral. Não tanto (ou apenas) pela controvérsia própria ao tema,
mas principalmente pela forma como nela se operou. Primeiro, retirando um
anteprojeto de lei resultante de um debate de cinco anos, aberto a todos os
interessados, com o pitoresco argumento de que este seria, ao mesmo tempo,
amplamente desconhecido e rejeitado. Em seguida, substituindo a pessoa que
acompanhou todo o processo pela Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI) por
alguém com vínculos históricos com os maiores interessados em deixar a área
como está: o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). (Se você
quisesse conhecer melhor o trabalho que estava sendo feito antes de você
chegar, retiraria do cargo quem melhor o conhecia?) A situação já foi comparada
a botar um ruralista para cuidar da reforma agrária, mas se assemelha mais ao
"tapetão" de nossos cartolas futebolísticos: onde o time que perdeu "em campo"
(no debate de cinco anos) consegue, pela força de seu lobby, não somente marcar
um novo jogo, mas indicar o juiz.

Mas não é preciso pôr em dúvida a sinceridade das declarações feitas até aqui
para ver problemas sérios. A insistência em alegar ignorância sobre o
anteprojeto como razão para retomar a discussão faz suspeitar que os novos
responsáveis pela área simplesmente não estavam prestando atenção no que nela
ocorreu nos últimos anos – o que necessariamente põe em questão seu preparo
para assumi-la. E quando se ouve atenta para o visível e o invisível no
discurso, a suspeita só faz se confirmar.

Por exemplo, na declaração da nova titular da DDI de que é preciso "achar
um denominador comum" entre os "projetos fantásticos" do "pessoal da mídia
livre, para aumentar o acesso à cultura, (…) e os autores". Ou quando Antonio Grassi, presidente da Funarte, diz que "houve um
momento em que se fomentou a importância de fazer inclusão social por meio da
arte, e a excelência artística ficou em segundo plano". Implícita, aqui, está
uma distinção entre dois estratos e duas formas diferentes de atuação na área
cultural. De um lado, temos os "autores", indivíduos capazes de uma elaboração
artística apurada ("excelência"), que necessita ser tornada mais acessível para
o restante da população sem, contudo, pôr em risco sua capacidade de viver
daquilo que fazem. Esses são os verdadeiros "produtores" de cultura. De outro
lado, temos os difusores, que são mais exatamente prestadores de serviço:
prestam o "fantástico" serviço de aumentar o acesso e fomentar a inclusão
social por meio da cultura, mas não são realmente "produtores".

O que há de errado com essa visão? Em primeiro lugar, ela demonstra a
não-assimilação da verdadeira inovação da política cultural nos últimos oito
anos: a de partir do princípio de que as condições tecnológicas presentes
permitem uma democratização antes inimaginável dos meios de produção e
circulação de artefatos culturais. Em outras palavras, a política das gestões
anteriores do MinC nunca foi meramente de "democratização do acesso" ou de "inclusão
social", porque não visava oferecer as condições para a criação somente de
consumidores, mas, principalmente, de produtores de cultura.

O desentendimento parece vir, em segundo lugar, de uma diferença de fundo na
maneira de conceber a cultura. Porque, se o antigo MinC chegou a esse tipo de
formulação, foi por ter partido do princípio que todos são, sempre, produtores
de cultura, sem distinção hierárquica entre a vasta planície e aquele pequeno
Parnaso habitado por uns poucos "autores" que, por seu dom de "excelência",
merecem o reconhecimento de todos.

Podemos explicar a diferença com uma metáfora: pode-se pensar a cultura ou como
vazio, ou como plenitude. No primeiro caso, temos uma tabula rasa onde a cada
tanto um "autor" vem depositar sua criação; essa se difunde, se imita, se
dilui, se mistura a outras linhagens, até que um novo "autor" arranque "de seu
íntimo" uma nova criação. No segundo caso, há produção e circulação constante,
vinda de todos os lados; a "criação" nada mais é que uma recombinação inovadora
de diferentes elementos já existentes, um efeito secundário da circulação de
ideias, afecções e influências; e o grande "autor" é simplesmente aquele que
faz, de uma ampla gama de influências e elementos, uma síntese mais relevante e
cheia de significados. (Isso implica, com frequência, que também seja alguém
com acesso a uma gama maior, o que é, claro, em parte socialmente determinado.
Chico possivelmente ainda seria Chico se não fosse Buarque de Hollanda, mas
dificilmente conseguiria ser Chico se fosse o mais reles Silva.)

As diferenças entre as implicações de cada posição podem ser vistas na prática.
Reduzir a produção de cultura ao trabalho de um pequeno número de "autores" nos
dá uma imagem falseada daquilo que é a cadeia de produção da cultura hoje, bem
como quem são seus atores econômicos. A realidade dos pouquíssimos produtores
de cultura que conseguem viver de direito autoral é tomada como padrão, e a
verdadeira condição da grande maioria dos que trabalham e tentam ganhar a vida
com a produção cultural é inteiramente apagada. Um cenário complexo, onde há
"pequenos", "médios" e "grandes" – e onde os grandes são a exceção – é achatado
em favor de uma oposição simples entre o Parnaso dos "autores" e a planície dos
"usuários". Para seguir no campo das metáforas futebolísticas, é como pensar o
mercado esportivo brasileiro a partir de Ronaldinho, e não da massa de
jogadores espalhados em milhares de times pequenos Brasil afora.

Por extensão, também a imagem que se oferece do debate sobre direito autoral
será invertida e mistificada. Segundo a ministra, "comentava-se muito no meio cultural
que as mudanças estavam deixando o autor em uma situação frágil em vários
aspectos". Já para a nova diretora da DDI, "todo mundo quer ter acesso aos bens
culturais (…), mas há pessoas que vivem e dependem desses direitos. Quem
produz precisa ser remunerado." Assim, uma questão que toca a todos que
produzem e consomem cultura é transformada numa simples oposição entre "meio
cultural" (os "autores", que vivem de direito autoral) e consumidores (que
querem tudo de graça).

A vantagem prática da concepção de cultura do antigo MinC fica clara: partindo
dos princípios de que todos são produtores de cultura e de que as
transformações tecnológicas são irreversíveis e precisam ter seu potencial
produtivo explorado, é possível pensar a produção de cultura como ela realmente
é – hoje, nas condições da produção pós-industrial – ao invés de como ela é
para os poucos que "chegaram lá" (e conseguiram "ficar lá") no antigo sistema
industrial. Pensar o iceberg a partir não da ponta, mas da base; e eleger a
base, não a ponta, como o foco da política pública.

A diferença entre as duas concepções de cultura que se confrontam ao redor do
direito autoral não está, como sugere a nuvem de fumaça com que se tenta
obscurecer a discussão, no fato de que a chamada "cultura livre" significaria
"tudo de graça para todo mundo agora". "Livre" como em "liberdade de
expressão", não como em "cerveja liberada" ("free" as in "free speech", not
as in "free beer"), como diz o velho lema do movimento de software livre,
cujos membros costumam, justamente, ganhar a vida como produtores de software.
Fazer-se de desentendido, argumentando que "quem vive de cultura têm direito a
uma remuneração", é mais que dizer o óbvio; é criar um falso debate,
protestando contra algo que o anteprojeto não somente jamais propôs, como
buscava maneiras de fazer – dentro da nova realidade.

O novo MinC sistematicamente esconde que a lei que se quer reformar é uma das mais restritivas do mundo. Também somem do debate,
em passe de mágica igualmente sistemático, as pessoas que vivem de cultura e
são a favor da reforma do direito autoral. Não a "arraia-miúda" que é invisível
na concepção de cultura da atual gestão, mas gente que deveria contar mesmo na
definição rarefeita de "meio cultural": Ivan Lins, Jair Rodrigues, Ná Ozetti,
Francis Hime, Fernanda Abreu e Roberto Frejat, por exemplo. Estes, reunidos no
Manifesto da Terceira Via e no Grupo de Ação Parlamentar (GAP), explicitamente
defendem
"uma política que, sem criminalizar o usuário, garanta a
remuneração dos criadores e seus parceiros de negócios" e o "projeto de reforma da lei 9.610/98, conforme encaminhado em
dezembro do ano passado à Casa Civil
". A estes, hoje fora do esquema da
grande indústria cultural, somam-se fenômenos pós-industriais como as bandas
Teatro Mágico e Móveis Coloniais de Acaju, que, através da internet, conquistaram
um público fiel em todo o país sem passar por grandes gravadoras, pagar jabá ou
tocar na televisão.

Por aí se vê que não apenas é possível viver de fazer cultura nas novas
condições de produção, como que muitos dos que o fazem vêem nelas um potencial
emancipador. Por quê? Porque elas representam a possibilidade de realizar
aquilo que sempre foi, em potência, a natureza do bem cultural.

Este é, por definição, imaterial e não-escasso: se eu comparto uma ideia, eu
não deixo de tê-la. O que a digitalização e a internet permitem é sua difusão
em tempo e custo praticamente zero, eliminando a necessidade de materializar-se
num objeto material escasso: livros, CDs, DVDs são coisas que, até
recentemente, não podiam ser compartilhadas sem perda.

Quem é atingido nessa mudança, então, não é o "criador", mas os
"atravessadores" da indústria cultural. Enquanto o artefato cultural precisava
se materializar num bem físico, o produtor de cultura dependia de uma indústria
para fazer a intermediação com o público. Essa relação de dependência fazia com
que nem autor, nem consumidor saíssem ganhando: a parte do leão ia para o
atravessador, que financiava a produção (então muito mais cara), assegurava a
divulgação (frequentemente por meio do jabá e da matéria paga) e a distribuição
do bem escasso.

Artistas estabelecidos conseguem ganhar mesmo assim: quando o lucro é grande,
mesmo uma divisão desigual pode ser vantajosa. Além disso, os produtos
comerciais destes artistas costumam ser os mais aquinhoados pelo sistema de
financiamento (público) da Lei Rouanet – cuja ironia sem graça é que se investe
muito na produção comercialmente viável, e pouquíssimo na que corre riscos. Em
outras palavras, se dá dinheiro para aquilo que já ganha dinheiro, e não para
aquilo que, justamente, mais precisaria de investimento público. Com isso, o
dinheiro do contribuinte financia, não necessariamente a "excelência", mas
certamente o lucro das grandes empresas atravessadoras.

As novas condições tecnológicas barateiam a produção e dão ao produtor a
possibilidade de, na posse completa de seu próprio trabalho, chegar diretamente
ao público. Isso pôs os atravessadores em crise, e é cada vez menos provável
que alguém, hoje, "chegue lá" pelo velho sistema industrial. Quem quiser
fazê-lo terá que negociar com departamentos de marketing cada vez menos afeitos
aos riscos da "excelência", e cada vez mais interessados no retorno garantido.

Cabe então perguntar: deve-se pensar a política de cultura segundo um modelo
ultrapassado que funcionava para poucos, ou um novo modelo que cria
possibilidades para muitos? Deve-se pensar a partir dos "grandes" consagrados
pelas antigas regras do jogo, ou dos "pequenos" e "médios" que jamais "chegarão
lá" nos mesmos termos? Da perspectiva de reforçar um sistema que
necessariamente cria exclusão e escassez, ou da expansão do número de
produtores de cultura que conseguem viver de seu trabalho? A partir da base ou
da ponta? Essas são as coordenadas do debate que deveria estar se fazendo.

Se se faz a opção por uma concepção democratizante da produção cultural, são
bem-vindas as questões sobre "excelência" e "profissionalização" (outro refrão
do novo MinC, para falar da necessidade de alterar o funcionamento dos Pontos
de Cultura). Se por "profissionalizar" se entende oferecer as condições para a
massa de novos produtores de cultura constituírem redes sustentáveis de
produção e difusão, introduzindo e adaptando mecanismos do Estado para suprir
as necessidades que aí se impõem, não se pode deixar de aplaudir a ideia.

Da mesma forma, se por "excelência" se entende não o banzo do Parnaso perdido,
mas uma preocupação com o significado e a relevância do que um contexto muito
ampliado de produtores de cultura hoje produz, a demanda é oportuna. É verdade
que ainda não apareceram sínteses potentes da incrível e salutaríssima
disseminação dos últimos anos. Se pensamos no quanto o acesso à produção e à
circulação se ampliaram, o debate cultural e político, de fato, caminha muito
atrás da nova realidade. Se pensamos na riqueza do debate sobre as intersecções
entre cultura, sociedade e política que se produziu no Brasil nos anos 1960 e
1970, não dá para não pensar que as transformações recentes ainda estão longe
de serem elaboradas.

Mas, novamente, a questão é: como queremos chegar a essa elaboração? Partindo
do princípio de que, agora que muito mais pessoas podem ter "uma câmera na
mão", o que cabe fazer é criar as condições para uma produção e circulação que
nos ponham para pensar seriamente sobre quais são, poderiam ou deveriam ser,
hoje, "as idéias na cabeça"? Ou seguir pensando a partir de um velho estado de
coisas, onde "uma câmera na mão" era o privilégio de poucos, tivessem eles ou
não uma "idéia na cabeça"? São os "autores", a academia, os intelectuais de
todos os tipos que devem dar olhos e ouvidos a esse processo de tomada da
palavra, participar dele, e, ao lado de seus novos atores, ajudar a refleti-lo
e elaborá-lo. A "excelência", se vier, virá desse movimento de incorporar-se a
essa nova realidade; não de uma auto-referência que, porque só vê a si mesma
como produtora de cultura, não consegue enxergá-la.

Talvez mais do que as medidas já tomadas, o que incomoda é que o novo MinC, que
deveria estar puxando esses debates, ou não os compreende, ou cria, sobre eles,
uma confusão deliberada. Quando o ministério da Cultura (do PT!) e a bancada
ruralista estão falando a mesma língua, é de se pensar… Mas a
identidade entre os discursos de Kátia Abreu e de Ana Hollanda se entende:
enquanto a primeira repete a desinformação espalhada pela segunda, a segunda
mobiliza os bichos-papões cansados da oposição mais rasteira – por exemplo, quando diz que supervisionar uma altamente opaca
organização privada que presta um serviço público e é fortemente criticada por
membros da própria classe que supostamente representa (o ECAD) seria
"intervencionismo do Estado".

(Como sói acontecer, a democracia e a não-intervenção estatal são boas para
algumas coisas, e não para outras: depois de finalmente disponibilizar o texto
do anteprojeto no site do ministério, abriu-se uma consulta pública – em que os
comentários, ao invés de ficarem à vista de todos, fomentando o debate, devem
ser enviados por e-mail…)

É problema da presidenta que uma ministra sua municie a oposição com argumentos
contra o governo. É problema de todos os que ajudaram a eleger a presidenta que
uma ministra sua esteja indo contra o programa de governo no qual votaram. Mas,
acima de tudo, é problema de quem deseja que o Brasil "continue mudando" ver
que o novo MinC pensa de maneira mais velha que o antigo. Se a direção da
mudança era democratizante e universalizante, a concepção da nova gestão, até
aqui, tem se mostrado, nas linhas e nas entrelinhas, elitizante e
particularista. E o que é pior: além de dar as respostas erradas, parece
trabalhar para que não se consiga fazer as perguntas certas.

(*) Rodrigo Guimarães Nunes é filósofo, com doutorado pelo Goldsmiths
College, Universidade de Londres. Atualmente, faz pós-doutorado na PUCRS, com
bolsa CAPES/PNPD. É editor da revista Turbulence (www.turbulence.org.uk), cujo conteúdo é todo
disponibilizado em Creative Commons.

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