Oded Grajew, co-mentor do Fórum Social Mundial
um dos mentores do Fórum Social Mundial, conta como a iniciativa surgiu
há dez anos e avalia a repercussão dessa rede de movimentos sociais
sobre a política internacional desde então.
Deutsche Welle:
Dez anos após a realização do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), em
2001, como o senhor – um dos mentores desse espaço de reflexão e
reivindicação paralelo à política institucional e a estruturas
governamentais – avaliaria o impacto da iniciativa desde então? Haveria
conquistas que o senhor atribuiria inequivocamente à influência do FSM?
Oded Grajew:
Em 2000, a ideologia neoliberal estava no auge, a ponto de muitos
cientistas sociais considerarem que havíamos chegado ao fim da
história. O mercado, liberado de qualquer controle social, iria levar a
humanidade à prosperidade e à justiça social. Carlos Menem (o
presidente argentino que levou seu país à bancarrota) era recebido com
honras em Davos e sua política considerada como modelo para países
emergentes.
O Fórum Social Mundial surgiu para
denunciar os riscos do modelo liberal e abrir um espaço onde pessoas,
lideranças e organizações da sociedade civil, de forma autoorganizada,
pudessem encontrar-se e, seguindo os parâmetros de nossa carta de
princípios, articular-se para visibilizar experiências e propostas,
articular-se e se reunir para ações conjuntas.
A partir da realização do primeiro
Fórum Social Mundial, em 2001, em Porto Alegre, centenas de fóruns
locais, nacionais, continentais e temáticos se espalharam pelo mundo. O
lema do FSM – "Outro mundo é possível" – ganhou corações e mentes. De
2001 para cá, o mapa político de vários países mudou completamente, a
começar pela América Latina, onde começou o FSM. Muitos frequentadores
do FSM desde o seu início são hoje presidentes dos seus países ou
ocupam postos importantes de governo.
A delegação norte-americana sempre foi
muito grande nos eventos do FSM e vários dos seus componentes tiveram
papel decisivo na eleição de Barack Obama. As grandes manifestações
mundiais contra a guerra do Iraque foram todas articuladas em Porto
Alegre e fizeram a Alemanha e a França desistirem de participar daquela
guerra. A unanimidade pelo modelo neoliberal ruiu completamente e os
países que ainda continuaram a seguir essa ideologia foram aqueles que
mais sofreram com a crise financeira de 2008.
Inúmeras redes sociais, em nível
nacional, continental e mundial, se estabeleceram – a rede mundial pela
água como bem público, por exemplo -, conseguindo importantes avanços
nos seus propósitos. Praticamente todas as pressões exercidas nos
encontros do Banco Mundial, FMI, G8 e, mais recentemente, em
Copenhague, foram articuladas a partir de lideranças e entidades ativas
participantes do FSM.
Essas pressões tiveram, por exemplo, a
capacidade de barrar o projeto neoliberal da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca). Enumerar a quantidade de ações geradas a partir do
processo FSM esgotaria o espaço desta entrevista. Temos hoje uma
sociedade civil global ativa e atuante em todos os assuntos relevantes
e o FSM teve uma grande participação nessa construção.
DW: Com o
agravamento dos problemas climáticos e os efeitos da crise financeira
mundial, algumas reivindicações do FSM se tornaram ainda mais atuais.
Até que ponto as estruturas governamentais e internacionais vêm se
tornando permeáveis a certas propostas do fórum nesse sentido?
OG:
Vários governantes atuais eram frequentadores de primeira hora do FSM.
Foram eleitos quando a onda da mudança expressa pelo lema "Outro mundo
é possível" começou a se espalhar na sociedade e colocaram em prática
várias idéias e propostas visibilizadas nos encontros do FSM. Vários
destes países melhoraram a vida de sua população e não é por acaso que
se saíram melhor de que outros na recente crise financeira.
A governança mundial exercida pelo G8
teve que ser ampliada para mais países. As Nações Unidas, sempre muito
resistentes a se tornarem mais democráticas, perderam ao longo dos
últimos anos uma boa parte de sua credibilidade. O tema ambiental, que
sempre esteve muito presente no processo FSM, se tornou um assunto
prioritário em nível mundial, mas infelizmente ainda muito longe de se
traduzir em ações concretas.
DW: No caso
específico do Brasil, como o senhor descreveria a relação entre a
atuação do governo Lula e as estruturas não governamentais associadas
ao FMS?
OG:
O presidente Lula esteve sempre presente nos encontros do FSM, mesmo
antes de ser eleito. Ele incorporou ao seu governo diversas propostas
gestadas no FSM e convidou várias lideranças sociais a fazer parte do
seu governo. Várias (eu diria a maioria) das iniciativas do seu governo
contaram com a simpatia de organizações sociais brasileiras, outras
receberam críticas e outras ainda foram julgadas insuficientes.
Mas o fato mais importante é que foram
instituídos vários espaços de participação em que sugestões, propostas
e críticas puderam se expressar de forma democrática. O processo FSM no
Brasil, como, aliás, em todo o mundo, conserva seu caráter não
governamental e apartidário, sendo uma iniciativa exclusiva da
sociedade civil.
DW: O senhor foi um
dos idealizadores do FSM. Qual foi exatamente a sua contribuição
pessoal para a criação do fórum na época? O que possibilitou que a
ideia fosse viabilizada em 2001?
OG:
Em janeiro de 2000, eu estava com a minha mulher, Mara, em Paris. Os
meios de comunicação davam um grande destaque às idéias de Davos,
dizendo que finalmente encontramos no neoliberalismo o modelo ideal e
que os críticos só sabiam criticar e não tinham nenhuma proposta
alternativa. Eu lembrava também de uma conversa recente que havia tido
com Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, em que notei
total insensibilidade com as questões sociais e ambientais. Isso tudo
me incomodava enormemente.
Um dia, sentado no quarto do hotel
esperando minha mulher se arrumar para sairmos e refletindo sobre o que
poderia ser feito para reagir a essa situação, tive a ideia: criar um
Fórum Social Mundial em contrapartida ao Fórum Econômico Mundial, a fim
de denunciar o modelo neoliberal, mostrar que existem outros modelos
alternativos e oferecer um espaço para a sociedade civil se encontrar,
se articular e ganhar força para ações conjuntas. Percebi logo que essa
ideia tinha sentido e força. Chamei minha mulher e perguntei a ela o
que achava. Ela gostou. Resolvi começar a testar a idéia.
Meu amigo Chico Whitaker estava
coincidentemente em Paris na mesma época, com sua mulher, Estela.
Liguei para ele e contei a idéia. Ele também gostou. Propus a ele irmos
conversar com Bernard Cassen, do Le Monde Diplomatique, que era nosso
conhecido, para continuar a checar a idéia. Fomos com nossas mulheres
ao seu escritório. Bernard também gostou e começamos a especular sobre
o local. Bernard deu a idéia de Porto Alegre, pelo fato de essa cidade
ter sido governada vários anos por governos progressistas,
proporcionando assim uma chance maior de acolhimento da ideia.
Voltando ao Brasil, telefonei ao
prefeito de Porto Alegre e ao governador de Rio Grande do Sul, que já
eram meus conhecidos. Os dois gostaram da ideia e se propuseram a
apoiá-la. Eu já tinha vários anos de militância na área social, embora
minha origem fosse como empresário do setor de brinquedos.
Na época, inclusive, era presidente do
Instituto Ethos, que promove a responsabilidade social empresarial.
Reuni no meu escritório do Ethos sete amigos e dirigentes de
organizações sociais brasileiras para compartilhar a ideia do FSM e
todos gostaram. Formamos o grupo de oito organizações brasileiras
encarregadas de colocar em pé o primeiro evento. Fomos a Porto Alegre
para verificar a infraestrutura. Fui buscar recursos com duas fundações
internacionais (tive inclusive de viajar para conseguir esses apoios),
o que viabilizou a instalação de um escritório e uma secretaria
executiva.
Começamos a articular com organizações
sociais internacionais com as quais todos nós tínhamos relações e
organizamos o lançamento internacional do FSM num encontro em Genebra,
na Suíça, em junho de 2000. Em janeiro de 2001, com a participação de
20 mil pessoas e a realização de 800 atividades, foi realizado o
primeiro encontro do FSM. No FSM mais recente, na Amazônia, tivemos a
presença de 150 mil pessoas e a realização de 2.500 atividades.
DW: Em breve, o
senhor estará em Porto Alegre para o 10º. FSM. Ao longo de uma década,
o fórum também mudou sua estrutura, tendendo a uma maior
descentralização. Dado o caráter de atuação local de grande parte dos
movimentos e organizações envolvidos no fórum, como constituir um
discurso por assim dizer "global"? Ou isso é dispensável?
OG:
O lema do FSM é "Outro mundo é possível". Desde o seu início, ese fórum
é mundial e tem a perspectiva da construção de um processo de
globalização diferente, que privilegie o desenvolvimento sustentável,
os direitos humanos, a justiça social e a democracia participativa. Na
metodologia do FSM, dentro da Carta de Princípios, sendo um processo
auto-organizado, cada organização desenvolve suas atividades, se
manifesta e se articula de forma totalmente livre e independente.
Ninguém é mais importante do que o outro e nenhum tema exclui a
relevância de outros. A valorização da diversidade é um dos pilares dos
nossos princípios.
Desta maneira, há um fluxo e ligação
permanentes entre assuntos e atividades locais, nacionais, continentais
e globais, que acabam se realimentando e se fortalecendo mutuamente.
Foi por isso que, após três edições do FSM em Porto Alegre, veio a
decisão de ir para a Índia e, posteriormente, para outros países da
América Latina, Ásia e África, e realizar fóruns nacionais e
continentais na Europa e nos Estados Unidos. Com isso, o fórum foi se
espalhando em cidades e países de todo o mundo e se articulando em
ações locais e globais que não se contrapõem, mas se conectam e se
fortalecem mutuamente.
DW: O lema do Fórum
Econômico Mundial neste ano é "Melhorar o estado do mundo: repensar,
reformular, reconstruir". No entanto, considerando as medidas de
combate à crise deliberadas pelo G20 e a falta de um consenso
internacional relevante na Cúpula do Clima em Copenhague, o que deveria
ser repensado em Davos?
OG:
O Fórum Econômico Mundial foi criado e é financiado pelos defensores do
modelo neoliberal. Está a serviço de uma ideologia que coloca o mercado
liberado de controles e restrições como o grande alavancador do
"progresso", que enxerga as restrições ambientais como danosas ao
desenvolvimento. Tornou-se uma atividade bastante lucrativa para o seu
organizador e, diante dos sucessivos fracassos de suas ideias, deveria
simplesmente decretar sua falência intelectual e moral e encerrar suas
atividades. Em 2000, por exemplo, o Fórum Econômico Mundial elegeu como
seu herói Carlos Menem, que levou a Argentina à bancarrota, e
recomendou que suas políticas fossem um modelo para todos os países da
região; menosprezou todas as informações sobre o aquecimento global;
nunca se manifestou contra as guerras atuais; não conseguiu prever a
recente crise financeira até pouco tempo antes de ela estourar etc.,
etc., etc.
Tenta maquiar seus reais interesses,
escolhendo títulos pomposos para seus encontros e promovendo atividades
filantrópicas (coletando alguns dólares entre seus participantes e
achando que com aquilo vai acabar com a pobreza no mundo), para tentar
passar a ideia de que se preocupa com questões sociais e ambientais.
As empresas e os governos que chegaram
ao poder graças ao financiamento que obtiveram dessas empresas,
frequentadores e financiadores de Davos, protagonistas do fracasso de
Copenhague, deveriam investir suas energias para fazer uma profunda
autocrítica sobre suas responsabilidades na enorme pobreza e
desigualdade social em nosso planeta, no acirramento de conflitos e
guerras, no eminente desastre ambiental que se aproxima devido às suas
políticas e modelo de produção e consumo que colocam em risco a nossa
vida, certamente a dos nossos filhos e netos e de toda a espécie humana.
O lema da reunião de fechamento de Davos deveria ser: "Mea culpa: onde e como foi que tanto erramos?".
*Com revisão de Alexandre Schossler, da Deutsche Welle
Fonte: Instituto Ethos