Aldeia Nagô
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Opinião: Quando a defesa de privilégios raciais une direita, centro e esquerda e sai na Globo por De

5 - 6 minutos de leituraModo Leitura

Você imaginaria uma manifestação pública que unisse
intelectuais tucanos, jornalistas de extrema-esquerda, um articulista de
extrema-direita, um músico que protagonizou um movimento de rebeldia estética,
uma liderança política que se afirma marxista, lideranças empresariais? Uma
manifestação que vai contra uma política que proporciona a inclusão de um
segmento social historicamente excluído? Uma manifestação que elogia medidas
recentemente tomadas na emergência do neoconservadorismo nos Estados Unidos? E
tudo com ampla cobertura do Jornal Nacional?


 Pode acreditar que isto
aconteceu. Foi o manifesto entregue no Supremo Tribunal Federal assinado por
lideranças (?) e intelectuais (?) solicitando que a corte declare
inconstitucional a adoção das cotas nas universidades com a alegação de que isto
fere o tratamento igual, independente de raça, credo, etc. previsto na
Constituição.

 O que une esta aliança tão ideologicamente heterogênea? Os
seus membros não são vítimas do racismo que impera sobre a população negra. São
pessoas que não sofreram e não sofrem com os mecanismos de exclusão racial e
querem ditar como esta população negra deve lutar pelos seus direitos. Será que
este mesmo grupo aceitaria que os povos de matriz africana também decidissem
como os judeus deveriam ser reparados após o Holocausto nazista? Será que também
é contra as políticas de ação afirmativa implantadas no final do século XIX e
início do século XX que beneficiaram os imigrantes europeus (provavelmente
muitos destes são descendentes destes imigrantes e beneficiários diretos destas
políticas de ação afirmativa)?.

 A argumentação do manifesto é absurda.
Parte do pressuposto de que políticas de ação afirmativa "racializam" a questão
social, como se esta já não fosse racializada historicamente no país. A questão
de que o problema da população negra é social e não racial não responde a
seguinte pergunta: por que os negros são pobres? Porque o critério de ascensão
social no país é racializado. Assim, não são as políticas de ação afirmativa que
irão "racializar" as relações sociais, elas já são racializadas e ignorar isto é
manter as assimetrias e desigualdade de oportunidades com marcas raciais no
país.

 Outro argumento no manifesto é que as políticas racializadas são
excludentes. Cita o apartheid e as classificações étnicas feitas na época da
colonização. O argumento é matreiro: compara uma reivindicação voltada para
superação das desigualdades raciais com medidas tomadas por poderes racistas
para a manutenção e ampliação das hierarquias raciais. Tem um fundo cristão
neste argumento. Pedem para que a população negra, diante da violência que sofre
do sistema, aja como Jesus Cristo: diante do tapa recebido, ofereça outra face.

 Mas a lógica reacionária se mostra quando o texto do manifesto considera
"um avanço" as declarações de inconstitucionalidade feitas pela Suprema Corte
dos EUA das ações afirmativas naquele país. Não informam, os manifestantes, que
esta ação da Suprema Corte ocorre dentro de um retrocesso conservador nos
últimos anos nos EUA que tem como conseqüência o aprofundamento das
desigualdades sociais naquele país, a concentração de renda e a emergência de
uma extrema-direita cujas políticas são danosas para todos os povos. Não me
surpreende que Reinaldo Azevedo defenda isto. Mas será que José Arbex, Ferreira
Gullar, César Benjamin e outros endossam isto ou a paixão anti-cotas os faz
aliar-se a idéias e pessoas conservadoras deste tipo?

 E, finalmente, qual é
a alternativa apresentada pelos signatários? Esperar uma melhora no ensino
público para que as condições sejam iguais? Talvez ignorem os estudos feitos
pelo economista Ricardo Henriques, do Ipea(Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) de que a manutenção
do atual grau de evolução dos indicadores sociais da população negra fará o
conjunto deste segmento social atingir o atual estágio em que se encontra a
população branca em 32 ANOS!!! Traduzindo: se a população branca ficasse parada
nos atuais indicadores sociais e a população negra continuasse o ritmo atual de
melhoria das suas condições sociais, em 32 ANOS TERÍAMOS A PRETENSA EQÜIDADE
SOCIAL!!! Seria interessante estes intelectuais irem pedir à população negra
para que aguardem uns 30 anos para conseguir a sua cidadania (só 30 anos, isto
não é nada!).


 O debate anti-racista no Brasil incomoda pelo seguinte motivo: combater o
racismo implica, necessariamente, em redistribuir riquezas e isto significa
perda de privilégios para alguns. Enquanto o combate ao racismo fica no aspecto
etéreo, sem foco, como mera denúncia, a solidariedade é enorme. Não é
politicamente correto assumir-se como racista, principalmente para quem se diz
"intelectual" e "de esquerda". Mas incomoda – e muito – quando o movimento negro
supera a fase da denúncia e passa a exigir a eqüidade num país em que o bem
estar é um privilégio e a socialização dele implica em perder privilégios. Em
casos como este, fronteiras ideológicas se esvaem e esta aliança – que parece
impossível de acontecer – não soa tanto estranha. E muitas figuras que, pelas
suas posições político-ideológicas jamais teriam visibilidade na Globo, tiveram
seus minutos de fama no Jornal Nacional.
 
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 Dennis de Oliveira é
professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e doutor em
Ciências da Comunicação pela ECA/USP, presidente do Celacc e membro do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb/USP).
 E-mail:
dennisoliveira@uol.com.br

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