Os cães de guarda do Império Europeu por Uaçaí de Magalhães Lopes
Ergue-se na Europa um outro muro da vergonha. E o que é pior, um muro
invisível, vergonhosamente invisível, e, por isso mesmo, medonho e como nos
outros casos, protegidos por uma roupagem de legalidade, que nega todos os
avanços dos direitos humanos conquistados a ferro e fogo e com a perda de
muitas vidas; "o muro que separa os que estão protegidos pelo guarda-chuva dos
direitos humanos e os que estão excluídos dessa cobertura protetora".
A globalização é um processo impulsionado por forças econômicas que fogem
ao controle dos indivíduos e das sociedades em particular; essa constatação,
entretanto, parece negar a máxima de que os homens constroem a sua própria
história, e mesmo constrangidos por condições históricas e materiais são capazes
de transformar a realidade e construir o seu próprio destino. Fato
incontestável é que as nações com economias mais atrasadas estão sendo
submetidas a situações que, qualquer teórico ou cidadão isoladamente julgaria
inconcebíveis para o nosso nível de consciência do século XXI.
Em geral, na compreensão do senso comum, o processo de globalização
aparece como a transformação do globo em uma aldeia global: "e viu-se a terra
inteira de repente, surgir redonda do azul profundo …"; o fato é que somente
na aparência a terra está tornando-se "toda uma"; Deus salve Fernando Pessoa.
Temos a tentação de reeditar um humanismo romântico, e acreditar que a "relação
de coisas" é diferente da "relação de pessoas", entretanto, como afirmou Slavoj
Zizek, "na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as
‘coisas’ (mercadorias) que circulam livremente, ao passo que a circulação das
pessoas é cada vez mais controlada".
Nos referimos a uma decisão abominável da União Européia que passou
praticamente despercebida: "o plano de estabelecer uma força policial de
fronteira para toda a Europa a fim de assegurar o isolamento do território
Europeu e evitar a entrada de imigrantes". Vivemos um novo "racismo" no mundo
desenvolvido, de certa forma, mais execrável e mais brutal que todos os
anteriores, porque é sub-reptício, não admitido e, portanto, mais difícil de
ser combatido. Pelo menos 20% dos brasileiros e latino-americanos que viajam à
Europa, via Portugal e Espanha são deportados; em geral, mulheres jovens e
belas que são, de forma aviltante, "confundidas" com pessoas de "moral
duvidosa". Portugal e Espanha, nações que tiveram que submeter suas populações
a situações constrangedoras ao extremo para serem aceitas na União Européia,
submetem-se agora, em conjunto, ao papel execrável de serem os "cães de guarda
de fronteira". São funcionários acéfalos, apenas cumpridores de uma
determinação absurda de mandar de volta ao Brasil e outras nações consideradas
ameaçadoras à "boa ordem do paraíso europeu", uma certa quantidade de viajantes
sob a simples alegação de estão "ilegais". Funcionários que, na maioria das
vezes, sem nem mesmo encarar as vítimas, ou examinar os documentos de migração
apresentados por mais de dois minutos, apenas vociferam, sem nenhum
constrangimento pelos danos financeiros e morais que estão causando, a máxima: "você
está ilegal". O ônus moral e financeiro é sempre das vítimas.
"O que se esconde atrás dessas medidas de proteção é a mera consciência
formulada com brutal franqueza há mais de meio século por George Kennan: "Nós
(os EUA) temos 50% da riqueza do mundo, mas apenas 6,3% da população. Nessa
situação, nossa principal tarefa no futuro
(…) é manter essa posição de disparidade. Para faze-lo, temos de
esquecer todo sentimentalismo (…) devemos deixar de pensar nos direitos
humanos, na elevação dos padrões de vida e da democratização". [2]
Trata-se, por outras vias, do reconhecimento que o modelo civilizatório do
capitalismo liberal, em sua edição globalizante, se configura como um paraíso
para poucos e não pode ser universalizado. A Europa imita com covardia o
exemplo americano. Esses tiveram, pelo menos a coragem de erguer concretamente,
de concreto e cerca eletrificada, o muro que os separa dos mexicanos.
Será que é esse
o único caminho? Será que chegará a nossa vez de erguermos muros nas fronteiras
com a Bolívia, o Paraguai e as outras nações latino-americanas?
Os nossos irmãos europeus se esqueceram, e com muita rapidez, dos nossos
"pracinhas" que morreram em solo europeu, para libertá-los do fascismo que eles
próprios criaram. Esqueceram-se também, com muita rapidez, de que nos dois
pós-guerras do século XX, muitas nações latino-americanas, em particular o
Brasil, receberam milhares de famílias da Itália e da própria Espanha (que
saíram de lá para não morrerem de fome) e as acolheram como imigrantes legais,
lhes oferecendo oportunidades de emprego e, muitas vezes, como é o caso das
famílias italianas imigradas para a Bahia, doando terras para que pudessem
trabalhar e criar seus filhos.
Ergue-se na Europa um outro muro da vergonha. E o que é pior, um muro
invisível, vergonhosamente invisível, e, por isso mesmo, medonho e como nos
outros casos, protegidos por uma roupagem de legalidade, que nega todos os
avanços dos direitos humanos conquistados a ferro e fogo e com a perda de
muitas vidas; "o muro que separa os que estão protegidos pelo guarda-chuva dos
direitos humanos e os que estão excluídos dessa cobertura protetora".
Que essa reflexão sirva para alertar o povo brasileiro, ricos e pobres, e
os governantes em geral, para essa nova campanha contra o fascismo que se
inicia. Não podemos nos calar diante dessa atitude vergonhosa que nos trata
como seres humanos inferiores, pelo simples fato de sermos brasileiros. Ao
contrário, isso nos distingue e nos dá orgulho.
[1] Uaçaí de
Magalhães Lopes é Professor da Universidade Estadual de Feria de Santana e
doutorando em Educação pela UFBA. uml@uol.com.br
[2] KENNAN
apud ZIZEK, Bem vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro
e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 172).