Os EUA e a “pacificação presidencial” na América Latina por Noam Chomsky
O presidente Barack Obama distanciou os EUA de quase toda
América Latina e Europa ao aceitar o golpe militar que derrubou a democracia
hondurenha em junho passado. O apoio ao processo eleitoral garantiu para os EUA
o uso da base aérea de Palmerola, em território hondurenho, cujo valor para o
exército estadunidense aumenta na medida em que está sendo expulso da maior
parte da América Latina. Obama abriu a brecha ao apoiar um golpe militar,
repetindo uma prática dos EUAbem conhecida na América Latina. O artigo é de Noam
Chomsky.
Barack Obama é o quarto presidente estadunidense a ganhar o
Prêmio Nobel da Paz, unindo-se a outros dentro de uma longa tradição de
pacificação que desde sempre serviu aos interesses dos EUA. Os quatro
presidentes deixaram sua marca em nossa "pequena região" ("nosso quintal"), que
"nunca incomodou ninguém", como caracterizou o secretário de Guerra, Henry L.
Stimson, em 1945. Dada a postura do governo de Obama diante das eleições em
Honduras, em novembro último, vale a pena examinar esse
histórico.
Theodore Roosevelt
Em seu segundo mandato como
presidente, Theodore Roosevelt disse que a expansão de povos de sangue branco ou
europeu durante os quatro últimos séculos viu-se ameaçada por benefícios
permanentes aos povos que já existiam nas terras onde ocorreu essa expansão
(apesar do que possam pensar os africanos nativos, americanos, filipinos e
outros supostos beneficiados).
Portanto, era inevitável e, em grande
medida, desejável para a humanidade em geral que o povo estadunidense terminasse
por ser maioria sobre os mexicanos ao conquistar a metade do México, além do que
estava fora de qualquer debate esperar que os (texanos) se submetessem à
supremacia de uma raça inferior. Utilizar a diplomacia dos navios de artilharia
para roubar o Panamá da Colômbia e construir um canal também foi um presente
para a humanidade.
Woodrow Wilson
Woodrow Wilson é o mais
honrado dos presidentes premiados com o Nobel e, possivelmente, o pior para a
América Latina. Sua invasão do Haiti, em 1915, matou milhares de pessoas,
praticamente reinstaurou a escravidão e deixou grande parte do país em
ruínas.
Para demonstrar seu amor à democracia, Wilson ordenou a seus
mariners que desintegrassem o Parlamento haitiano a ponta de pistola em
represália pela não aprovação de uma legislação progressista que permitiria às
corporações estadunidenses comprar o país caribenho. O problema foi resolvido
quando os haitianos adotaram uma Constituição ditada pelos Estados Unidos e
redigida sob as armas dos mariners. Tratava-se de um esforço que resultaria
benéfico para o Haiti, assegurou o Departamento de Estado a seus
cativos.
Wilson também invadiu a República Dominicana para garantir seu
bem-estar. Esta nação e o Haiti ficaram sob o mando de violentos guardas civis.
Décadas de tortura, violência e miséria em ambos países foram o legado do
idealismo wilsoniano, que se converteu em um princípio da política externa dos
EUA.
Jimmy Carter
Para o presidente Jimmy Carter, os direitos
humanos eram a alma de nossa política externa. Robert Pastor, assessor de
segurança nacional para temas da América Latina, explicou que havia importantes
distinções entre direitos e política: lamentavelmente a administração teve que
respaldar o regime do ditador nicaragüense Anastásio Somoza, e quando isso se
tornou impossível, manteve-se no país uma Guarda Nacional treinada nos EUA,
mesmo depois de terem ocorrido massacres contra a população com uma brutalidade
que as nações reservam para seus inimigos, segundo assinalou o mesmo
funcionário, e onde morreram cerca de 40 mil pessoas.
Para Pastor, a
razão era elementar: os EUA não queriam controlar a Nicarágua nem nenhum outro
país da região, mas tampouco queria que os acontecimentos saíssem do seu
controle. Queria que os nicaragüenses atuassem de forma independente, exceto
quando essa independência afetasse os interesses dos Estados
Unidos.
Barack Obama
O presidente Barack Obama distanciou os
EUA de quase toda América Latina e Europa ao aceitar o golpe militar que
derrubou a democracia hondurenha em junho passado. A quartelada refletiu
abismais e crescentes divisões políticas e socioeconômicas, segundo o New York
Times. Para a reduzida classe social alta, o presidente hondurenho Manuel Zelaya
converteu-se em uma ameaça para o que esta classe chama de democracia, que, na
verdade, é o governo das forças empresariais e políticas mais fortes do
país.
Selaya adotou medidas tão perigosas como o incremento do salário
mínimo em um país onde 60% da população vive na pobreza. Tinha que ir embora.
Praticamente sozinho, os EUA reconheceram as eleições de novembro (nas quais
saiu vitorioso Pepe Lobo), realizadas sob um governo militar e que foram uma
"grande celebração da democracia", segundo o embaixador de Obama em Honduras,
Hugo Llorens. O apoio ao processo eleitoral garantiu para os EUA o uso da base
aérea de Palmerola, em território hondurenho, cujo valor para o exército
estadunidense aumenta na medida em que está sendo expulso da maior parte da
América Latina.
Depois das eleições, Lewis Anselem, representante de
Obama na Organização de Estados Americanos (OEA), aconselhou aos atrasados
latinoamericanos que aceitassem o golpe militar e seguissem os EUA no mundo real
e não no mundo do realismo mágico.
Obama abriu a brecha ao apoiar um
golpe militar. O governo estadunidense financia o Instituto Internacional
Republicano (IRI, na sigla em inglês) e o Instituto Nacional Democrático (NDI)
que, supostamente, promovem a democracia. O IRI apóia regularmente golpes
militares para derrubar governos eleitos, como ocorreu na Veenzuela, em 2002, e
no Haiti, em 2004. O NDI tem se contido. Em Honduras, pela primeira vez, esse
instituto concordou em observar as eleições realizadas sob um governo militar de
facto, ao contrário da OEA e da ONU, que seguiram guiando-se pelo mundo do
realismo mágico.
Devido à estreita relação entre o Pentágono e o exército
de Honduras e à enorme influência econômica estadunidense no país
centroamericano, teria sido muito simples para Obama unir-se aos esforços
latinoamericanos e europeus para defender a democracia em Honduras. Mas Barack
Obama optou pela política tradicional.
Em sua história das relações
hemisféricas, o acadêmico britânico Gordon Connell-Smith escreve: "Enquanto
fala, da boca para fora, em defesa de uma democracia representativa para a
América Latina, os Estados Unidos têm importantes interesses que vão justamente
na direção contrária e que exigem um modelo de democracia meramente formal,
especialmente com eleições que, com muita freqüência, resultam numa
farsa".
Uma democracia funcional pode responder às preocupações do povo,
enquanto os EUA estão mais preocupados em construir as condições mais favoráveis
para seus investimentos privados no exterior? Requer-se uma grande dose do que
às vezes se chama de ignorância intencional para não ver esses fatos. Uma
cegueira assim deve ser zelosamente guardada se é que se deseja que a violência
de Estado siga seu curso e cumpra sua função. Sempre em favor da humanidade, é
claro, como nos lembrou Obama mais uma vez ao receber o Prêmio
Nobel.
Tradução: Katarina Peixoto
Artigo publicado originalmente em
www.cartamaior.com.br