Pabllo Vittar canta com afinação – Tom Jobim, não!, Por Marconi De Souza Reis
Eu tinha sete anos de idade quando a minha mãe me disse que eu iria estudar música. Não apenas eu, mas as minhas irmãs – Roberta e Paula –, também. Isso foi no início do ano de 1972. Resultado: ela contratou Zé Mocó, maestro da Filarmônica de Queimadas.
E assim, todos os dias, por volta das 8h30, lá estava Zé Mocó na varanda da nossa casa, para nos ensinar teoria musical e a ler partituras. O colégio era no turno da tarde, daí que as aulas de música se estendiam até as 10h30, com lições dadas e cobradas no dia seguinte.
Um ano depois, Zé Mocó, um negão mais feio do que Louis Armstrong, chamou a minha mãe e sentenciou:
– Marconi é de ouro; Roberta é de prata, e Paula é de lata!
Resultado: somente eu continuei estudando música. Na mesma época, minha mãe contratou Georgina, uma bela loira, filha de um magistrado, para nos ensinar inglês. Eu tive inúmeras dificuldades, mas Roberta foi tão bem, que se tornou poliglota mais tarde.
A vida é assim – cada um com as suas habilidades. Bem, continuei estudando música com Zé Mocó, ingressei na Filarmônica de Queimadas em 1974 (tocava trompa) e prossegui depois com Zé Perigo, o novo maestro da cidade, que me entregou um trompete a partir de 1977.
Em meado de 1979, briguei com Zé Perigo, troquei o trompete pelo violão – que aprendi de ouvido com a ajuda de Japonês e Kiko –, mas nunca esqueci a teoria musical e jamais deixei de ler partituras com facilidade, fosse um simples dobrado ou uma peça de Beethoven.
Quatro anos depois, em 1983, aprendi a tocar piano sozinho. Isso mesmo: vi um piano no cursinho pré-vestibular “Geração”, e, sem auxílio de professor algum, passei a tocar algumas sonatas de Chopin, Tchaikovsky e Beethoven, além de muitas canções populares.
Em 1985, prestei vestibular para “Música”, na UCSal, e fui aprovado em segundo lugar no exame. A primeira colocada foi uma garota que passou também em primeiro lugar para Medicina na UFBA. Então veio a prova de aptidão musical, que escolheria apenas 50 dos 120 aprovados no vestibular.
A principal prova de aptidão consistia em você ficar de costas para um piano, enquanto uma pianista tocava cinco peças – Bach, Mozart, Beethoven, Chopin e Schubert –, para que os candidatos afirmassem a tonalidade – dó menor, si bemol maior, sol sustenido menor, etc… – sem ver a armadura da clave.
Eu tremi de balançar as pernas, mas passei em primeiro lugar. O segundo colocado foi Bira Reis, que hoje é um músico famoso e extraordinário. A terceira colocação ficou com a garota aprovada em Medicina (ela estudava piano desde os quatro anos de idade).
A atriz Zeca de Abreu, hoje bastante premiada no país, também foi uma das classificadas. Ela tinha uma sensibilidade incrível. Lembro-me que Zeca de Abreu adorava Cindy Lauper, e discutia comigo, porque eu era fã de Sandra, aquela cantora que interpretou “Maria Magdalena”.
– Sandra é afinada; eu dizia, convicto. A gente pegava o ônibus, sempre juntos, entre o Conservatório da Carlos Gomes até o campus da Federação.
Naquele ano de 1985, uma professora de “Música” da UCSal, Maria de Lourdes Szagur, ficou impressionada com o meu ouvido, num teste sobre audição de comas no violino. Ela costumava fazer esses testes com alguns alunos, para conhecer o tipo de aptidão musical de cada um.
Há músicos que têm aptidão nos dedos – rapidez na execução do violão, do piano, do violino, etc –, outros com a audição, a voz, o ritmo, a harmonia, a composição, mas dificilmente há alguém que nasça com todas essas virtudes. Há quem aposte ter existido apenas um – Mozart.
Preciso explicar que, entre dois tons na escala musical – entre o “dó” e o “ré”, por exemplo –, existem nove variações de sub-tons (são os intervalos de comas), que só podem ser extraídos com a freqüência das cordas (violino, violoncelo, etc), mas jamais pelo piano ou violão.
E naquele dia, Szagur determinou a uma violinista que soasse a escala para mim, passando pelos comas. E a violinista repetiu a seqüência por várias vezes. O objetivo era saber se o meu ouvido identificava os tons e semitons, sem confundir com os comas. Resultado: identifiquei todos os tons e semitons.
Por outro lado, eu não conseguia sofejar, sem desafinar, nenhuma das peças que Maria de Lourdes Szagur me apresentou – a minha voz não correspondia ao que eu sentia e via nas partituras –, embora meu ouvido fosse capaz de distinguir nitidamente os intervalos entre tons e semitons no violino.
– “Você vai ser produtor musical”, sentenciou.
Não obstante, Maria de Lourdes Szagur, uma pianista de escol, recomendou-me a estudar canto lírico, para criar um elo entre o ouvido e a voz. Bem, fiquei apenas um ano no curso de “Música” da UCSal. Não senti tesão em profissionalizar-me no ofício, e nem de tentar uma carreira de produtor musical.
E acho que só passei com louvor no teste de aptidão da faculdade porque sei escutar música com distinção. E até hoje nada mudou, ou seja, não sou compositor, instrumentista de escol e nem consigo cantar com afinação, mas nasci com a dádiva de identificar quem afina e desafina numa peça musical.
Pois bem: escrevi tudo isso aí acima para afirmar que a cantora Pabllo Vittar é afinadíssima. Eu percebi isso preliminarmente no sábado passado, quando a ouvi interpretando “I Have Nothing”, ao vivo, no programa de Serginho Groisman, quase “a cappella” (vídeo abaixo). Mas só confirmei isso dois dias depois.
É o seguinte: eu estava com uma gripe da zorra, daí que, naquele sábado, fiquei assustado. Achei que o catarro havia causado alguma fadiga auditiva, e a minha percepção estivesse equivocada. Ledo engano. Na segunda-feira, escutei várias vezes a interpretação, seguindo-a com a partitura em mãos, passo a passo, e percebi a incrível afinação.
Não há audiófilo, que dirá melômano, que seja capaz de negar o talento genuíno de interpretação de Pabllo Vittar. A melodia de “I Have Nothing” possibilitou, inclusive, que o timbre da sua voz tivesse uma melhor resolução. E repito: foi tudo ao vivo, sem truques de produtor musical.
E mais: ela cantou em “sol maior”, no mesmo tom de Whtiney Houston. É impressionante como, em diversas passagens, Vittar ainda brinca com os intervalos de comas até chegar ao tom definitivo. Bacana. Divino. Trata-se de alguém que domina o canto desde o berço, ou fez exaustivo curso para tanto.
Quem for músico e estiver lendo isso aqui, pegue a partitura de “I Have Nothing” no Google e comprove o que eu afirmo acompanhando a interpretação de Vittar. Há vários sites de partituras na internet que qualquer músico pode ter acesso e imprimi-las sem pagar nada.
No entanto, o tipo de canção que fez Pabllo Vittar ganhar fama é muito banal, trivial, e pode ir para a lata de lixo, a exemplo de tudo que é lançado por Anitta, Luan Santana, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Wesley Safadão e outros estrumes que campeiam na mídia desde o início do ano 2000.
Agora, quem tem o dom para escutar música – ouvir, qualquer um ouve –, e, portanto, sabe distinguir o afinado do semi-tonado, compara a interpretação dessa moça com a partitura de “I Have Nothing”, e garante: trata-se de uma cantora afinadíssima, da primeira até a última nota, sem titubeio.
Infelizmente, Pabllo Vittar e seus empresários escolhem um tipo de música paupérrima para fazer sucesso, a exemplo de Anitta, Luan Santana, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Wesley Safadão e outros estrumes, porque o nosso país é pobre em todos os sentidos – no estômago e no ouvido.
Aliás, dessa turma aí acima, somente Cláudia seria capaz de interpretar “I Have Nothing” dentro do tom, porque já demonstrou isso ao vivo com melodias semelhantes. Ivete Sangalo tentou, naquele show com Gil e Caetano (TV Globo), e foi um fiasco, apesar dos retoques no estúdio (não foi ao vivo).
Por outro lado, tem muita gente boa – falo agora do “foda”, para usar uma expressão de Caetano Veloso –, que compõe muito bem, mas não sabe cantar e sequer distinguir se uma determinada canção está sendo interpretada devidamente no tom. Ser João Gilberto é coisa raríssima.
Herbert Viana, por exemplo, compôs algumas canções instigantes, mas é um cara desafinado de dar dó. No mundo do rock, isso não é tão incomum, até porque esse gênero musical exige mais atitude, habilidade instrumental e “visceralidade” nos vocais, em detrimento da afinação.
No grupo seleto dos gênios, porém, o vexame é grande, embora, em virtude da genialidade enquanto compositor, a desafinação seja escamoteada/permitida. Tom Jobim, por exemplo, que é saudado como o maior compositor brasileiro, revelou-se sofrível sempre que se arriscou a cantar ao vivo.
Há exatos 40 anos, em 1978, Tom foi convidado por Roberto Carlos para participar do seu show de Natal, na TV Globo (na época era ao vivo). E eles decidiram interpretar “Lígia”, que era a composição mais recente de Tom. Caramba. Roberto ensinou a ele, ao vivo, como interpretar a pérola.
Este é um momento da música brasileira em que, sem dúvida, ocorrera a maior demonstração da diferença entre um ser afinado e outro semi-tonado. Recomendo também, ao músico curioso, que pegue a partitura de “Lígia” e siga os passos de Tom e Roberto nessa interpretação.
Não é porque Tom compôs “Lígia”, que o próprio seria capaz de expressar, com a voz, o que pôs na partitura. Aliás, o vexame que Tom protagonizou na Itália, interpretando “Desafinado”, composição também sua, é uma piada com os próprios versos da canção. Imagine, então, ele interpretando “I Have Nothing”!
Enfim, após o que Pabllo Vittar demonstrou no programa de Serginho Groisman, ninguém pode taxá-la de desafinada. Na verdade, eu acho que quem critica a desafinação dessa cantora nem sabe sequer o que é tom, semitom, coma, timbre, etc… Parece-me mais algo ligado ao preconceito de gênero.
E eu tenho lido muito na rede social sobre a tal “desafinação de Pabllo Vittar”. Na verdade, quem faz essa critica parece estar com a alma em coma intelectual – tratando-se em alguma clínica também especializada em homofobia –, até porque as críticas que leio são tão frágeis e sofríveis quanto a língua portuguesa que utilizam para fazê-las.
E Deus fez o homem com uma só boca para falar merda!
Os neurolinguistas devem ter uma explicação para o que ocorre com o meu cérebro, no que diz respeito à diferença brutal entre escutar e falar. E é nisso que está, acredito, a explicação para o fato de eu compreender o inglês – detesto filmes norte-americanos com dublagem –, mas, ao mesmo tempo, ter dificuldades na fala dessa língua estrangeira.
Quando a gente viaja para o exterior, minha esposa não fica tão preocupada, porque eu compreendo tudo que o garçom, o taxista ou o funcionário do hotel fala na língua inglesa, embora, quando vou me expressar, instaure-se um grande problema (um vexame). Sempre admirei a facilidade que a minha irmã Roberta revelou desde criança com a língua dos Beatles.
Eu já escrevi um texto aqui, acho que foi em novembro passado, elogiando a originalidade do refrão da canção “Corpo Sensual”, interpretada por Pablo Vittar. Não tratei de afinação, até porque a canção foi trabalhada por um produtor musical. De lá para cá, porém, vi essa moça receber tanta porrada na rede social sobre sua afinação, por gente que não conhece porra nenhuma de música, que me assombrei demais.
Eu peguei uma gripe da zorra, no último dia 28 de dezembro, daí que passei o sábado (dia 30) na cama. À noite, enquanto assistia ao Zorra (esse programa está cada vez melhor), saiu uma chamada dizendo que Pabllo Vittar estaria no programa de Serginho Groismman. Decidi vê-lo e, finalmente, a vi interpretando uma melodia de respeito. Que susto. Fiquei emocionado!
Dois dias depois, decidi checar o fenômeno com afinco. Olha, fiquei impressionado, porque tudo está certinho, como se Pabllo Vittar tivesse feito algum curso exaustivo de canto. Sem dúvida, os seus empresários, que não são nada bobos, vão explorar essa canção e muitas outras em estúdios. Ao demonstrar sua afinação ao vivo, Pabllo Vittar se afasta do resto do lixo…
Por falar em lixo, Anitta tem um repertório fedorento, mas, ressalte-se, a sua atitude nos “vídeos” se assemelha à de Cindy Lauper. Muita gente não sabe, mas Cindy interpretou um monte de porcaria, embora tenha sido mais determinante para a luta das mulheres norte-americanas do que Madonna nos anos 80.
E mais: Cindy era uma pessoa simples, carismática (Anitta também), como demonstrou ao aceitar participar da gravação de “We Are the Word”, em 1985, canção de Michael Jackson e Lionel Richie. Sua aparição no clipe foi modesta, discreta, embora ela fosse o primeiro lugar na época com “True Collors”.
{Em 1985, eu preferia Sandra interpretando “Maria Magdalena”. Amei essa canção}
Por falar em “We Are The World”, na época da gravação, três feras estavam no auge: Prince, Madonna e Liza Minnelli. No entanto, foram convidados por Michael Jackson a participar da gravação, mas não se fizeram presentes. Prince se disse depois arrependido; Liza e Madonna, também.
Olha, a minha dúvida é apenas se Anitta enobrece a mulher brasileira, ou se ajuda a ratificar a coisa de “mulher bunda” que a brasileira tem no exterior. Será que Rita Lee e Zélia Duncan, que escreveram “Pagu”, aprovariam Anitta? Ademais, eu gostaria, também, de vê-la interpretando uma canção “a cappella”, como Pablo Vittar encarou nos primeiros compassos de “I Have Nothing”.
Agora, um monte de sacana, mirando outra coisa, vive publicando na rede social que “aceita Fred Mercury, apesar de ele ser gay, mas não engole Pabllo Vittar, por causa da afinação”. Pode? Olha, essa gente é que é gay ou lésbica enrustidos, e critica a moça sem qualquer conhecimento musical para encobrir seu desejo inconsciente pelo mesmo sexo.
Como eu disse acima, ser grande compositor ou cantor não implica ter um ouvido apurado. Tem muita gente boa que compõe com brilhantismo, mas interpreta mal, e alguns compositores e cantores nem sabem distinguir se uma determinada canção está sendo interpretada devidamente no tom.
Mas, enfim, a rede social é o inferno do ódio. O cara pega todas as suas frustrações e sai palpitando sobre o que não entende e nem compreende, apenas porque discorda da vida sexual do intérprete. Piedade para essa gente. E olha que Deus os presenteou com dois ouvidos para ouvir, e apenas uma boca para falar merda. Imagine se fosse o inverso.
Sandra – Maria Magdalena – 1985 – Legendado HQ
Marconi de Souza Reis é Advogado e Jornalista