Para perseguir Lula, basta uma simples dúvida por Paulo Moreira Lima
É conveniente evitar toda ilusão com a investigação aberta pelo Conselho Nacional do Ministério Público em torno de Valtan Timbó, o procurador que decidiu iniciar um Procedimento Investigatório Criminal contra Luiz Inácio Lula da Silva a partir da acusação de “tráfico de influência internacional.”
A medida contra Valtan tem um efeito disciplinador.
Será útil se for capaz de esclarecer aos brasileiros por que um procurador que nada tinha a ver com o caso decidiu interferir numa apuração já em andamento, que cumpria seus prazos, sob cuidados de uma procuradora já escolhida, Mirella Aguiar. É possível que se possa explicar por que um procurador, que responde a 245 acusações de negligência, decidiu envolver-se num caso contra um ex-presidente da República.
Apesar da decisão disciplinar, que pode ter consequências para Valtan, do ponto de vista de Lula o serviço já foi feito.
O Procedimento Investigatório já foi aberto e não pode ser desfeito de uma hora para outra.
Será preciso que a própria Mirella Aguiar, a quem o caso já foi devolvido, chegue à conclusão de que não cabe levar o Procedimento adiante e pedir seu arquivamento. Ela já disse que tudo se baseia em “parcos elementos desprovidos de suporte probatório.” Tradução: não há provas para sustentar o que se diz contra Lula.
Depois disso, ela solicitou ao Instituto Lula que ofereça um calhamaço de informações que pessoas familiarizadas com investigações de alto teor político comparam a uma devassa. Mesmo assim, não será preciso encontrar nada muito consistente. Basta uma dúvida para o caso continuar.
Pelas regras do Ministério Público, um procurador pode decidir, sozinho, se vai levar um caso em frente, pedindo um indiciamento do acusado. Para mandar arquivar, no entanto, é mais trabalhoso. Mesmo que Mirella tenha concluído pelo arquivamento, será preciso aprovação da Câmara do Ministério Público.
É uma regra oposta à noção “em dúvida, pró réu”, que vigora nos julgamentos e faz parte das garantias individuais de todo país civilizado.
Aqui, vale uma regra chamada “em dúvida, pró sociedade.” O pressuposto desta visão é que as investigações são sempre úteis a um país, e por isso só devem ser arquivadas após muito debate e questionamento. Parece óbvio mas não é.
Se a maioria das investigações cumpre a função social de prestar contas à sociedade sobre crimes ocorridos, uma investigação pode se transformar em perseguição, especialmente quando envolve personagem politicamente delicados, onde a motivação política de investigadores pode estar à flor da pele.
Qual o sentido de prosseguir uma investigação com base em “parcos elementos desprovidos de suporte probatório?” Criar uma dúvida. Basta isso.
Através da dúvida, forma-se um caldo de cultura em torno da investigação que torna difícil qualquer iniciativa para reconhecer “parcos elementos” e encerrar o caso, mesmo que se saiba que é a decisão mais adequada a se tomar.
O importante é manter o clima do “aí tem coisa,” mesmo que se evite dizer que coisa é essa, sem a qual não se pode acusar ninguém.
Vamos combinar: uma denúncia que nasceu nas páginas da Época está destinada a ser monitorada cuidadosamente pelos meios de comunicação em cada detalhe. O objetivo é constranger os juízes que, nas várias instâncias, serão chamados a dar um veredito sobre o caso.
Nos Estados Unidos, informações sobre um inquérito criminal não podem ser veiculadas por jornais nem pela TV. Isso provoca — obrigatoriamente — a anulação do julgamento.
Vale a convicção de que a mídia tem o poder de influenciar os cidadãos comuns que irão compor o júri. Por isso, eles devem ser protegidos. No Brasil, país onde o júri popular é uma ocorrência rara, vigora a visão — ingênua, na minha opinião — de que os juízes que deliberam sobre um caso estão acima daquilo que os jornais dizem e a TV mostra. Por isso, os vazamentos podem ser tolerados e estimulados. Alguém acredita nisso depois das cenas inesquecíveis da AP 470 e da glorificação precoce de Sérgio Moro, herói de um julgamento que nem terminou?
Outro pressuposto é que o Ministério Público é a instituição que neste caso faz o papel de sociedade. Você pode achar estranho, porque, embora o Brasil seja um país onde os poderes emanam do povo, como ensina a Constituição, nunca votou para escolher esse representante.
Mas o Ministério Público tem atuado desta forma desde a Constituição de 1988, que garantiu sua autonomia funcional, após um esforço organizado de pressão sobre os parlamentares que, conforme recorda o professor de Direito Marcelo Figueiredo, da PUC de São Paulo, só ficou atrás de militares, banqueiros e da bancada ruralista. Estes poderes foram reforçados em maio, quando o Supremo Tribunal Federal aprovou, por 7 votos a 4, que o Ministério Público tem poderes de fazer uma investigação criminal — desse tipo mesmo, que se pretende abrir contra Lula.
Até então, juristas que ajudaram a elaborar a Constituição, como o professor José Afonso da Silva, classificavam as tentativas dos procuradores de assumir investigações criminais como “um desvio de função, uma fraude contra uma Constituição que não lhe confere tal poder.” A situação se modificou, como se compreende pelo voto do ministro Marco Aurelio Mello, que ficou com a minoria, contra a mudança, apontando uma distorção elementar na decisão: “é inverter a ordem natural das coisas. Quem surge como responsável pelo controle não pode exercer atividade controlada. O desenho constitucional relativo ao Ministério Público na seara penal pauta-se na atividade de controle externo da polícia. Deve ser tutor das garantias constitucionais.”
É nesse ambiente, em que se “inverte a ordem natural das coisas”, que o andamento da possível investigação sobre Lula será resolvido. Para manter o caso ativo, basta uma dúvida. Você entendeu o que nos espera daqui para a frente, não?
O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília