Passarinho deixou lição errada. Por Paulo Moreira Leite
A morte de Jarbas Passarinho serve como um excelente teste de caráter neste momento difícil para a democracia brasileira, construída com tantos sacrifícios após 21 anos de regime militar.
O presidente interino Michel Temer expressou “meus sentidos pêsames pela perda desse grande brasileiro.”
Marina Silva foi mais prolixa e defendeu as “evidentes qualidades intelectuais e habilidades políticas” do ex-minstro.
Será mesmo?
Coronel do Exército, Passarinho foi um político capaz de vários flertes ao longo de uma carreira de mais de 50 anos, mas sempre será lembrado por um gesto histórico, em dezembro de 1968, quando o regime militar decretou o AI-5, numa noite em que não havia espaço para pensamentos inocentes.
Entre outras coisas, o AI-5 não só revogou garantias constitucionais, estabeleceu a censura prévia e cassou mandatos, mas determinou o fim do habeas-corpus, instrumento jurídico que permite a soltura de todo cidadão preso sem culpa formada.
Com essa mudança, o regime não mexia numa filigrana. Eliminava uma um direito fundamental — particularmente necessário naquele momento.
Como era possível imaginar na noite em que o AI-5 foi aprovado, com a abolição do habeas-corpus a máquina repressiva ficou de mãos livres para perseguir, torturar, executar e desaparecer com os corpos de suas vítimas. Ao contrário do que era frequente ocorrer até ali, como relatam várias testemunhas da época, adversários da ditadura não puderam mais ser salvas do pau de arara nem da cadeira do dragão com auxílio de um instrumento jurídico elementar, civilizatório.
É certo que cada um dos membros do Conselho de Segurança Nacional, reunido naquele momento fúnebre, levou sua cota de responsabilidade pelo que se passou a seguir, nos porões, nas ruas do país, nas famílias aflitas e enlutadas. Todos poderiam ter votado contra, como fez o único dissidente, o vice Pedro Aleixo, em nome do respeito a Constituição em vigor — ela mesma uma filhote frankstein, pois aprovada em 1967, já em pleno estado de exceção.
Mas Passarinho fez mais. Deu um discurso para justificar opção que estava sendo feita. Não se contentou em agir em silêncio. Achou necessário justificar.
Foi por isso que disse: “às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência.”
Não foi uma frase solta. Mas a prova de que ali se tinha plena consciência do que estava em jogo. Ninguém ignorava a fronteira que seria atravessada, dos valores e princípios universais, envolvendo a dignidade humana, o respeito à vida e à integridade. Palavras belas, que seriam agredidas e derrotadas. Passarinho não inventou a ditadura. Nem foi um líder fundamental. Acima de tudo, foi um político prestativo, adaptável– exatamente sem “escrúpulos”.
Mas deu conforto político a uma travessia criminosa, que marcou a história do país até hoje, onde uma memória indignada pede respostas que, elas também, foram mandadas às favas por antecipação. Quarenta e oito anos depois da sessão vergonhosa, os personagens que se moviam em ambientes fúnebres se tornaram espantalhos em fuga, negam verdades que até as crianças conhecem, numa demonstração permanente de nossa impotência democrática, de um mal tão persistente que para muitos estudiosos parece razoável imaginar que não tenha cura.
Golpe dentro do golpe, num país que pedia democracia em passeatas, no teatro, em shows de protesto, a ditadura resolveu aprimorar a violência, ampliar a carceragem e tornar o espaço político menos respirável. Passarinho nunca se desculpou pela frase que valeu como salvo conduto para práticas violentas e ilegítimas.
Num de seus depoimentos, ele defendeu que a opção da época era entre o AI-5 e o comunismo. Falso. A esquerda não era alternativa de poder — embora muitos jovens não soubessem disso, pagando um preço muito alto, a própria vida, eliminada por tiro sem escrúpulos, muitas vezes na nuca.
Neste universo difícil, em que representantes do Estado cometiam crimes, Passarinho expressava uma visão amoral da política.
O alvo real do AI-5 incluía, como prioridade absoluta, a censura a grande imprensa, a mesma que havia ajudado os generais a chegar ao poder. O primeiro alvo foi o Estado de S. Paulo, braço midiático do golpe, que teve uma edição apreendida horas antes do AI-5 ser anunciado e passaria anos submetendo artigos e reportagens ao controle prévio do regime.
Também incluía a repressão a entidades legítimas da sociedade civil — como a UNE, os sindicatos — que eram capazes de atuar e resistir, mesmo proibidas pela ditadura.
Naquele país desesperado, os homens e mulheres decentes corriam riscos para abrir brechas de liberdade e democracia numa grande noite sem luzes. Era isso que era preciso fazer.
E foi o que fizeram senhoras como Terezinha Zerbini, que começou a defender o marido, um general leal a Goulart que acabou preso depois do golpe, para fundar o movimento pela anistia. Dom Paulo Evaristo Arns, que abriu a porta das cadeias e deu conforto a quem era torturado enquanto auxiliava a organizar uma sociedade civil reprimida. Waldemar Rossi e outras lideranças do movimento operário, sempre massacrado com método e orientação. José Dirceu, Luiz Travassos e outros lideres estudantis.
Eles é que merecem nossas homenagens. Palmas, palavras bonitas. Até lágrimas são permitidas. Suas lições sempre foram úteis. Não precisam ser explicadas pois as verdades falam por sim.
Leais a seus princípios, estes homens e mulheres, que nunca tiveram honrarias equivalentes, provam que Jarbas Passarinho estava errado. Totalmente errado. Cedo ou tarde, as democracias sempre deram razão a quem não abandonou os “escrúpulos de consciência.” Essa é a questão, sempre.
Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/236557/Passarinho-deixou-li%C3%A7%C3%A3o-errada.htm