Pesquisa que se autorealiza. Por Paulo Moreira Leite
Profissional com reconhecida experiência no debate sobre pesquisas de interesse nacional, o colunista José Roberto de Toledo publicou no Estado de S. Paulo (22/10/2016) uma coluna onde se reafirma uma visão consagrada do atual
momento político — a noção de que os valores do conservadorismo estão em alta no mundo inteiro e também no Brasil.
A partir de dados do Ibope, Toledo escreve que “os conservadores aumentaram em todos os habitantes do Patropi de todas as faixas etárias e de renda, em ambos os sexos, em todas as regiões e níveis educacionais.” Parece uma verdade fora de dúvida para muitas pessoas, salvo por um detalhe: a pesquisa que o Estadão divulgou não perguntou ao eleitor o que ele pensa sobre Bolsa Família, sobre a Reforma da Previdência, sobre a memória deixada por Lula.
Fica fácil imaginar, nessa situação, que dados apresentados como descobertas de natureza científica possam sustentar a visão de que ocorre uma conversão à direita do eleitorado, que poderia anunciar o nascimento de um novo ciclo ideológico no país.
O Ibope apurou o “conservadorismo” do brasileiro a partir de uma agenda de cinco pontos, e aponta para um aumento do “conservadorismo” com base numa comparação com levantamento, idêntico, realizado em 2010. Os pontos utilizados para o diagnóstico podem ser divididos em dois blocos.
Um deles diz respeito a legalização do aborto e casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O outro bloco trata de questões ligada à segurança pública — pena de morte, prisão perpétua e redução da maioria penal de 18 para 16 anos. Em todos estes assuntos, o levantamento aponta para o crescimento — em margens variadas — de opções contrarias à ampliação de direitos individuais e liberdades. Mas nem sempre é assim. O aborto, tema que ganhou destaque em debates nos anos recentes, é um ponto fora dessa curva. Em 2010, 10% dos entrevistados era favorável a sua legalização. Este número saltou para 17%, agora. Matematicamente, um crescimento de 70%.
Mesmo admitindo que estamos falando de temas importantíssimos para definir o perfil do eleitorado de um país, vamos combinar que estes cinco pontos estão longe de esgotar a diferença entre visões “conservadoras” ou “progressistas”. Afinal, vivemos num universo político amplo e conflituoso, onde o eleitorado está longe de formar blocos monolíticos e coerentes e os próprios partidos políticos são conhecidos pelo aspecto particularmente gelatinoso. Estas questões talvez possam servir para tatear o terreno das visões de mundo em países de economia avançada, onde questões que remetem a vida privada ocupam um espaço gigantesco no debate político. Apesar de sua importância universal, não tem o mesmo peso num país como o Brasil.
Aqui, como se sabe, uma imensa parcela de cidadãos pode ser classificada como “progressista” num segmento do debate político — como o programa Bolsa Família, que uma visão reacionária define como estímulo à preguiça — e “conservadora” quando discute pena de morte. O PT possui uma forte base eleitoral entre católicos — adversários ferrenhos de medidas que envolvem mudanças na área de comportamento assumidas por uma parcela importante do partido.
Desde as pesquisas do final da década de 1980 do antropólogo Antonio Flávio Pierucci sobre a classe média de São Paulo se sabe que respostas duras a temas de segurança são parte obrigatória dos programas de partidos conservadores desde o final da ditadura militar. Já naquela época, os órfãos políticos do aparato repressivo do antigo regime passaram a culpar programas de direitos humanos como principais responsáveis pelos índices de criminalidade elevada das grandes cidades brasileiras.
O ponto central é outro. Uma pesquisa que, em 2016, colocasse questões sobre a Reforma da Previdência, ou sobre a PEC 55 ou mesmo sobre candidatos preferidos para o pleito de 2018, iria encontrar respostas inteiramente diversas, que dificilmente seriam chamadas de “conservadoras”. A PEC dos gastos, o mais claro e radical programa conservador já elaborado no país, é rejeitada por mais de 63% dos brasileiros. A reforma da Previdência é condenada por uma margem ainda maior. Conforme o Data Folha, o candidato favorito a Presidente, ao menos no primeiro turno, é Luiz Inácio Lula da Silva.
A pesquisa foi feita numa situação política específica. Dois meses depois da derrota arrasadora sofrida pelo Partido dos Trabalhadores nas eleições municipais, o debate sobre a visão de mundo do eleitorado brasileiro é um ponto essencial das análises e das projeções para o futuro. A pergunta que cabe fazer é clara: o eleitorado votou em função de uma conjuntura específica, num ambiente de decepção real e massacre ideológico contra o maior partido operário já construído no país; ou a votação reflete uma mudança de fundo, de caráter ideológico, que aponta para uma reconfiguração profunda das opções dos brasileiros ?
Ao definir um campo de trabalho limitado a temas bem definidos, a pesquisa apurou aquilo que sabia que iria encontrar, pois a escolha de perguntas condicionava, obviamente, o horizonte das respostas.
Pelo levantamento, descobre-se que a preferência conservadora no universo específico definido pela pesquisa já era bastante acentuada em 2010 — e mesmo assim, Dilma Rousseff, uma candidata sem a menor experiência eleitoral anterior, conseguiu uma vitória espetacular contra o senador, ex-ministro, ex-prefeito e ex-governador José Serra. Não há dúvida que o país de 2010 não é o mesmo de 2016 e certamente não será o mesmo em 2018. A rápida recuperação da aprovação de Lula, combinada a decomposição a jato do governo Michel Temer, mostra que ninguém fará boas análises se ignorar a memória política da maioria dos brasileiros.
Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/271812/Pesquisa-que-se-autorealiza.htm